17 Março 2013
Ele se encontrou pessoalmente com o cardeal Jorge Mario Bergoglio apenas uma vez nos anos 1970, durante um retiro espiritual. Mas o brasileiro Leonardo Boff, um dos fundadores da Teologia da Libertação, coloca muitas esperanças no novo papa. Ele vê nele o vento da "primavera", que desfaz o "frio inverno da Igreja". E a arrasta ao terceiro milênio. "Ele sempre esteve do lado dos pobres e dos oprimidos, como nós, teólogos da libertação". E isso lhe basta. Não se importa com a marca e não acredita na cumplicidade com a ditadura militar.
A reportagem é de Eleonora Martini, publicada no jornal Il Manifesto, 15-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Que homem é Jorge Maria Bergoglio e que papa será Francisco?
Para mim, o importante agora não é o homem, mas sim a figura de um papa que escolheu se chamar Francisco, que não é apenas um nome, mas sim um projeto de Igreja. Uma Igreja pobre, popular, que chama todos os seres da natureza com as doces palavras de "irmão" e "irmã". Uma Igreja do Evangelho, distante do poder e próxima das pessoas.
Em sua opinião, o cardeal Bergoglio tem as cartas certas para trazer essa renovação à Igreja?
Francisco recebeu em São Damião esta mensagem: reconstruir a Igreja que está em ruínas. Hoje, estamos em um rigoroso inverno, e o próprio castelo que os dois últimos papas criaram está em ruínas. E agora um novo papa vem de fora dos muros de Roma, quase dos confins do mundo, como ele mesmo disse, externo àqueles círculos de poder. E eu acredito que, acima de tudo, ele trabalhará internamente à Cúria para resgatar a credibilidade da Igreja, manchada pelos imbróglios, pelos escândalos dos pedófilos e do banco vaticano... E depois fará uma abertura ao mundo moderno, porque tanto Bento XVI quanto João Paulo II interromperam o diálogo com a modernidade.
É um erro renunciar a entender e a dialogar com a cultura moderna. Difamá-la e considerá-la como puro relativismo e secularismo, não reconhecer os seus valores, é uma blasfêmia contra o Espírito Santo. As pessoas buscam uma verdade mais rica e mais ampla do que aquela da qual a Igreja acredita ser a portadora exclusiva. Ao contrário, a sua postura é de poder. Enquanto o sentido evangélico do papado é unir os fiéis cristãos na fé, no curso da história, ao invés, criou-se uma monarquia absolutista que pensa nas coisas em uma perspectiva jurídica. Esse papa logo disse que quer presidir a Igreja na caridade. Esse é o sentido da mais antiga tradição da função de Pedro. Penso que esse papa é o novo rosto da Igreja, humilde e aberta, que pode trazer a experiência do "Grande Sul", onde vivem 70% dos católicos.
A experiência latino-americana, em particular?
A nossa Igreja não é mais o espelho da Igreja europeia. É uma Igreja fonte, que desenvolveu um rosto e uma teologia próprias, uma pastoral com raízes nas culturas locais. Francisco trará essa vitalidade à Igreja universal, para acabar com o inverno rigoroso e entrar em uma perspectiva de primavera. Bergoglio oferece essa esperança, e a promessa de que o papado possa ser vivido de forma diferente.
Nos anos 1970, o jesuíta Bergoglio, segundo alguns observadores argentinos, teve uma atitude controversa com relação à ditadura militar. É ainda mais compartilhada a opinião segundo a qual ele é avesso à Teologia da Libertação. Qual é a sua opinião?
Recentemente, Pérez Esquivel desmentiu que Bergoglio fosse cúmplice da ditadura argentina, explicando que, ao invés, ele salvou muitos perseguidos pelo regime militar. O que é certo é que ele sempre tomou a posição dos pobres e dos oprimidos, também no seu estilo de vida: é uma pessoa simples que viaja de ônibus, que vive em um pequeno apartamento, cozinha sozinho... Vem do povo, e se vê isso também na sua ação pastoral. No YouTube, há um vídeo muito bonito de Bergoglio que fala da dívida que todos temos para com os pobres, porque a desigualdade é fruto de uma sociedade antiética e anti-humana. E a marca registrada da Teologia da Libertação é a opção pelos pobres e contra a pobreza.
Mas mesmo assim ele é filósofo, teólogo, reitor universitário. Segundo alguns especialistas, pode-se dizer que ele é muito distante ao menos daquela teologia da libertação de marca marxista.
Essa é a versão das ditaduras militares que sempre caluniaram a Teologia da Libertação. Que, depois, foi aceita por Ratzinger como uma forma de teologia [por exemplo, nomeando em 2012, como prefeito da Congregação para os Religiosos, o arcebispo brasileiro João Braz de Aviz, e, como chefe da Doutrina da Fé, Gerhard Ludwig Müller, ambos muito abertos à Teologia da Libertação, n.d.r.]. Mas nunca tomamos Marx como padrinho da Teologia da Libertação. Eu mesmo não sou marxista. E nunca existiu uma Teologia da Libertação marxista. O movimento da Teologia da Libertação, além disso, nunca foi forte na Argentina, onde, ao invés, desenvolveu-se uma teologia própria, encarnada na cultura popular local. Não se pode dizer que Bergoglio fosse contra esse tipo de teologia.
Como teólogo, porém, Bergoglio nunca reconheceu o valor do movimento da Teologia da Libertação, não é mesmo?
Ele é jesuíta e, como tal, possui uma ótima formação intelectual. Depois, estudou na Alemanha, como eu. Por isso, é também muito aberto intelectualmente. Mas eu não me importo com o título "Teologia da Libertação". Ao contrário, me importa qual atitude se opta por ter diante dos pobres e dos oprimidos do mundo. Bergoglio está do nosso lado. A nossa Igreja latino-americana tem muitos mártires: Oscar Romero, Enrique Angelelli, muitos colegas meus que foram sequestrados e assassinados durante a ditadura. Eles não tinham uma ideologia na cabeça, mas sim um certo tipo de atitude com as favelas, com os bairros, com os pobres. E isso é importante. Que nome damos a tudo isso, não importa.
Francisco de Assis enfrentou o advento da economia monetária na época em que, na Itália, nasciam as primeiras comunas, prospectando uma visão de mundo diferente. O senhor acredita que, do mesmo modo, o desafio do Papa Francisco também é o de repensar, na fase atual, a relação da Igreja com o sistema capitalista?
Eu acho que, como dizia o historiador inglês Arnold Toynbee, no tempo de São Francisco, depois do caos do Império Romano que introduziu a moeda – estamos nos albores do sistema capitalista –, simultaneamente, apareceu a oposição. Francisco era uma pessoa antissistema. Justamente Ratzinger, em um artigo famoso, disse que São Francisco – que viveu no tempo do Papa Inocêncio III, que foi o imperador talvez mais rico de toda a história cristã – era o contraponto. Ele vivia uma resistência profética, sem fazer nenhuma crítica oral, mas percorrendo um caminho evangélico alternativo. Esse é o ensinamento de São Francisco, no plano do viver, o viver sem títulos sobre a terra e não em posições de poder. Francisco não era padre, era um leigo. E nós esquecemos isso. Com a figura de Francisco, esse papa assume todo um conjunto de valores: valoriza os leigos e os movimentos populares. Algo muito importante, porque o tema central do mundo agora não é a Igreja, mas sim o futuro da vida, o peso do ser humano. Ora, para mim, a pergunta é o que a Igreja Católica faz para ajudar a humanidade a sair dessa crise, que pode ser determinante. Francisco pode ser o papa do fim do mundo, porque construímos uma máquina de morte que pode destruir tudo. Para mim, a mensagem de São Francisco é a único que pode nos arrastar para o terceiro milênio: ou a tomamos, ou vamos rumo ao fim.
Mas o poder temporal da Igreja, o sistema do Estado vaticano podem se libertar da sujeição ao capitalismo?
Eu acho que é inútil pensar em uma reforma do sistema capitalista, que já deu tudo o que podia dar e chegou ao fim. É preciso ir rumo a outro paradigma, para um "bien vivir", como dizem os índios latino-americanos. É preciso superar a dimensão temporal, política, do Vaticano, uma monarquia absolutista do passado. É preciso renunciar às nunciaturas, utilizar os bancos éticos, descentralizar a Igreja. Por que o dicastério das missões não pode ficar na Ásia? Por que o dos direitos humanos e da justiça não pode vir para a América Latina? E por que o do diálogo intereclesiástico não vai para Genebra, juntamente com o Conselho Mundial de Igrejas? Essa descentralização já foi pensada no Concílio Vaticano II. Os últimos dois papas esvaziaram essa instância de funcionalidade da Igreja e foram rumo à centralização do governo. Na base social desse tipo de Igreja, há grupos fundamentalistas como o Opus Dei, Comunhão e Libertação, os Cruzados do Evangelho.
Portanto, o fato de ter preferido Bergoglio com relação ao cardeal brasileiro Odilo Scherer, membro da Comissão Cardinalícia de Vigilância do IOR, é um sinal muito importante?
Graças a Deus, Scherer – que era o candidato da Cúria Romana, um conservador com uma autoridade muito forte – não é o novo papa.
No entanto, o cardeal Bergoglio ficou marcado na Argentina pela sua campanha contra as uniões homossexuais.
Até agora, ninguém na Igreja podia se afastar dessa visão de mundo. Ele, no entanto, há alguns meses, permitiu que um casal homossexual adotasse uma criança. Isso significa que não é uma pessoa inflexível. Agora, pode abrir uma discussão ampla sobre o celibato, sobre a sexualidade, sobre a reintrodução dos padres casados. Porque a Igreja tem uma crise institucional tremenda, não pode ser uma ilha sozinha no meio do mar.
Qual é o bem comum da Igreja Católica?
É a tradição de Jesus, o amor incondicional. Unir os dois polos: o Pai nosso com o nosso pão. Isto é, abrir-se à transcendência e preocupar-se com quem têm fome e necessidade. Só assim pode-se dizer amém.
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''Será a primavera depois de um duro inverno''. Entrevista com Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU