15 Abril 2013
Com o avanço do projeto de um novo marco legal antidrogas no Brasil, de autoria do deputado federal Osmar Terra (PMDB), a internação compulsória despertou debates na sociedade. Em Porto Alegre, o assunto foi debatido na última semana em sessão acalorada na Câmara Municipal. Entre os contrários à medida, estava a psicóloga e ativista do Movimento Antimanicomial, Fátima Fischer. Em entrevista ao Sul 21, ela afirma que não compreende o surgimento da proposta de uma nova lei com previsão de medidas que já existem na Lei da Reforma Psiquiátrica. “O projeto faz uma relação moralista e criminalizante das drogas. Já temos no país metodologias bastante avançadas para oferecer cuidado”, fala.
O texto avançou no Senado Federal e prevê que a decisão do tratamento pode ser imposta ao usuário por decisão judicial mediante laudo psicológico. Para a psicóloga Fátima Fischer, que atua há 26 anos em saúde mental coletiva e esteve na direção e implementação do primeiro serviço de saúde mental para enfrentar o problema das drogas, é necessário um atendimento em rede e não isolado apenas na internação. “Nós já temos uma legislação universal que prevê a internação compulsória para desintoxicação e o apoio para reinserção na família depois. No nosso entendimento, este novo projeto está transformando a internação compulsória em internação forçada. Parece que é algo dirigido para ‘higienizar’ parte da população”, afirma.
Fátima Fischer faz parte do Fórum Gaúcho de Saúde Mental desde 1979 e também do Movimento em Defesa da Reforma Psiquiátrica no Brasil, hoje organizado como núcleos estaduais no país. Atualmente é professora e supervisora de estágio na Unisinos e é vice-presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul.
A entrevista é de Rachel Duarte e publicada no portal Sul 21, 15-04-2013.
Eis a entrevista.
O projeto de lei que trata da internação compulsória de dependentes químicos e de traficantes de drogas presos que sejam dependentes – decisão pode ser imposta ao usuário por decisão judicial — foi aprovado no dia 10 de abril na Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal. Qual a sua opinião sobre ele?
É um debate necessário, porque é uma temática que atinge a toda a sociedade, a questão da dependência e a necessidade de tratamento. A primeira estranheza que temos em relação ao autor desse projeto, que é o Osmar Terra, é que as questões que ele está defendendo em relação ao acesso ao tratamento já estão previstas em lei, na Lei da Reforma Psiquiátrica, que gerou debate muito intenso na sociedade brasileira. Ela foi conquistada no Rio Grande do Sul mais cedo que nos outros estados do Brasil, e ela já assegura três modalidades previstas no projeto de lei, que são a internação voluntária, involuntária e compulsória. Ela inclusive é muito mais avançada, porque a lei estadual prevê, por exemplo, que quando há risco para a família, não só na questão de drogas, mas também na de saúde mental, fica assegurada a internação sem adesão do usuário/paciente. Todos os dados científicos, todos os dados da realidade nacional e internacional, têm mostrado que várias otras modalidades têm sido mais eficazes. A mídia e o autor desse texto trabalham com uma estratégia intimista, colocam casos muito graves que a gente vê como gerais, quando muitas vezes não são todos os casos que chegam a esse extremo. Essa medida de tirar da rua faz lembrar uma política muito higienista, ela torna obrigatória o tratamento só de quem está na rua.
Na sua avaliação, se esta lei for aprovada ela fará uma higienização das camadas mais pobres?
Neste debate entra toda a questão da criminalização da venda e do consumo de drogas, do que é lícito e do que é ilícito. Não podemos focar só nesta fatia (dos usuários de drogas ilícitas), quando temos um número nove vezes maior de óbitos por adesão ao cigarro e álcool, que não são proibidos, do que em relação ao número de óbitos por outras drogas. A internação compulsória abre a possibilidade de uma generalização, que todo mundo, independente da intensidade e da quantidade que usa, ficará submetido a uma legislação que garante uma internação contra a vontade. Essa é a questão central. A lei surge para a assegurar algo que já está assegurado na Lei da Reforma Psiquiátrica. Por isso acreditamos que existe nessa discussão outra motivação, que é diferente daquela que a lei já em vigor no país prevê.
Fala-se muito que a pior luta é contra o crack. A senadora Ana Amélia (PP-RS) é defensora deste discurso. A senhora concorda com esta posição?
Eu tenho realmente me preocupado com esta discussão de que há uma epidemia de crack. O que acontece, em minha opinião, é que sempre temos a “droga da vez”. A nossa sociedade não viveu e não viverá sem drogas. Ela vai transformando, trazendo outras drogas. O crack é a bola da vez que daqui a pouco vai ser suplantada por outra. É, portanto, um pouco arriscado entrar naquela linha moralista de criminalizar uma droga específica. Uma legislação anti-drogas que pretende antecipar aquilo que pode acontecer com o consumo de determinado tipo de droga, lida com um aspecto muito mais depreciativo e criminalizador. É usar uma prerrogativa igual para todos os usuários que passam a ser vistos como dependentes, o que não é verdade. A discussão sobre a “epidemia do crack” está focada só nesse sentido. O que nós precisamos aumentar são os investimentos para assegurar uma rede de atendimento que vá desde a atenção básica de saúde mental, direto na vida das pessoas, até a internação. Nós não somos contra a internação. A pessoa precisa ser desintoxicada e, após a desintoxicação, tem que se começar um trabalho de reinserção desse sujeito. Ver como ele se acomoda em família, se a família vai conseguir lidar com isso, se houver família. Então ele tem que ter muito mais uma rede de apoio de outras áreas. A questão do uso de drogas, além de ser uma questão psiquiátrica e biológica, não leva em consideração todo o contexto de outras políticas que têm que estar asseguradas. Então internar, afastar a pessoa do consumo, afastar a pessoa daquele lugar onde ela se desorganizou, seja na família ou na rua, é bastante importante. Mas o que nós temos que fazer, e o que nós defendemos, é que isso se construa junto com a família e com a pessoa, mas a legislação nossa estadual já prevê que se informe o MP, que manda uma junta naquele hospital, pra prever se aquela internação é devida ou indevida.
O projeto como está não corre o risco de retornar o apenamento ao usuário, ponto que já foi derrubado da Lei de Drogas? Não é um retrocesso se passar essa lei?
Isso é um retrocesso, e existe uma associação direta com o usuário de droga como um ‘doente mental’. Uma vez usuário de drogas, doente mental. Uma vez doente mental, certamente cometerá crimes ou violência. A criminalização dos usuários está sempre atrelada à violência. As pesquisas mostram que, em percentual, as pessoas que estão nesta situação (de usuários de drogas) e que cometerão algum ato de violência chegam a mais ou menos 6%. Uma vez usuário de droga, logo delinquente. É uma relação que consideramos muito atrasada. Se a gente olha a Lei Da Reforma Psiquiátrica, ela assegura o direito universal a todos. Eu como mãe, por exemplo, ou como médico, tenho o direito de trazer uma pessoa para o tratamento contra a vontade, mas mais adequando construir esta vontade com ele, que seria a internação involuntária. O que nós entendemos é que está transformando esse projeto de lei é numa internação forçada. A compulsória tem um agente público que vai discutir, ver a possibilidade ou não da internação. Há a questão de classe social também, que tu mencionaste, parece que isso dirige os atos infracionais mais para uma determinada faixa da população. Então essa política é dirigida para qual parcela da população? Achamos que a medida que existe já assegura o cuidado, que é diferente dessa relação de “uma vez usuário, logo dependente, logo doente, logo criminoso”, esse é um complicador bastante grande.
Quais as conseqüências se esta lei for aprovada? Em São Paulo, por exemplo, o governo paulista levou dependentes para o Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental Philippe Pinel e deixou psicóticos sem tratamento para poder suprir a nova demanda.
Por baixo desta iniciativa, às vezes muito demagógica ou midiática de internação, acaba acontecendo que, ao invés de se investir na garantia de assistência, vai se tirar investimento daquele que já está na rede e já conseguiu atingir o tratamento por conta dessa medida. Então, fica muito claro com a realidade de São Paulo, o caráter coercitivo da ótica da política pública. Então eu estou lá fazendo tratamento, e preciso sair da minha vaga porque vai entrar alguém que não é só usuário de drogas, vem com um peso de ser criminalizada. É uma questão muito séria, se faz uma associação direta. Criou-se a tese de que existe uma epidemia e já estão dando a solução na internação compulsória. E as pessoas já estão nos procurando, ligando para saber onde internar, onde tem vaga. Eu acredito que, com o estouro que vai dar, com a repercussão, caso a lei passe, que nós vamos ter que criar mais leitos, mais hospitais, e talvez mais prisões. A proposta foca principalmente nos leitos, não trabalha com perspectiva de todo o atendimento. Então não teremos vagas para todas as pessoas consideradas usuárias, porque na legislação proposta tudo que é usuário passa a ser dependente.
Qual alternativa para conseguir mudar esta cultura de dividir de um lado do muro os ‘sãos’ e do outros os ‘loucos/criminosos’? Porque, em tese, os casos que vão à internação não são aqueles onde a família e o estado já abandonaram? Como intervir?
É uma situação bastante difícil. Precisamos que a sociedade seja capaz de tornar as pessoas mais felizes, mais realizadas e que não precisem usar sempre a bengala de outro artifício. As pessoas buscam compensações em qualquer outro tipo de consumo, não só as drogas lícitas e ilícitas. Isto é um desafio para toda sociedade. As drogas ilícitas são um recurso que as pessoas adotam. Mas a bebida alcoólica, o chocolate, enfim, existem outros subterfúgios. Acredito em outras estratégias, das quais eu pratico, que são as redes solidárias, de apoio, amizade e cultura. O problema não é as drogas, mas a relação que estabelecemos com ela. O projeto (Internação Compulsória) faz uma relação moralista e criminalizante das drogas e já temos no país metodologias bastante avançadas para oferecer cuidado. Sabemos que ainda é insuficiente. A própria Reforma Psiquiátrica, quando começou, não tinha isto como grande questão, passou a incorporar isto depois. Nós inclusive desafiamos o próprio proponente da matéria (deputado Osmar Terra) a se unir à nós para lutar pela ampliação do que já está em desenvolvimento para ampliar a rede de cuidado com os usuários. Mas este tema envolve um contexto muito maior. Nós vivenciamos certa vez, em Porto Alegre, um exemplo concreto de uma menina usuária de cocaína que participou de um projeto nosso de realização de um filme e no dia da apresentação do filme ela estava de cara limpa, eu questionei ela e ela disse que para assistir o resultado da arte dela, que tinha dado trabalho para fazer, ela tinha que estar bem. Se pudéssemos dar mais possibilidades de projetos como este, será que não traria efeitos na vida da pessoa? Claro que não resolveremos o problema das drogas apenas com isso. Mas eu gostaria de ver o deputado falar que temos que enfrentar o tráfico. Enquanto tivermos oferta de drogas e um mercado muito sustentável em cima disso, nós vamos perder para a droga. Nós estamos perdendo porque é uma mercadoria que está sempre sendo ofertada na nossa frente. Se o projeto for aprovado, vamos continuar lutando por algo diferente. Um trabalho que garanta a assistência no cuidado básico de saúde mental até a internação, com política educacional e incentivo de mudança cultural na nossa relação com a droga. Temos que compreender a complexidade e a ação com mais de uma disciplina. Não é só internando.
Por que a senhora é a favor dos leitos psiquiátricos?
A Lei da Reforma Psiquiátrica surgiu no Rio Grande do Sul em 1992 e no Brasil em 2001, mas foi apenas em 2007 que conseguimos que os investimentos em saúde para internação fossem menores que os investimentos de saúde na rede. Hoje, o investimento para quem estaria internado vai para remunerar um leito em hospital geral. Se internar em hospital geral o benefício é melhor. Há várias experiências que estão dando acerto. É uma aposta que acreditávamos que seria apenas o lucro com a doença mental que impedia isso, mas é mais do que isso. Se os hospitais ganham mais dinheiro para internar em leito geral, por que não se faz? Por exemplo, os hospitais-escola no RS e no Brasil tem dever internar por leito do SUS e os leitos não estão sendo ofertados para a população. As pessoas nem sabem disso, muitas vezes. É garantido na legislação. Para um hospital ser hospital-escola tem que oferecer leito pelo SUS. Então, esta questão dos leitos é importante. Nós precisamos de leitos psiquiátricos, mas precisamos de um reordenamento para que se tornem realmente leitos públicos e que haja um fortalecimento na rede para termos uma rede afetiva de apoio também.
As instituições totais devem deixar de existir? Por quê?
Porque as instituições totais são reprodutoras de práticas de exclusão e retiram a possibilidade das pessoas de subjetivar. Um conceito que eu gosto é ‘expropriação da subjetividade’. Nós precisamos de várias instituições, elas são necessárias, mas precisamos também que tenham uma característica não massificante. Estas instituições já cumpriram um papel na humanidade, mas estão sendo transformadas. Uma instituição prisional ou psiquiátrica que tornar a relação com o usuário mais íntima e próxima, será mais eficiente. Nós acreditamos que as instituições totais não são capazes de produzir cuidados ou cumprir o papel para o qual elas foram criadas, como os presídios que se pretendem ressocializar os indivíduos. Se trabalharmos com apenados/usuários em instituições menores teremos mais chances. Nas instituições totais de massa, as rotinas se tornam padronizadas e o usuário recebe tratamento homogeneizado, impossibilitando que a instituição cumpra a função que deveria cumprir. O sujeito vira objeto dentro da instituição, com as sucessivas práticas massificadas que vão ressurgindo internamente.
A senhora é reconhecida pela luta antimanicomial no país. O quanto o Brasil está avançando para a Reforma Psiquiátrica e em políticas de saúde mental?
Nós precisamos de investimentos em formação de pessoal e de educação continuada para quem trabalha com este tema. Ao longo da minha experiência, fiz estudos de campo e percebi que em três meses de atividade do profissional nas instituições, este começa a se mortificar também. Ele deixa de acreditar, de sonhar, de ter esperança no seu trabalho. Ele não consegue enfrentar a dureza do trabalho. Imagina o impacto da desistência e desânimo do profissional nos usuários. Mas é surpreendente a transformação de alguns usuários que reaparecem enquanto sujeitos, quando eles não sentem essa atividade profissional mortificada. Às vezes alguém começa a cantar uma música, em determinada atividade, que tem uma história e quem alguém já desistiu, retorna à luta.
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Marco legal antidrogas: ''A internação compulsória é moralista e criminalizante'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU