17 Fevereiro 2013
No dia 21 de setembro de 2001, a revista MicroMega, prestigiosa trincheira da intelectualidade de esquerda na Itália, resolveu lançar seu Almanaque de Filosofia, dedicado ao confronto da fé com a razão, com um debate de tema bem cristalino: "Deus existe?". No palco do histórico teatro Il Quirino, em Roma, por duas horas inteiras, apenas dois homens responderam à pergunta. Do lado do "é claro que não" estava o filósofo e diretor da MicroMega, Paolo Flores D’Arcais, um dos expoentes do Maio de 1968 em seu país, professor da Universidade de Roma La Sapienza. Do lado do "é claro que sim", o cardeal Joseph Alois Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
A reportagem e a entrevista são de Christian Carvalho Cruz e publicadas pelo jornal O Estado de S. Paulo, 17-02-2013.
Admirado com a prontidão com que Ratzinger aceitou o embate com um marxista ateu como ele, D’Arcais guarda até hoje a carta que o futuro papa lhe enviou topando o convite. "É difícil reconstruir o clima apaixonado daquela tarde, a participação atenta e entusiasmada com que fomos acompanhados não só pela plateia do teatro como pelas quase 2 mil pessoas que ficaram do lado de fora, seguindo nossas palavras por um sistema de som", conta. De Ratzinger, ele ficou com a imagem de um homem cordial que não fugia da raia - "embora nossa disputa no palco não tenha sido nada diplomática, e sim repleta de críticas mútuas e muito explícitas".
Quatro anos depois, Ratzinger se tornou o papa Bento XVI. O mesmo que, por razões inicialmente não muito claras, mas que aos poucos apontam para a briga de poder na Cúria Romana, renunciou ao trono de Pedro essa semana. Um gesto de "extraordinária honestidade intelectual", segundo D’Arcais, ainda diretor da revista e observador atento das coisas terrenas da Praça São Pedro e arredores. Para o filósofo, Ratzinger já trabalhou e continuará trabalhando para fazer seu sucessor, no mínimo elaborando uma lista de nomes. E ele até arrisca um palpite sobre o primeiro nome dessa lista: o canadense Marc Ouellet, de 68 anos, prefeito da Congregação dos Bispos e presidente da Comissão Pontifícia para a América Latina.
Eis a entrevista.
Qual será o legado do papado de Bento XVI? Seus oito anos à frente da Igreja Católica serão considerados um fracasso ou um sucesso?
O legado mais importante, pelo qual Ratzinger passará à história, é a própria renúncia, que criou um precedente cuja importância ainda não foi suficientemente dimensionada. No futuro, outros papas o imitarão, porque os avanços da medicina tornarão cada vez mais normal a existência de pessoas extremamente velhas, acima dos 90 anos, em relativa boa saúde, mas incapazes de tocar um trabalho massacrante como o governo de 1,2 bilhão de fiéis e uma máquina administrativa ciclópica como a Igreja Católica.
A renúncia expõe uma divisão interna no Vaticano, entre uma Igreja do testemunho, calcada na doutrina e no dogma, e uma Igreja do diálogo, herdeira do Concílio Vaticano II?
Não, ao contrário. Essa divisão não existe mais, a meu ver. E o maior sucesso de Bento XVI, do ponto de vista dele, obviamente, consiste exatamente em ter padronizado e uniformizado todos os vários episcopados continentais e nacionais. Em nenhum deles existe hoje uma corrente progressista que possa configurar uma Igreja do diálogo. O diálogo com o mundo é agora solidamente enraizado na doutrina e no dogma, sem concessões. A última voz dissonante foi a do cardeal Martini. Hoje a alta hierarquia da Igreja é unanimemente ratzingeriana. Outra coisa, é claro, é a Igreja dos níveis mais básicos.
Foi dito que a renúncia foi um gesto humano, que contrasta com a ideia de santidade e infalibilidade do papa. Poderíamos interpretar esse ‘gesto humano’ como um sinal de modernização e abertura, de uma Igreja mais disposta a reavaliar suas posições sobre temas como aborto, divórcio, métodos contraceptivos e casamento gay?
A renúncia certamente dessacraliza a figura do papa. O sumo pontífice não era só o último dos soberanos absolutos, porque, conforme mostra esse caso, também um soberano absoluto pode abdicar. Aos olhos de seu rebanho, Bento XVI foi um soberano com uma aura carismática sem igual, a de ser o vigário de Cristo na Terra, ou seja, o substituto da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade que reina no além - resumindo, um vice-Deus. Mas um vice-Deus que pode se demitir e se tornar um ex-vice-Deus destrói o caráter de sacralidade que, até então, acompanhou a figura papal. Em poucos dias, no Vaticano, haverá um papa emérito e um papa papa. A figura do sumo pontífice se tornará então igual à de qualquer arcebispo de Westminster, embora com muito mais fiéis. Essa dessacralização não implica, contudo, uma atitude de maior secularismo sobre o aborto, o casamento gay e a pílula. Não automaticamente, pelo menos. Mas é possível que a longo prazo a onda da decisão de Ratzinger corroa a inoxidável doutrina conservadora atual.
Nos dias de hoje, qual a real necessidade para a sociedade de que a Igreja seja mais tolerante? Conheço católicos que se mantêm crentes, frequentam a missa, mas não dão importância às determinações do Vaticano, sobretudo nas questões de comportamento. É como se sua fé e o Vaticano fossem coisas distintas, até antagônicas.
Um filósofo ateu como eu não é a melhor pessoa para dizer à Igreja o que seria melhor para seu futuro. Obviamente, do meu ponto de vista, o melhor seria que todas as religiões, que considero superstições, se extinguissem. Mas isso é irrealista. O fato é que até mesmo os católicos praticantes, no nível da massa, têm um senso de obediência esquizofrênico: aceitam a doutrina da fé mais ou menos (e eu me pergunto quantos realmente acreditam na imortalidade da alma e, especialmente, na ressurreição do corpo; se acreditassem firmemente nisso não temeriam a morte, e levariam ao pé da letra as palavras de Jesus de que os ricos não entram no paraíso), mas não dão nenhuma importância às indicações de seus bispos sobre fatos da vida sexual e política. A esse respeito, o comportamento deles hoje não difere do dos secularizados.
Ratzinger, um cardeal voltado ao estudo e à preservação da doutrina e dos valores tradicionais da Igreja, não terá sucumbido ao peso do trabalho político e administrativo?
Acredito que a incapacidade administrativa seja o verdadeiro motivo da renúncia de Bento XVI, até porque ele declarou isso de modo suficientemente transparente. Mas seu governo teria sido inadequado de outras formas? No plano doutrinal, penso que ele uniu a Igreja mais do que nunca. No plano cultural, seduziu pela linha sicut Deus daretur ("como se Deus existisse"), uma parte importante da cultura laica que ele propôs a todo o mundo, inclusive aos não crentes, como uma receita para evitar a catástrofe do niilismo. O único setor em que fracassou foi na condução da máquina da Cúria, agora presa em lutas fratricidas e intrigas dignas da corte papal renascentista - talvez falte o veneno, mas há abundância do veneno pós-moderno, e não menos mortal, que são os dossiês com os quais diversos cardeais estão fazendo a guerra.
Na carta de renúncia, Bento XVI fala em falta de vigor do corpo e da mente...
Esse é o ponto crucial. Ratzinger, de fato, não dá a impressão de ter uma doença grave ou de estar fisicamente debilitado de forma mais séria. Mais do que da falta de força da alma, a renúncia vem da incapacidade de limpar o topo da Cúria, pôr fim às lutas de facções e purificar a Igreja da podridão. Ele sente que não tem energia psicológica ("l’animo") para uma tarefa duríssima, que levaria à ruptura até mesmo pessoal com alguns de seus mais próximos colaboradores. O secretário de Estado Tarcisio Bertone, em primeiro lugar. Por outro lado, não bastaria escolher a facção anti-Bertone para dar credibilidade à Cúria.
Por que não?
Porque o arqui-inimigo de Bertone, o cardeal Angelo Sodano, foi o mais forte patrocinador do mexicano Marcial Maciel Degollado, o monstruoso chefe carismático dos poderosíssimos Legionários de Cristo que Ratzinger quis condenar ainda sob o papado de Karol Wojtyla. Ratzinger não sabe como resolver os dois problemas cruciais para a imagem da Igreja no mundo, o escândalo dos padres pedófilos e o das finanças do Banco do Vaticano, por onde transitaram, e provavelmente ainda transitam, cifras ligadas à corrupção internacional entrelaçada à lavagem de dinheiro da máfia. Embora sobre a pedofilia ele tenha escolhido a via da cautelosa e gradual transparência, mas sem conseguir vencer toda a resistência, sobre o Banco do Vaticano não soube que peixe pescar, terminando por sucumbir às manobras de Bertone, porém sem compartilhá-las. Por isso, Ratzinger confessou com extraordinária honestidade intelectual não ser mais capaz de ser papa.
À primeira vista, a disputa pela sucessão se concentra na Europa, sobretudo nos cardeais italianos. Ao mesmo tempo, o catolicismo é uma religião ainda forte no mundo emergente, como América Latina e África. A Ásia parece ser um rebanho que desperta o interesse também. Qual sua avaliação da geopolítica do papado de Bento XVI?
Quando nomeou Angelo Scola arcebispo de Milão, Ratzinger foi uma indicação explícita para sua sucessão. Scola já era patriarca de Veneza, local de prestígio que deu três papas no século XX (Pio X, João XXIII e João Paulo I) e de onde não sai ninguém senão para Roma. Na esteira dos escândalos que abalaram a Cúria e inevitavelmente o mundo dos cardeais italianos, que são predominantes, a ascensão de Scola ao trono me parece menos segura, e Ratzinger deu posições de grande poder a cardeais estrangeiros, como o canadense Marc Ouellet (atual presidente da Comissão Pontifícia para a América Latina). O último consistório, no qual todos os novos cardeais eram estrangeiros, mostra que Ratzinger não tem uma visão italocêntrica, nem mesmo eurocêntrica, da Igreja do futuro.
E quanto ao diálogo com as outras religiões?
O coração do pontificado de Ratzinger foi a proposta de uma verdadeira Santa Aliança de todas elas - e em primeiro lugar das três monoteístas - contra a modernidade nascida do Iluminismo. Para o papa alemão a mais profunda "estrutura de pecado" consiste na enorme reivindicação do homem de ser autônomo, dar a si mesmo a própria lei, em vez de obedecer à lei de Deus. Sua intenção foi a de propor uma frente comum contra o ateísmo, o agnosticismo e o laicismo. O projeto funcionou em grande parte com o judaísmo, mas falhou com o islamismo e com os protestantes, pelo menos com os grandes movimentos de tele-pastores e as tendências neopentecostais e milagreiras que tiram milhões de fiéis da Igreja Católica na América Latina.
O que podemos esperar do próximo conclave? Mudança ou continuidade? Ratzinger terá influência na escolha de seu sucessor?
A escolha não será entre progressistas e conservadores, pelo menos no plano doutrinal e cultural, porque, repito, todos hoje são ratzingerianos. A diferença pode estar apenas na energia e no radicalismo com que o próximo papa vá atacar a corrupção na Igreja, a cobertura que a Cúria garantiu até aqui aos pedófilos e aos vilões das finanças. Mas uma limpeza completa é difícil de imaginar, porque são muitos - e muito destacados - os cardeais e bispos que deveriam ser removidos numa tacada só. Ratzinger já trabalhou e vai continuar trabalhando até o final para orientar a sua sucessão, no mínimo com uma lista de nomes.
Em quem o sr. apostaria para ser o sucessor de Bento VXI?
Até poucos meses atrás, eu não tinha dúvida: Angelo Scola. Hoje eu coloco Marc Ouellet em primeiro lugar. Mas a situação ficou mais incerta. Também porque Bento XVI eliminou a regra instituída por João Paulo II, segundo a qual a partir da 34ª votação no conclave não eram mais necessários os dois terços dos sufrágios, bastava a maioria. Agora, com a volta da regra dos dois terços, para ser eleito papa será preciso não só um consenso muito forte como também não ter uma hostilidade consistente da minoria. Desse ponto de vista, Scola corre algum risco. Ele vem do movimento Comunhão e Libertação, que, com a Opus Dei, é o mais citado quando se fala de uma "Igreja dos negócios" (em maio de 2012, o presidente do Banco do Vaticano, Ettore Gotti Tedeschi, membro da Opus Dei, foi demitido pelo secretário de Estado Bertone, sob acusação de "má gestão"). Recentemente, Scola tem se distanciado das escolhas políticas do movimento, mas não o suficiente. A força desses movimentos conservadores dentro do Vaticano é enorme. Não só a da Opus Dei e da Comunhão e Libertação, mas também da Comunidade di Santo Egidio, os Focolares e tantas outras. Entre eles nem sempre há homogeneidade. Santo Egidio e Focolares, por exemplo, têm fama de serem mais "abertas". Opus Dei e Comunhão e Libertação tiveram uma importância crucial na eleição de Ratzinger, e certamente continuarão a desempenhar um papel protagonista. Porém, é verdade que em alguns episcopados esses movimentos venham sendo vistos com certo tédio crescente por causa do seu caráter de "poder separado" da hierarquia das dioceses.
Depois de deixar o trono, Bento XVI continuará em Roma. O sr. acha que ele vai se retirar completamente da estrutura de poder do Vaticano ou continuará influenciando?
Estou convencido de que Joseph Ratzinger tenha verdadeiramente intenção de "desaparecer", dedicando-se às orações e aos estudos. Mas muito dependerá de quem será seu sucessor e de como ele conseguirá se impor. Até porque "desaparecer" significa, para um ex-pontífice, não publicar nada. E eu não sei se Ratzinger, que é também um ex-professor, será capaz de resistir às tentações acadêmicas.
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No vácuo do poder. Entrevista com Paolo Flores D’Arcais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU