Por: Cesar Sanson | 27 Agosto 2013
"A praça amordaçada e o país em um banho de sangue, entre duas facções cujos projetos nada têm a ver com o espírito que a ocupou". O comentário é de Sérgio Abranches, jornalista, em artigo no blog EcoPolítica, 25-08-2013.
Eis o artigo.
O Egito está mergulhado em um passado que tem mais páginas de sangue do que de glória. Não há inocentes no embate polarizado e violento que sufoca e paralisa o país. Todos os protagonistas, dos desvios de Morsi ao golpe, à formação do novo governo, até chegar ao confronto feroz de fações traíram o espírito da praça Tahrir.
Quando o presidente eleito Mohammed Morsi foi derrubado, tuitei que se tratava de um golpe e que é fácil trazer os militares para o poder, mas o verdadeiro dilema é como fazê-los sair.
No caso, não se tratava exatamente de chamar os militares. Eles já estavam lá. Sacrificaram algumas lideranças, entre elas Osni Mubarak, para manter-se onde sempre estiveram nas últimas décadas. A movimentação civil golpista foi um bom pretexto para reimporem seu controle político absoluto. A liderança que mais errou neste processo foi Mohamed ElBaradei, referência para os egípcios de mudança e democratização e que se deixou cooptar por um regime de origem espúria, no qual aos políticos civis estava reservada apenas participação simbólica e legitimadora.
Quem manda no Egito hoje é o sanguinário Abdel Fattah Saeed Hussein Khalil el-Sisi e outros oficiais generais. Não há lado do bem nesta história. Morsi traiu o voto que o levou à presidência, que não veio apenas da Irmandade Muçulmana, nem apenas de muçulmanos.
Traiu sua própria promessa de campanha, de manter a tradição laica e a separação entre religião e estado no país. ElBaradei traiu os princípios que proclamava e saiu tardiamente de um governo no qual nunca devia ter entrado. Todos traíram o espírito da praça Tahrir.
O movimento da praça Tahrir representava o Egito contemporâneo, digital, pluralista, enredado num vasto consenso pela mudança. Quando Mubarak foi forçado a renunciar, o risco de uma reversão autoritária não diminuiu, aumentou. Escrevi, no final de 2012 sobre isso: “No Egito, muitos imaginaram que o resultado seria um regime islâmico fundamentalista. Outros, que o processo levaria a uma democracia emergente. Não deu uma coisa, nem outra. Sem instituições sólidas da sociedade civil, a mudança emulada por um movimento espontâneo e contagioso de massas está levando a um resultado que mais próximo da cultura política do país: um novo regime autoritário. Era previsível. Imprevisível é o que resultará da frustração do sonho de liberdade que animou a praça Tahrir. Nem os modelos que explicavam a história política desses países, nem os modelos ocidentais sobre democratização têm poder explicativo ou preditivo para essas novas situações.”
A praça Tahrir cercada por rolos de arame farpado e pelos militares, para sufocar o espírito da primavera e mantê-la em permanente inverno de desesperança, mostra o que de fato está acontecendo. A ocupação popular da praça Tahrir era “digital”, apontava para o desejo de um novo Egito, contemporâneo, global, sem deixar de ter uma identidade egípcia. O desejo de uma sociedade pluralista, capaz de desenhar sua própria convivência democrática, mais participativa e mais deliberativa. A praça cercada, é “analógica” é o velho Egito autoritário, oligárquico e militarizado se impondo aos jovens e ao clamor por mudança.
A polarização entre o governo autoritário militar e a Irmandade Muçulmana, de costas para a sociedade que detonou o processo que deu na derrubada de Mubarak, é eloquente. A praça amordaçada e o país em um banho de sangue, entre duas facções cujos projetos nada têm a ver com o espírito que a ocupou, de forma heróica, por um breve momento de implicações duradouras.
O erro de ElBaradei, deixa o país sem uma liderança forte e legítima para buscar uma terceira via, mais próxima do espírito de Tahrir e do momento “digital” que pretendia desenhar um Egito contemporâneo em regime de liberdade e autoafirmação.
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