21 Mai 2013
“É hora de pensarmos qual futuro queremos. Qual vai ser nossa inserção internacional? Qual será o perfil de nossa economia e do emprego que será criado para as novas gerações?”, indaga o documento ‘Compromisso pela Inovação’, divulgado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em 2011.
A reportagem é de André Antunes, publicada no portal da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), 15-05-2013.
A resposta a essas perguntas vem logo abaixo: se deseja ter uma “inserção mais dinâmica na nova economia global”, o Brasil precisa vencer o desafio da inovação, “nossa capacidade de converter ideias em valor”, na definição da CNI, mobilizando “a criatividade, a tecnologia e a ciência para atender melhor demandas antigas ou resolver novos problemas”. Mas para inovar é preciso mais do que mobilizar o setor empresarial, é necessário um compromisso social, uma vez que a inovação, para a CNI é, ao mesmo tempo, um “tema próprio das empresas” e “uma agenda que interessa a todos, aos trabalhadores, à academia e ao governo”.
Nesse processo, segundo a Confederação, cabe ao setor privado exercer um protagonismo, no sentido de “apontar caminhos que nos permitam organizar melhor o que fazemos e aprimorar a relação entre universidades e empresas, entre o governo e o setor privado. Significa também contribuir para melhorarmos nossas políticas públicas”.
Se as políticas públicas estão sendo “melhoradas” com a influência da CNI e do discurso que associa as inovações tecnológicas com o desenvolvimento econômico é questão a ser discutida, mas o fato é que essa racionalidade, que coloca a ciência e a tecnologia a serviço do mercado e as empresas privadas como atores centrais no processo de desenvolvimento, é cada vez mais marcante nas falas de membros do governo, do setor privado e da academia. A incorporação do termo ‘inovação’ ao nome do ministério dedicado ao tema em 2010 é um exemplo prosaico, porém emblemático dessa tendência. Outro componente é o aumento significativo, a partir dos anos 2000, dos recursos públicos destinados a promover a inovação no setor empresarial, como você verá mais adiante nesta matéria.
E exatamente essa área ganhou um reforço de peso em março, com o lançamento do programa ‘Inova Empresa’ pelo governo federal. O programa irá destinar, até 2014, R$ 32,9 bilhões a projetos que visem a aumentar a competitividade das empresas brasileiras no mercado internacional por meio da inovação tecnológica, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
O Inova Empresa coaduna-se com as definições da Estratégia Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação (ENCTI), que coloca metas para a área no período 2012-2015 e tem como um de seus eixos orientadores a promoção da inovação nas empresas, afirmando que “o fortalecimento da inovação empresarial com vistas ao aumento da competitividade industrial continua a ser um objetivo comum, especialmente em termos da elevação da produtividade, do crescimento do emprego e da melhoria da qualidade de vida”. O documento estabelece diversas metas, entre elas a de aumentar o dispêndio nacional em pesquisa e desenvolvimento em relação ao PIB de 1,19% em 2010 para 1,80% em 2014 e aumentar o dispêndio empresarial na área em relação ao PIB de 0,56% do PIB para 0,90%
Bolsa Família da inovação
No lançamento, que ocorreu durante uma reunião da Mobilização Empresarial pela Inovação – movimento da CNI que atua no lobby sobre inovação junto ao poder público – no Palácio do Planalto, no dia 14 de março, a presidente Dilma Rousseff afirmou que o programa seria importante para tornar o país “menos desigual”, aumentando a capacidade de a economia “ser produtiva e competitiva”. Antonio Elias, secretário-executivo do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), explica que o crescimento do mercado consumidor interno, com a ampliação da renda e do acesso ao crédito de “40 milhões de brasileiros”, permitiu “impulsionar as cadeias produtivas brasileiras e também a área de serviços, gerando uma expectativa e uma demanda maior por processos inovativos”.
“O Brasil se transforma numa plataforma para a América Latina, com possibilidade de fazer um maior intercâmbio comercial com os países vizinhos desde que rompa os movimentos restritivos ao crescimento da economia”, continua Antonio Elias, para em seguida explicar: “o Brasil tinha uma baixa diversidade produtiva, uma especialização na agricultura e na mineração. Hoje isso não é realidade: com a área de serviços crescendo, a microeletrônica cresceu, impulsionada pela cadeia do petróleo, a área de bens de capital cresceu, há um conjunto de outras áreas que estão crescendo com agregação de valor”.
Durante o lançamento, a presidente Dilma também destacou que o programa seria uma espécie de “bolsa família” da inovação, integrando ações e recursos do governo destinados à inovação que estavam dispersos. “Não havia uma matriz montada que pudesse aglutinar toda uma capacidade de recursos e que estivesse numa mesma vertente focada. O que fez o plano? Justamente pensar essas oportunidades, articulando a política industrial com a política de ciência e tecnologia numa matriz para corrigir as assimetrias existentes em setores e áreas estratégicas”, afirma Antonio Elias.
São sete as “áreas estratégicas” definidas pelo plano, que deverão receber a maior parte dos recursos, R$ 23,5 bilhões: cadeia agropecuária (R$ 3 bilhões), energia (R$ 5,7 bilhões), petróleo e gás (R$ 4,1 bilhões), complexo da saúde (R$ 3,6 bilhões), complexo aeroespacial e defesa (R$ 2,9 bilhões), tecnologia da informação e comunicação (R$ 2,1 bilhões) e sustentabilidade socioambiental (R$ 2,1 bilhões).
Pari passu com algumas das demandas apresentadas pela CNI em seu Compromisso pela Inovação, o programa tem como meta, segundo o governo federal, “o fortalecimento das relações” entre instituições de pesquisa, empresas e setor público. Para isso foi criada a Empresa Brasileira para Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), com investimentos previstos da ordem de R$ 1 bilhão até 2014. Segundo Dilma, ela deverá espelhar-se na atuação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), promoverá um “casamento” entre instituições públicas de pesquisa e as empresas privadas.
Entre seus objetivos, estão a promoção de “estratégias de inovação decorrente das demandas empresariais”, o estímulo a que instituições de pesquisa realizem “prospecção de projetos empresariais e arranjos cooperativos para inovação” e o estabelecimento de um “ambiente favorável à formação e capacitação de recursos humanos”, tendo a inovação como preocupação central. O Inova Empresa prevê que os projetos deverão ter financiamento tripartite: um terço do governo federal – por meio de crédito, subvenção ou recursos não reembolsáveis –, um terço da instituição de pesquisa envolvida e um terço da empresa interessada. Cabe ressaltar: no caso de o projeto envolver uma instituição pública de pesquisa, o governo acaba arcando com dois terços do financiamento.
Inovacionismo
Para Rafael Dias, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o programa não traz nada de novo em relação às políticas públicas que vinham sendo implementadas na área de ciência e tecnologia nos últimos anos. “É mais do mesmo, um programa que segue essa tendência que já vem sendo aventada a um tempo de estimular a inovação na empresa, reconhecendo-a como o vetor do desenvolvimento econômico. A ideia que está por trás é de que, com a criação de determinados mecanismos, pode-se fomentar a atividade inovativa na empresa e com isso vamos ter um aumento da competitividade das empresas brasileiras, que traria desenvolvimento econômico e também social”, aponta Rafael. Segundo ele, o que há de novo é o montante de recursos do programa. “A diferença para mim é quantitativa, o volume de recursos que esse programa pretende mobilizar é algo realmente que não temos visto no âmbito da política de ciência e tecnologia e inovação no Brasil”.
Segundo Rafael, a análise do que vem ocorrendo nos últimos anos no Brasil mostra que o processo que alguns autores têm chamado de assunção do “inovacionismo” como modelo de política na área de ciência e tecnologia – do qual o Inova Empresa representa mais uma etapa – vem ganhando força, com a injeção de cada vez mais dinheiro público para fomentar a inovação no setor privado, com foco na hipótese de que o desenvolvimento nacional vai advir da inovação empresarial. Carolina Bagattolli, pesquisadora do Grupo de Análise de Políticas de Inovação (Gapi) da Unicamp, explica que foi no bojo das privatizações de empresas estatais brasileiras com as políticas neoliberais a partir da década de 1990 que teve início o inovacionismo no país, com a criação dos Fundos Setoriais, no âmbito da Finep, a partir de 1999. “Os fundos setoriais foram uma forma de não reduzir o investimento em pesquisa e o desenvolvimento com as privatizações, porque das empresas que faziam essa atividade no Brasil a grande maioria eram as públicas que deixariam de ser públicas. Eles surgiram como uma proposta de que fosse compulsório que as empresas que comprassem as públicas separassem o mesmo percentual de recursos para que eles fossem investidos em pesquisa e desenvolvimento na área”, escreve, em sua tese de doutorado.
Segundo Renato Dagnino, professor da Unicamp, até esse momento a pesquisa científica no país era levada a cabo por instituições e empresas públicas, pautada no interesse pelo desenvolvimento científico em áreas consideradas prioritárias para a soberania nacional. “Temos marcos como a Petrobras e a Embraer, que mostram que, no Brasil, foi possível desenvolver pesquisa original e ligar com a produção de bens e serviços onde havia interesse do Estado ou de alguma elite, mas que de qualquer forma passava pelo Estado”, diz.
Segundo ele, isso mudou com a chegada do neoliberalismo. “A partir daí, o Estado foi convertido em vilão e a empresa privada no ‘demiurgo da modernidade’, que poderia salvar o Brasil e conduzi-lo para o primeiro mundo, de forma que as políticas públicas se orientaram para enxugar o Estado e endeusar a empresa”, ressalta. Segundo Rafael Dias, aí começaram a secar as fontes públicas de financiamento para pesquisa que existiam desde a institucionalização da política científica e tecnológica no Brasil, com a criação da Capes e do CNPq, na década de 1950. “Nesse momento, começou a ganhar força o uso do próprio termo ‘inovação’ no discurso dos cientistas inclusive, como uma forma de legitimar uma mudança do foco.Era algo mais ou menos do tipo: ‘se não podemos mais contar com o governo para ter acesso a recursos vamos procurar outro parceiro, as empresas privadas’”.
Aumento dos recursos para a inovação
Como escreve Carolina em sua tese de doutorado, os Fundos Setoriais elegeram a empresa privada como ator central e os arranjos cooperativos universidade-empresa como a maneira de se promover o financiamento e a execução da pesquisa científica e tecnológica pela empresa. Seus recursos são destinados ao apoio de programas e projetos de atividades de ciência, tecnologia e inovação, como a transferência de tecnologia e o desenvolvimento de novas tecnologias de produtos e processos, de bens e de serviços, entre outros. As empresas acessam o dinheiro de duas formas: a modalidade recursos reembolsáveis, destinada ao financiamento de projetos de desenvolvimento tecnológico em empresas, é operada na forma de empréstimos pela Finep; na modalidade recursos não reembolsáveis, os recursos dos fundos setoriais financiam, por exemplo, despesas para projetos de cooperação entre universidades e centros de pesquisa com empresas e dá subvenção econômica para empresas.
Existem hoje 16 fundos setoriais, sendo 14 destinados ao fomento à inovação empresarial em áreas específicas, como agronegócio, saúde, petróleo e energia, entre outros, e dois transversais: um voltado à promoção da interação universidade-empresa e geração de inovação empresarial e o outro destinado a apoiar a melhoria da infraestrutura de instituições de pesquisa. O número de projetos financiados pelos fundos saltou de 204 em 1999, que totalizaram R$ 78,4 milhões em investimentos, para 5.486 em 2010, totalizando R$ 1,6 bilhão, segundo dados do MCTI.
O aumento significativo no montante investido pela Finep por meio dos Fundos Setoriais ao longo dos anos 2000 corrobora a visão dos pesquisadores que veem uma inflexão forte em direção ao inovacionismo a partir da primeira década do século 21 no Brasil. Carolina Bagattolli destaca outros marcos importantes nessa trajetória que aconteceram nesse período: a Lei da Inovação, de 2004, e a Lei do Bem, de 2005.
A primeira é entendida como uma ferramenta jurídica para facilitar as “parcerias” entre universidades e empresas. Segundo Renato Dagnino, também professor da Unicamp, a relação universidade-empresa já estava presente desde a institucionalização da política científica e tecnológica no país. “Ela era uma política muito preocupada em consolidar a chamada infraestrutura cientifico-tecnológica: formação de recursos humanos, pesquisa básica. Era uma política linear porque acreditava que existia uma cadeia linear de inovação — que se faz pesquisa básica, depois aplicada, depois há o desenvolvimento econômico e depois o social —, coisa que lamentavelmente ainda faz parte do discurso de boa parte da comunidade científica. Ela era também ofertista porque considerava que cabia ao governo e à comunidade de pesquisa oferecer recursos humanos e conhecimento e, ao fazê-lo, a empresa passaria a incorporar esses resultados de pesquisa e recursos humanos. Isso não aconteceu, só em poucos casos onde a iniciativa estatal estava por trás”.
Segundo Carolina, isso muda com o fortalecimento do discurso da inovação. “Quando começou esse discurso mais inovacionista a discussão era de que a inovação era um processo complexo e sistêmico e não linear. Uma das implicações disso é que não é adequado a universidade transferir conhecimento para a empresa, ela tem que produzir conhecimento junto com a empresa”, compara.
Essa é a visão do secretário-executivo do MCTI, Antonio Elias. “Eu não preciso ter o pesquisador dentro da empresa, as empresas em geral querem os laboratórios de que elas podem se servir e querem fazer projetos cooperativos porque assim diminuem custo, porque um doutor na empresa subentende eu pagar o salário, INSS, etc. Eu não preciso ter o pesquisador dentro da empresa, ela tem que se servir do pesquisador”, afirma.
O resultado disso é a baixa absorção de profissionais com pós-graduação pelas empresas privadas, como aponta Renato Dagnino: “Enquanto formamos 90 mil mestres e doutores em ciência dura, ou seja, engenharia, física, química, biologia, tudo aquilo que a empresa necessita para se tornar produtiva ou competitiva, entre 2006 e 2008, nesses três anos, diferentemente do que seria de se esperar só 68, de 90 mil, foram assimilados pelas empresas brasileiras. Então, isso mostra de forma irretorquível que a empresa brasileira não faz pesquisa”, destaca. Aqui é importante ressaltar para não haver dúvidas: foram apenas 68 mestres e doutores assimilados pelas empresas privadas entre 2006 e 2008, e não 68 mil.
Preocupada em estimular as parcerias entre universidades e empresas, a Lei da Inovação, promulgada em 2004, trata dos incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica nas empresas a partir de três eixos: a constituição de um ambiente propício a parcerias entre universidades, instituições de pesquisa e empresas; o estímulo à participação de instituições de pesquisa no processo inovativo e o estímulo à inovação na empresa.
Como explica Carolina em sua tese, a lei possibilita às instituições de pesquisa compartilhar seus laboratórios e estruturas físicas com empresas para o desenvolvimento de atividades voltadas à inovação tecnológica, celebrar contratos de transferência de tecnologia e de licenciamento de direitos de uso ou exploração de criações desenvolvidas pela instituição, prestar serviços em atividades voltadas à inovação e à pesquisa científica e tecnológica em empresas e conceder aos seus pesquisadores licença não remunerada de até três anos, renovável por mais três, para constituir empresa inovadora. A lei ainda prevê que União, instituições de pesquisa e agências de fomento à pesquisa promovam o desenvolvimento de processos e produtos inovadores nas empresas mediante concessão de recursos financeiros, humanos, materiais ou de infraestrutura. “O aporte de recursos financeiros pode se dar sob a forma de subvenção econômica, financiamento, participação acionária, ou através de ‘encomendas tecnológicas’ por parte do governo”, escreve Carolina.
A Lei do Bem, por sua vez, dispõe sobre incentivos fiscais para a inovação tecnológica, entendida como “a concepção de novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando maior competitividade no mercado”. Rafael Dias explica que o conceito mais tradicional de inovação é o atribuído ao economista Joseph Schumpeter, que a entendia como um novo produto ou processo produtivo que a empresa faz “para se diferenciar temporariamente das suas concorrentes no mercado e gerar uma situação de desequilíbrio de concorrência que permite que ela explore um lucro diferenciado por determinado período de tempo”. Rafael completa: “A inovação é intrinsecamente ligada ao mercado, à obtenção de lucro”. Segundo ele, embora o governo federal não adote explicitamente o conceito de inovação proposto por Schumpeter, ao colocar o foco das políticas no mercado, como na definição da Lei do Bem, mostra que essa formulação tem aderência na esfera pública. Dentre os incentivos fiscais previstos por essa lei estão: reduções de imposto de renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), redução de 50% do Imposto sobre Produtos Industrializados incidentes sobre equipamentos e maquinas destinados à pesquisa e desenvolvimento tecnológico, entre outros.
Segundo Carolina, a Lei da Inovação e a Lei do Bem institucionalizaram os mecanismos de subvenção econômica à inovação no Brasil, com a concessão de recursos não reembolsáveis para empresas públicas ou privadas que desenvolvam projetos de inovação considerados estratégicos, que resultaram em um aumento significativo dos recursos públicos destinados à inovação empresarial por meio da renúncia fiscal. De R$ 953 milhões em 1998, esse montante passou a R$ 6,7 bilhões em 2012, segundo dados do MCTI reunidos por Carolina, que destaca que, em 2010, a renúncia fiscal total do governo federal associada a essas isenções foi equivalente a 90% de todo o dispêndio em ciência e tecnologia realizado pelo MCTI. “Ou seja, os incentivos concedidos às empresas mediante a renúncia fiscal foi apenas 10% menor do que os recursos aplicados pelo MCTI em todos os seus programas (87 no total)”, escreve ela.
Resultados aquém do esperado
Mas qual foi o resultado de tanto investimento? A Pesquisa de Inovação (Pintec), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com apoio da Finep e do MCTI, dá algumas pistas. Segundo Carolina, é possível ver ali dados que corroboram o discurso oficial, que comemora, por exemplo, o aumento dos gastos das empresas em pesquisa e desenvolvimento, que passaram de R$ 2,19 bilhões em 2006 para R$ 8,62 bilhões em 2010. “Isso poderia significar que a política esta alcançando o resultado que pretende, mas a questão está numa análise mais fina, quando olhamos não só quanto mas como ela está gastando e de onde vêm os recursos”.
Segundo ela, o gasto das empresas nessa área como proporção do PIB, deduzidos os valores de renúncia fiscal, vem decrescendo nos últimos anos, passando de 0,25% em 2008 para 0,19% em 2010. “O que a gente observa é a substituição de recursos, as empresas não estão investindo mais e sim menos. O que significa que esses recursos públicos estão sendo usados como substituição e não têm o efeito multiplicador que o governo gostaria”. Além disso, aponta Carolina, a parcela das empresas inovadoras que fez pesquisa e desenvolvimento caiu de 33% em 1998 para 11% em 2008. “Mais do que isso, a percepção das empresas inovadoras com relação à pesquisa também caiu: em 1998, 34% das que inovaram e fizeram pesquisa acharam que ela era de alta e media importância, em 2008 esse número caiu para 12%”, ressalta.
Reflexo disso foi que apenas 0,7% dos produtos e 0,2% dos processos industriais foram considerados novos para o mercado mundial em 2008. Além disso, como destaca Rafael Dias, as políticas de ciência e tecnologia e inovação implementadas hoje no Brasil advogam um conceito de inovação muito amplo. “Por exemplo, a definição da Pintec considera inovação como algo que é novo para a empresa. Pode ser que, em uma determinada indústria, uma empresa seja a última a gerar um novo produto ou processo. Ainda assim aquilo é considerado uma inovação”. De fato, os dados da Pintec mostram que a principal atividade de inovação de cerca de 60% das empresas consideradas pela pesquisa nos últimos dez anos foi comprar máquinas e equipamentos.
Em sua tese, Carolina procurou entender justamente o porquê desse comportamento do empresariado brasileiro. “Temos uma inserção no capitalismo bastante periférica: seis produtos primários respondem por 50% da pauta de exportação: café, minério de ferro, petróleo bruto, soja, carnes e açúcar”, aponta. Segundo ela, além de não demandar grandes aportes de conhecimento e tecnologia, essa produção também contribui para o quadro de desigualdade social existente no país, por estar a produção de bens primários concentrada nas mãos de poucos produtores.
“Mesmo com todas as melhorias na área social, ainda somos um dos países mais desiguais do mundo: 50% das famílias têm até um salário mínimo para sobreviver. Até 2010, o eletrodoméstico mais presente nas casas era um rádio. Tem uma demanda reprimida de produtos que já existem. Quando a gente pensa em inovação, a ideia é produzir um novo produto para um mercado de massa. Estamos num país onde metade da população tem esse perfil de renda e onde, além disso, a pauta de consumo da população dos mais ricos é exatamente a pauta de consumo dos países avançados. O carro dos sonhos do milionário brasileiro é o carro dos sonhos que já existe na Europa, o celular que todo mundo quer no Brasil é o celular que já existe lá fora. Não tem por que inovar”, aponta Carolina.
Inovação e interesse público
Renato Dagnino complementa, argumentando que o comportamento da empresa é, portanto, racional do ponto de vista competitivo. “No entanto, a comunidade de pesquisa diz de uma forma muito enfática que eles são atrasados, que não sabem o valor da pesquisa. Se temos um parâmetro para avaliar um empresário, esse parâmetro é a taxa de lucro e, sendo assim, o brasileiro está entre os melhores, e por isso não faz pesquisa”. Segundo ele, os dados mostram que a política de ciência e tecnologia voltada para o favorecimento da empresa é “contrafática” e contra a racionalidade do capitalismo. “Enquanto estamos gastando dinheiro numa coisa que não vai ocorrer e que caso ocorresse tenderia a agravar e não a melhorar a desigualdade, nós não estamos gastando recursos para desenvolver tecnologia e formar recursos humanos na área que chamamos de tecnologia social, por exemplo”. Ele chama a atenção para a disparidade na alocação de recursos no interior do MCTI: “O ministério tem uma recém-criada Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social, mas ela absorve apenas 2% do orçamento; as empresas levam 40%, a comunidade científica 30% e outros 28% vão para grandes projetos de interesse do ministério, como submarino nuclear, projetos na área de defesa”.
Rafael Dias segue a mesma linha: “Com o Inova Empresa, não são apenas R$ 30 bilhões que estão saindo do governo e indo para as empresas, são R$ 30 bilhões que estão deixando de ir para outras coisas, como escola pública, hospital, universidade e todas essas coisas. Com esse discurso de que qualquer ciência é boa, as pessoas não questionam muito a legitimidade desse tipo de destinação do recurso público”, alerta. Mas ele acha que essa ideia deve ser colocada em discussão. “Sabemos que determinada tecnologia favorece mais a um grupo do que a outro. O bonde elétrico, que já circulou por muitas cidades brasileiras, foi aposentado faz tempo em nome do carro. Isso é um exemplo de tecnologia que favorece a alguns interesses, como as montadoras de automóveis e quem tem mais dinheiro para comprar um carro, e desfavorece aqueles que poderiam se beneficiar do transporte público”, diz o professor da Unicamp. Rafael afirma que outro fator que evidencia como as políticas públicas nessa área atendem a interesses particulares é a análise do que elas deixam de contemplar. “Planos como esse preveem, por exemplo, estímulos à produção do etanol, então claramente atendem interesses de grandes produtores rurais, mas nele não estão contempladas demandas sociais mais amplas. Por que não vamos contemplar inovações para combater problemas associados à pobreza, à exclusão social, desenvolver processos adequados para cooperativas, para pequenas propriedades familiares? É significativo pensar também naquilo que deixa de estar presente na política pública”, opina.
No artigo ‘Sobre a mercantilização da ciência: a dimensão programática’, Marcos Barbosa de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo (USP), defende que o conceito de inovação é o cerne da principal estratégia neoliberal para promover a mercantilização da ciência. Para ele, a alocação de recursos públicos para a pesquisa nos moldes do inovacionismo afeta negativamente o que ele chama de “ciência do interesse público”, entre outros domínios. “A ciência do interesse público pode, para nossos propósitos, ser definida como a ciência direcionada pelo interesse público, especialmente os dos setores mais pobres da população, e voltada para os problemas não susceptíveis de superação pelos mecanismos do mercado. Em muitos casos, os resultados de tais pesquisas não apenas não geram aplicações rentáveis, mas prejudicam os lucros das empresas”, escreve Marcos, dando como exemplos várias áreas com interface com a saúde, como os problemas ambientais, os riscos das novas tecnologias como os transgênicos, as consequências “nefastas” do modelo tecnológico da agricultura e, mais especificamente, a medicina preventiva, que procura avaliar o impacto sobre a saúde humana das várias formas de poluição, e das substâncias químicas encontradas nos alimentos, bem como as chamadas doenças negligenciadas, que afetam majoritariamente as populações dos países pobres, carentes do poder aquisitivo necessário para tornar rentáveis as pesquisas voltadas para seu tratamento ou prevenção. Dados da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) mostram que o setor investiu em todo o mundo US$ 63,2 bilhões em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em 2007.
No entanto, um estudo intitulado ‘G-FINDER’, que faz um levantamento sobre o financiamento mundial de inovação para doenças negligenciadas (custeado pela Fundação Bill e Melinda Gates) mostrou que os investimentos nessa área somaram apenas US$ 2,5 bilhões naquele ano. Um exemplo é que, dos 1.556 novos remédios registrados entre 1975 e 2004, apenas 21 foram desenvolvidos para doenças negligenciadas que, de acordo com a OMS, são responsáveis por 12% da carga global de doenças e afetam cerca de 1 bilhão de pessoas em 149 países.
Além disso, continua Marcos em seu artigo, apenas 10% do montante investido em pesquisa pela indústria farmacêutica vai para doenças que afetam mais os países pobres, onde moram 90% da população. “Não é difícil entender isso, no capitalismo o interesse é acumular capital e não necessariamente isso vai ser compatível com o que a população espera em termos de atenção a demandas por saúde. Basta você ver o que é desenvolvido em termos de medicamento: em que a indústria investiu uma fortuna? Remédio para disfunção erétil”, aponta Kenneth Camargo Júnior, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), que vê com preocupação a predominância do discurso da inovação.
“Temos que pensar o quanto isso está ligado a uma concepção privatista da questão da propriedade intelectual, que é outra grande fronteira de batalha no mundo inteiro, que bate na questão das patentes. Esse modelo de patentes para a indústria farmacêutica vem sendo crescentemente criticado”, diz, chamando a atenção para o perigo que o sigilo exigido pelas empresas acarreta para a área da saúde pública. Ele cita um exemplo que, embora tenha acontecido nos Estados Unidos, ilustra bem a importância da livre circulação do conhecimento na área. “Houve um caso de dez anos atrás que ficou célebre: uma empresa que estava fazendo um ensaio de uma droga para tratamento de doença fibrocística, e em dado momento, a médica pediatra que era a investigadora principal de um dos ensaios clínicos viu que a droga estava criando problemas hepáticos graves. Ela suspendeu o ensaio e divulgou isso para a imprensa. O resultado é que ela foi processada pelo laboratório que estava produzindo a droga por conta de uma cláusula que ela assinou que proibia a divulgação da pesquisa. Isso está cada vez mais frequente, e essa coisa do interesse do sigilo é frontalmente contra uma peça chave da ciência, que é a livre circulação do conhecimento. Essa é uma coisa que me preocupa”, diz.
Rafael Dias identifica o mesmo problema na penetração das empresas nas universidades públicas. “Há uma crescente participação de empresas privadas em convênios de pesquisa, empresas financiando projetos de pesquisa em universidades públicas, com participação de alunos de pós-graduação. Em algumas universidades começamos a observar uma pratica que é nova e está ligada a esse processo, que é a defesa de teses a portas fechadas. Quer dizer, o sujeito está produzindo conhecimento em uma universidade pública, usando infraestrutura pública e defende a tese a portas fechadas porque tem segredos industriais envolvidos. É um exemplo pontual, mas é extremamente simbólico de como esse processo de privatização do espaço público esta se dando de forma muito sutil”, alerta.
Kenneth também aponta a questão do conflito de interesses como preocupante nesse cenário de inserção da empresa privada nas instituições de pesquisa. “Há alguns anos houve uma reunião do comitê da associação cardiológica americana que decidiu que o valor ideal para o colesterol tinha que ser abaixado em um miligrama por decilitro de sangue. Ao fazer isso, instantaneamente o mercado potencial de consumidores de estatina [droga para o controle do colesterol] pulava de 13 milhões para 36 milhões. Isso só nos Estados Unidos, imagina no resto do mundo? Ai descobriu-se que dois terços dos médicos que faziam esse painel eram financiados por indústrias que produziam estatina”, relata Kenneth, completando: “Não dá para ser ingênuo e achar que o mercado dá conta de todos os problemas”.
Substituição de recursos
A análise dos dados da Pintec permite deduzir que os recursos públicos direcionados para a inovação não estão tendo um efeito multiplicador como o governo almeja, como aponta Carolina. “As empresas estão deixando de usar recursos próprios e de financiamento para usar recursos de subvenção e isenção fiscal. Então é bastante compreensível a CNI e outras entidades empresariais defenderem a manutenção e mesmo o reforço desta estratégia: que empresário não gostaria de substituir recursos próprios por públicos, principalmente os que não exigem o reembolso à instituição financeira, como é o caso dos incentivos fiscais e subvenção?”, indaga.
Além disso, completa Carolina, as empresas têm seguido uma tendência de investir os recursos públicos em atividades que, embora sejam consideradas inovativas, não geram novos produtos e processos e acabam agravando a dependência externa ao fiar-se na importação de conhecimento tecnocientífico, como é o caso da compra de máquinas e equipamentos. Para piorar, como aponta a pesquisadora, para ser considerada brasileira, basta que a empresa tenha sede no Brasil, fazendo com que as multinacionais também tenham acesso aos recursos de fomento à inovação. “Como as empresas brasileiras não têm por padrão inovar, quem usa os recursos em geral são multinacionais, fazendo com que, por exemplo, a Nokia e a Motorola, entre outras tantas multinacionais, tenham acesso à subvenção no Brasilo que é ainda mais gritante”, explica.
Márcia Teixeira, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), critica o que chama de “superfinanciamento” da inovação. Segundo ela, o Brasil está emulando o modelo norteamericano, onde 70% dos pesquisadores estão empregados nas empresas, que contam com laboratórios industriais, situação que não é identificada no Brasil. “Aqui, em geral, a saída das empresas é dizer ‘vamos fazer pesquisa através de parcerias com o público’, o que significa utilizar a infraestrutura, os pesquisadores, técnicos e tecnologistas de universidades e centros de pesquisa. É um superfinanciamento para as empresas. Além daquele que você está dando por meio da subvenção e isenção fiscal, tem uma parte que é invisível, porque se usa o lado público”, ressalta.
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