03 Março 2013
Se o próximo conclave eleger um papa que irá seguir em frente pelo mesmo velho caminho, a Igreja nunca conhecerá uma nova primavera: ao contrário, precipitará em uma nova era glacial e correrá o perigo de se reduzir a uma seita cada vez mais irrelevante.
A opinião é do teólogo suíço Hans Küng, professor emérito da Universidade de Tübingen, Alemanha, e autor do livro A Igreja tem salvação? São Paulo, Paulus, 2012. O texto foi publicado no jornal La Repubblica, 02-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Foi só no século XI que uma "revolução de cima", a Reforma gregoriana iniciada pelo Papa Gregório VII, introduziu os três aspectos perdurantes do sistema católico: um papado centralista e absolutista, um clericalismo forçado e a obrigação do celibato para os padres e outros membros leigos do clero. Os esforços dos concílios reformadores do século XV, a Reforma Protestante do século XVI, o Iluminismo e a Revolução Francesa nos séculos XVII e XVIII, e o liberalismo do século XIX tiveram um sucesso apenas parcial. Até mesmo o Concílio Vaticano II, de 1962 a 1965, foi freado pelo poder da Cúria.
Ainda hoje a Cúria, que na sua forma atual parece um produto do século XI, é o principal obstáculo a qualquer tentativa de reforma geral da Igreja Católica, a qualquer entendimento ecumênico sincero com as outras Igrejas cristãs e as outras religiões do mundo, e a qualquer atitude crítica construtiva com relação ao mundo moderno.
Em 2005, em uma das suas poucas iniciativas audazes, o Papa Bento XVI teve uma conversa amigável durante quatro horas com este que escreve, na sua residência de verão de Castel Gandolfo. Eu havia sido seu colega na Universidade de Tübingen e também seu crítico mais severo. Por 22 anos, por causa da revogação da minha autorização ao ensino eclesiástico por ter criticado a infalibilidade papal, não tivemos o mínimo contato.
Antes do encontro, decidimos colocar de lado as nossas divergências e discutir assuntos sobre os quais podíamos encontrar um entendimento: a relação positiva entre a fé cristã e a ciência, o diálogo entre religiões e civilizações, e o consenso ético entre fés e ideologias diversas.
Para mim, e para todo o mundo católico, aquele encontro foi um sinal de esperança. Infelizmente, porém, o pontificado de Bento XVI foi caracterizado por desastres e decisões equivocadas. O Papa Ratzinger irritou as Igrejas protestantes, os judeus, os muçulmanos, os índios, os latino-americanos, as mulheres, os teólogos reformistas e todos os católicos progressistas.
Os grandes escândalos ocorridos durante o seu pontificado são bem conhecidos: o reconhecimento da Fraternidade São Pio X, a organização do arcebispo ultraconservador Marcel Lefebvre, ferozmente contrário ao Concílio Vaticano II, e do bispo negacionista Richard Williamson. Depois, houve os tantos abusos sexuais contra crianças e meninos perpetrados por membros do clero, dos quais o papa traz consigo graves responsabilidades por tê-los coberto quando era cardeal. E depois houve o caso Vatileaks que parece ser uma das razões que mais contribuíram para levar Bento XVI à renúncia.
O primeiro caso de renúncia papal em quase 700 anos revela a crise de fundo que incumbe há muito tempo sobre uma Igreja fossilizada. E agora o mundo inteiro se pergunta: o próximo papa, apesar de tudo, poderia conseguir inaugurar uma nova primavera para a Igreja Católica? As desesperadas necessidades da Igreja não podem ser ignoradas. Há uma catastrófica carência de padres na Europa, na América Latina e na África. Muitíssimas pessoas deixaram a Igreja ou fizeram uma "emigração interna", especialmente nos países industrializados. Por trás da fachada, o palácio está desmoronando.
Nessa dramática situação, a Igreja precisa de um papa que não viva intelectualmente na Idade Média, que não seja porta-bandeira de teologias, liturgias ou constituições da Igreja que remontem a essa época. Ela precisa de um papa aberto às problemáticas postas pela Reforma, pela modernidade. Um papa que defenda a liberdade da Igreja no mundo, não só distribuindo sermões, mas combatendo com as palavras e com os fatos pela liberdade e pelos direitos humanos dentro da Igreja, para os teólogos, para as mulheres, para todos os católicos que querem expressar a verdade abertamente.
Um papa que não force mais os bispos a se submeterem a uma linha reacionária, que ponha em prática uma democracia verdadeira na Igreja, modelada sobre a do cristianismo dos albores. Um papa que não se deixe influenciar por um "papa-sombra" situado no Vaticano, como será Bento XVI com os seus fiéis seguidores.
O país de origem do novo papa realmente não tem muita importância. Infelizmente, desde os tempos de João Paulo II, está em uso um questionário para forçar todos os bispos a seguir a doutrina oficial da Igreja Católica sobre as questões controversas, um procedimento selado por um voto de obediência incondicional ao papa. Até agora, com relação a isso, não houve nenhuma dissidência pública entre os bispos. No entanto, a hierarquia católica está consciente da distância que a separa das pessoas comuns sobre questões importantes.
Em uma recente pesquisa na Alemanha, constatou-se que 85% dos católicos são favoráveis a eliminar o celibato dos padres, 79% são favoráveis a permitir que as pessoas divorciadas possam se casar novamente na Igreja, e 75% são favoráveis ao sacerdócio feminino. Em muitos outros países, provavelmente, as porcentagens são similares.
Essas problemáticas devem ser discutidas publicamente, antes e durante o conclave, sem amordaçar os cardeais, como aconteceu em 2005, para mantê-los na linha. Eu, que sou o último teólogo ainda em atividade (além de Bento XVI) que fez parte do Concílio Vaticano II, me pergunto se não haverá no início do conclave, assim como aconteceu no início do Concílio, um grupo de cardeais corajosos dispostos a enfrentar abertamente a facção intransigente da Igreja e exigir um candidato que esteja disposto a se aventurar por caminhos novos, talvez com um novo Concílio reformador ou, melhor ainda, com uma assembleia representativa de bispos, padres e pessoas comuns?
Se o próximo conclave eleger um papa que irá seguir em frente pelo mesmo velho caminho, a Igreja nunca conhecerá uma nova primavera: ao contrário, precipitará em uma nova era glacial e correrá o perigo de se reduzir a uma seita cada vez mais irrelevante.
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A primavera da Igreja. Artigo de Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU