04 Novembro 2013
Geração após geração, como jovens, como adultos e como idosos, somos chamados a nos confrontar com questões em aberto levantadas por Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski.
A reflexão é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 01-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Quando eu ouço falar da pouca qualidade do ensino na nossa escola pública, eu me surpreendo com gratidão com os muitos "milagres ordinários" de professores que viviam e vivem o seu ofício como uma vocação à educação e à transmissão de uma cultura aberta e de uma ética civil aos seus alunos. Como ler de outra forma, por exemplo, que um professor de italiano que, em uma aula de contabilidade em uma normalíssima instituição de uma cidade interiorana, não só inicia os estudantes à leitura dos romances de Dostoiévski, mas até lhes ensina os primeiros rudimentos de russo para seduzi-los a ler esses textos, assim como os de Tolstói, na língua original?
É assim que eu li pela primeira vez Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski: era 1960, eu tinha 17 anos, estava atraído pelo compromisso político e fascinado pelo mundo espiritual russo, vivia o clima da Guerra Fria como desafio para buscar o sentido da vida mais alto do que ideais cortinas de ferro já caídas e de muros concretos que surgiriam logo em seguida.
Eu li o romance na tradução de Alfredo Polledro pela editora de Mursia. Eu o reli há alguns anos na edição Garzanti com tradução de Maria Rosaria Fasanelli – porque o sonho do meu professor Giovanni Boano de que pudéssemos ler os clássicos russos na língua original persistiu –, mas o que me interroga não é a tradução italiana diferente ou as novas modalidades de transliteração dos nomes russos, mas sim aquele entrelaçamento de novidade e de perenidade que envolve o mundo evocado por aquele romance, o mundo como eu o via como adolescente e o mundo em que me encontro vivendo hoje.
Sim, três mundos aparentemente muito diferentes: a Rússia do fim do século XIX, o Monferrato do alvorecer do milagre econômico italiano, o mundo que sabe globalizar a economia e as crises, mas não a solidariedade, a justiça e a paz. Porém, a sondagem da alma humana que Dostoiévski opera com trágica sabedoria no seu romance é muito atual na sociedade pós-industrial assim como era na agrícola.
Como Rowan Williams observou agudamente, "terrorismo, abuso de menores, ausência dos pais e fragmentação da família, secularização e sexualização da cultura, futuro das democracias liberais, choque entre culturas e natureza da identidade nacional" são preocupações que nos parecem características deste conturbado início do século XXI, mas na realidade estão "quase onipresentes na obra de Dostoiévski".
Nessa surpreendente e inquietante analogia de clima cultural e espiritual, para mim, reler hoje Os Irmãos Karamazov também significou medir como mudou o meu olhar sobre as vicissitudes e os personagens narrados no romance. Não só porque, enquanto isso, desapareceu o filtro da Rússia comunista bem presente no meu imaginário de jovem católico e democrata-cristão, ou porque pude conhecer de perto e pessoalmente a Igreja Ortodoxa renascida nessas últimas décadas, e nem só porque eu tive até a oportunidade de encontrar o prior (igúmeno) de Optina, o mosteiro do staretz Zózimo e do jovem Aliocha, e de dialogar com ele, mas principalmente porque as interrogações levantadas por Dostoiévski nunca deixaram de me interpelar.
A relação entre Cristo e a verdade, como crer em um Deus que é a fonte de inspiração para uma santa rebelião contra os sofrimentos humanos e, ao mesmo tempo, a origem primeira de um mundo em que esses sofrimentos têm lugar; como conciliar um Evangelho anunciado aos pobres e pequenos com as suas exigências tão radicais que só muito poucos, ou talvez ninguém, consegue satisfazer; o que implica a assunção da categoria bíblica do ser humano como criado à "imagem e semelhança" de Deus para ler as suas misérias e grandezas.
Indubitavelmente, o relato do Grande Inquisidor, pela sua força narrativa, é o trecho dos Irmãos Karamazov que nunca deixou de despertar interesse nas mentes mais vivas de cada época do pensamento e naqueles que são apaixonados pela relação entre justiça, verdade, poder, culpa e perdão, mas é toda a narrativa de Dostoiévski que constitui um obstinado protesto da mente humana contra a morte de Adão, a lúcida afirmação da intolerabilidade da morte – seja ela física, moral ou espiritual – de qualquer ser humano.
Nesse sentido, o diálogo entre Ivan Karamazov e o Diabo no capítulo nono do 11º livro, retoma e desenvolve alguns dos temas das páginas do Grande Inquisidor e parece fornecer um desenvolvimento àquele beijo de Cristo ao Juiz que as fecha, abrindo-as ao jogo muito sério da interpretação. Hermenêutica que não pode prescindir do que aparece desde o sexto livro: ali, Dostoiévski parece confiar ao staretz Zózimo e à sua visão de um mundo redimido a esperança que pode habitar em cada um de nós, novato Aliocha.
Talvez o indefectível destino dos Irmãos Karamazov – ou ao menos a urgente atualidade que eu encontro ali todas as vezes que eu o retomo nas mãos – está justamente na sublime capacidade que Dostoiévski tinha de sondar a alma humana, de dissecar sentimentos, emoções, desejos, angústias e trazer tudo ao leitor, sem lhe fornecer respostas certas e definitivas.
Assim, geração após geração, como jovens, como adultos e como idosos, somos chamados a nos confrontar com questões em aberto, a lê-las no nosso coração e no dos outros, a discutir a respeito entre nós, a nos confrontarmos com seriedade com essa interrogação fundamental que o grande romancista russo pôs e à qual tentou responder, de sua parte: "De que os seres humanos são devedores uns com os outros?".
Ou, em outras palavras, que preço estamos dispostos a pagar para afirmar uma humanidade que reencontra a si mesma no fato de ser sinal daquilo que é diferente dela, no fato de acolher o outro diferente de si, mesmo quando tudo parece remar contra?
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Irmãos Karamazov, o preço que queremos pagar. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU