26 Junho 2013
"O espírito romântico, inato no Ocidente, jamais se libertou do preconceito de ver a fonte da crueldade humana em personagens diabólicos e de uma grandeza terrível movidos pelo ideal degenerado de fazer os outros sofrerem e semear em torno de si lágrimas e devastação", escreve Mario Vargas Llosa, escritor peruano, em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 25-06-2013.
Eis o artigo.
Estive uma semana em Paris e o fantasma de Hannah Arendt acompanhou-me por toda parte. Três cinemas do Quartier Latin exibiam um filme que Margarethe von Trotta dedicou a ela que me agradou muito. Não é um grande filme, mas um bom depoimento sobre a forte personalidade da autora de As Origens do Totalitarismo, sua lucidez e sua íntegra independência intelectual e política.
O filme centraliza-se quase totalmente na reportagem que Hannah Arendt escreveu, a seu pedido, para a The New Yorker, sobre o julgamento do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, realizado em 1961 em Jerusalém, e o escândalo e a controvérsia provocada, sobretudo quando o texto apareceu ampliado em um livro em 1963, em que ela desenvolve sua teoria sobre a "banalidade do mal".
A atriz Barbara Sukowa faz uma sutil interpretação de Hannah. A maior fraqueza do filme é a fugaz e caricatural descrição da relação de Hannah com Martin Heidegger, de quem foi discípula, depois amante, e por quem, apesar do vínculo de Heidegger com o nazismo, sempre teve uma admiração incondicional (quando Heidegger fez 80 anos ela dedicou a ele um longo e generoso ensaio).
E, ao sair do cinema, descobri que no pequeno teatro de La Huchette, onde continuam a encenar as primeiras obras de Ionesco (A Cantora Careca e A Lição), que vi em 1958, estava também em cartaz uma peça de um autor argentino, Mario Diament, Un Informe Sobre la Banalidad del Amor, (Um informe sobre a banalidade do amor), com o subtítulo Historia de Una Pasión (História de uma paixão), dedicada à relação de Hannah Arendt e Heidegger.
Existiu realmente uma paixão entre a brilhante jovem judia que sofreu perseguições, esteve num campo de concentração e precisou se exilar nos Estados Unidos para escapar da morte, e o grande filósofo do ser, que aceitou ser reitor da Universidade de Friburgo sob leis nazistas e morreu sem nunca ter renunciado ao seu cartão de militante do Partido Nacional Socialista? Na obra de Diament sim, foi uma paixão compartilhada, duradoura e traumática, que nem mesmo as atrocidades do Holocausto conseguiram abolir completamente. A obra é benfeita e os dois atores que representam os protagonistas são magníficos - Maïa Guéritte e André Nerman. Mas, na realidade, parece que essa paixão foi bastante assimétrica, mais profunda e constante da parte da discípula do que da parte do filósofo, que, aparentemente, teve uma queda mais supérflua e transitória por ela. (A verdade é que sobre este assunto há mais conjecturas e fofocas do que verdades comprovadas.)
Em todo caso, esses episódios me levaram a ler Eichmann en Jerusalém (Eichmann em Jerusalém), que tinha abandonado antes de terminar a primeira vez que tive o livro em mãos. Ao ler esta obra agora, meio século depois de sua publicação, surpreende o fato de que este denso, intenso e admirável ensaio tenha provocado, ao ser publicado pela primeira vez, ataques tão grotescos (a autora chegou a ser acusada de pró-nazi e antijudia por alguns fanáticos exaltados que assinaram manifestos para que ela fosse expulsa da universidade americana onde lecionava).
Mas isso não deveria chamar muito a atenção, pois o século 20 não foi só o século das grandes carnificinas humanas, mas também o século do fanatismo e da estupidez ideológica que as incitaram.
A rigorosa autópsia que Hannah Arendt faz do tenente-coronel da SS Adolf Eichmann, homem de confiança de Himmler e um dos mais destacados especialistas do regime hitleriano no "problema judaico" - ou melhor, na exterminação de 6 milhões de judeus europeus -, baseada em documentos e depoimentos apresentados em juízo, oferece conclusões espantosas e válidas não apenas no caso do nazismo, mas de todas as sociedades corrompidas pelo servilismo e a covardia que qualquer regime totalitário provoca na população.
O espírito romântico, inato no Ocidente, jamais se libertou do preconceito de ver a fonte da crueldade humana em personagens diabólicos e de uma grandeza terrível movidos pelo ideal degenerado de fazer os outros sofrerem e semear em torno de si lágrimas e devastação.
Nada disso aflora na personalidade de Eichmann, esse pobre diabo medíocre, que fracassou em tudo o que empreendeu. Um homem inculto e imbecil, que encontrou rapidamente, dentro da burocracia do nazismo, a oportunidade de ascensão e de desfrutar o poder. É disciplinado mais por negligência do que por convicção; um instinto de sobrevivência anula sua capacidade de pensar se existiria algum risco nisso e ele obedece e serve a seu chefe com uma docilidade canina, colocando uma venda moral que lhe permite ignorar as consequências dos atos que pratica diariamente (como despachar trens carregados de homens, mulheres, crianças e idosos de todas as cidades europeias para os campos de trabalhos forçados e as câmaras de gás).
Diante dos jurados, Adolf Eichmann afirmou enfaticamente que nunca matou um judeu com suas mãos, e certamente ele não mentiu.
Qualquer pessoa que suportou uma ditadura, mesmo a mais branda, sabe que o sustentáculo desses regimes que anulam a liberdade, a crítica, a informação sem viseiras e escarnecem dos direitos humanos e da soberania individual, são esses indivíduos sem qualidades, burocratas de ofício e de alma, que movimentam as alavancas da corrupção e da violência, das torturas e das violações, dos roubos e desaparecimentos, olhando sem olhar, ouvindo sem ouvir, agindo sem pensar, transformados em autômatos vivos que, como Adolf Eichmann, chegam a altas posições. Invisíveis, eficazes, a partir desses refúgios que são seus gabinetes, essas pessoas medíocres, sem rosto e sem nome, que pululam em todos as engrenagens de uma ditadura, são sempre as responsáveis pelos piores sofrimentos e horrores que ela produz, os agentes desse mal que, com frequência, em vez de se revestir da satânica generosidade de um Satanás, se esconde sob a pequenez de um obscuro funcionário.
Kafka já identificou essa figura nos invisíveis personagens que julgam e executam inocentes como K por crimes fantásticos e inexistentes, mas o grande mérito de Hanna Arendt foi ter tirado da literatura esse hipócrita e dar a ele o papel que merece como sequaz indispensável dos verdugos e classificá-lo como o agente predileto do mal no universo totalitário.
Eichmann "não era nem um Iago nem um Macbeth", diz Hannah Arendt, e tampouco um estúpido. "Foi a pura falta de pensar - o que não é pouca coisa - que o levou a se tornar um dos maiores criminosos da sua época. Isso é 'banal' e até cômico, pois nem com a maior vontade do mundo se conseguiu descobrir em Eichmann a menor índole diabólica ou demoníaca."
O terrível no caso de Eichmann é que ele não era um homem excepcional, mas uma pessoa comum e vulgar. O que significa que todo homem comum e vulgar, em determinadas circunstâncias (uma ditadura hitlerista, por exemplo), pode transformar-se num Eichmann.
Quem afirmou isso anos antes foi Georges Bataille, ao comentar o prontuário criminal do valoroso companheiro de batalha de Juan de Arco que, descobriu-se depois, assassinava crianças em série porque era um pervertido sexual: "Gostando ou não, no fundo de todos nós, não só os 'maus', mas também os 'bons'", esconde-se um pequeno Gilles de Rais.
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Adolf Eichmann, o homem sem qualidades - Instituto Humanitas Unisinos - IHU