31 Janeiro 2013
No dia 17 de janeiro passado, em Colombo, no Sri Lanka, apagou-se uma das vozes mais poderosas da teologia da libertação asiática, a do padre Tissa Balasuriya, 89 anos, religiosa dos Oblatos de Maria Imaculada, pioneiro do diálogo inter-religioso graças à sua visão da integração entre as religiões, que não deixou de provocar, especialmente nos anos 1990, problemas com o Vaticano.
A reportagem é de Ludovica Eugenio, publicada na revista Adista, 28-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O funeral ocorreu no dia 19 de janeiro na própria capital do Sri Lanka, com a participação de inúmeros grupos inter-religiosos, representantes da sociedade civil, sacerdotes católicos e monges budistas. Depois, eles foi sepultado no cemitério da igreja.
A teologia do Terceiro Mundo
Nascido no Sri Lanka no dia 29 de agosto de 1924, ele completou lá o ensino médio e universitário. Tendo entrado na Congregação dos Oblatos de Maria Imaculada, em 1947 foi enviado a Roma para completar a sua formação e ser ordenado sacerdote (1953).
Novamente no Sri Lanka, Balasuriya lecionou teologia e economia na Aquinas University College, de Colombo, em um contexto social e religioso multifacetado: o Sri Lanka é uma ilha de maioria budista (69%), com uma forte minoria hindu (15% ) e uma não desprezível presença muçulmana (8%) e cristã (8%).
Daí a necessidade de apresentar a teologia com uma nova abordagem: em 1971, Balasuriya pediu demissão da universidade e fundou o Center for Society and Religion com o objetivo de tornar os ensinamentos cristãos acessíveis aos concidadãos não católicos companheiros. Em 1975, também fundou a Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (EATWOT, na sigla em inglês) e, em 1978, publicou o seu livro Eucharist and Human Liberation [Eucaristia e libertação humana], que o colocou no rastro dos teólogos da libertação.
Nos anos 1990, a abordagem inovadora da teologia do Pe. Tissa despertou desconfiança e suspeita. O episódio teve início em 1990, quando Balasuriya – já muito conhecido e apreciado na Ásia – publicou o livro de Mary and Human Liberation [Maria e a libertação humana], que circulou sem nenhuma oposição por mais de três anos.
No início de 1993, o religioso foi convocado pelos bispos do Sri Lanka. Um deles, Dom Malcolm Ranjith, leu a ele um documento elaborado por uma comissão teológica ad hoc, que invocava "medidas disciplinares para impedir" que Balasuriya "se comprometesse ainda mais com reflexões teológicas imaturas e irresponsáveis". Quais são as "heresias" com as quais ele teria se manchado? Ele seria culpado de interpretar de uma maneira pessoal a doutrina do pecado original, dando uma imagem errônea dela, e de insinuar dúvidas muito pesadas sobre a divindade de Cristo, sobre o seu papel de redentor e sobre os dogmas marianos.
Sem possibilidade de defesa
Às acusações, o teólogo respondeu que as ideias contidas no seu livro foram distorcidas pela comissão teológica, e que não lhe havia sido dada nenhuma possibilidade de se explicar, nem de responder publicamente. Mas a sua defesa não pareceu ter sido levada em consideração: em julho de 1994, a Congregação para a Doutrina da Fé lhe enviou uma série de "observações" sobre os supostos erros doutrinais do seu livro. Às observações do ex-Santo Ofício, Balasuriya respondeu com um documento em 58 pontos em que destacou todas as deturpações do seu pensamento, cuja responsabilidade seria dos bispos que o acusavam.
Em novembro de 1995, porém, chegou-lhe a tréplica da Congregação vaticana: as suas respostas às acusações foram consideradas "insatisfatórias". Por esse motivo, foi-lhe enviada uma "profissão de fé" redigida ad hoc, com a injunção de assiná-la. O texto, elaborado especialmente pela Congregação para a Doutrina da Fé, enfatizva particularmente a infalibilidade pontifícia, a virgindade de Maria, Deus como autor dos livros da Bíblia, além da origem divina (e não sociocultural) da interdição ao sacerdócio para as mulheres.
Balasuriya recusou-se a assiná-la, colocando a sua assinatura, ao invés, na parte inferior da profissão de fé de Paulo VI, especificando, porém, que o fazia no "contexto do desenvolvimento teológico e das práticas da Igreja depois do Concílio Vaticano II e da liberdade e responsabilidade dos cristãos e dos teólogos estabelecidas pelo direito canônico".
A sua recusa, em maio de 1996, implicou a retirada da qualificação de teólogo católico, além de uma ação disciplinar com base no cânone 1.364 do Código de Direito Canônico, que prevê a excomunhão latae sententiae (automática) para hereges, apóstatas e cismáticos, assim como a dispensa do estado clerical, em caso de sacerdotes.
A sanção, datada de 8 de dezembro de 1996, chegou sem nenhum processo, apesar do que prescreve o Direito Canônico, e sem nenhum diálogo. "Mais de uma vez eu escrevi para todas as autoridades – afirmou Balasuriya – que eu estou pronto para me corrigir publicamente, se for provado que eu estou errado com relação à ciência teológica contemporânea diante de um tribunal justo".
A reação do mundo teológico foi planetária. A excomunhão deixou chocadas a congregação religiosa de Balasuriya, os Oblatos de Maria Imaculada, ramo cingalês, assim como a Comissão Asiática para os Direitos Humanos, a Associação Ecumênica de Teólogos da Ásia, a Associação Internacional de Teólogos do Terceiro Mundo, o Fórum das Religiões para a Solidariedade Mundial e o Movimento de Estudantes Católicos da Ásia e do Pacífico.
Houve até manifestações de budistas e de hindus. No resto do mundo, puseram-se do lado do excomungado a seção belga da Associação de Teólogos Católicos e inúmeras organizações de leigos e de religiosos da América do Norte, da Austrália e da Europa. Do mundo inteiro, mais de 10 mil cartas de solidariedade foram enviadas ao teólogo.
Balasuriya, portanto, recorreu a João Paulo II, a mais alta instância de apelo, mas o papa o recusou, e a excomunhão se tornou efetiva e definitiva. Mas Balasuriya não se rendeu e apelou também para a Signatura Apostólica, o Supremo Tribunal do Vaticano, mas que se declarou incompetente para aceitar o recurso do teólogo já que havia sido o papa em pessoa que aprovou a Notificação de excomunhão.
Tissa, porém, mais uma vez, não se deu por vencido e enviou à Congregação para a Doutrina da Fé uma nova proposta, a de assinar o Credo de Paulo VI, pura e simplesmente, sem nenhum acréscimo. No fim, Roma retrocedeu e retirou a sanção.
Maria, mulher da classe operária
Mas o que valeu a Balasuriya tal tratamento? No livro incriminado, o teólogo afirma que a Maria libertadora das Escrituras – mulher "forte, da classe operária" –, cujo objetivo era derrubar os poderosos de seus tronos, foi ofuscada por uma "Maria desidratada", uma "obediente, fiel, doce virgem mãe". Uma Maria, em suma, tradicionalmente domesticada em uma "consoladora dos fracos dos nervos", que não tem mais nada de "perturbadora dos ricos" do Magnificat.
A contribuição particular de Balasuriya como asiático se refere, no entanto, ao diálogo inter-religioso. No contexto em que viveu, o desafio era o de "repensar os dogmas fundamentais da tradição cristã" à luz do hinduísmo e do budismo: "Na Ásia – afirmava – devemos pôr em discussão as bases de uma teologia que feriu os nossos povos durante séculos".
Aqui, a sua teologia se encontrou diante de pontos espinhosos, quando investigou as doutrinas do pecado original e da necessidade da redenção de Cristo. A ideia cristã de "uma humanidade que nasce repudiada pelo seu criador", afirmava Balasuriya, com o seu esmagador senso de impotência (Maria teve que ser preservado do destino comum humano através da Imaculada Conceição), é profundamente inaceitável para as outras fés, assim como a ideia de que "gerações inteiras de outros continentes viveram e morreram com uma possibilidade a menos de se salvar".
E aqui outro ponto fundamental: a crítica à ideia de Jesus como "único, universal e necessário redentor". O conceito da graça divina entendida como decorrente de Cristo, destaca Balasuriya, não deve ser um obstáculo para o diálogo com pessoas de outras religiões teístas, já que a graça é vista como "benevolentemente concedida a todos os seres humanos".
O aspecto mais forte e "desestabilizador" para o Vaticano, contudo, era a consequência política da sua mariologia. A tradicional piedade mariana, defendia Balasuriya, "contribuiu para legitimar as diferenças de classe e de condição entre Senhor e consciência do fiel, entre Nossa Senhora e mulher comum".
A partir desse ponto de vista, a prática de rezar o terço mecanicamente "pode dar a ideia de uma salvação das almas da perdição sem nenhuma referência a uma libertação humana integral", assim como a aparição de Lourdes "não diz nada sobre a condição da classe operária na França à época", e muito menos "alude aos danos causados na África pela expansão militar e econômica francesa. No entanto, quando Maria é apresentada aos habitantes do Sri Lanka, ela é chamada de 'Senhora das Vitórias' no conflito entre cristãos e turcos na Batalha de Lepanto".
E assim, com raras exceções, como Nossa Senhora de Guadalupe ou de Czestochowa, a Maria tradicional é uma "Maria do primeiro mundo do cristianismo, capitalista, patriarcal e colonialista".
Contra uma cristologia exclusivista
A teologia tradicional cristã sobre Jesus Cristo, defendia o Pe. Tissa, é substancialmente cristologia exclusivista, pois "limite a salvação aos cristãos, considerando-a possível apenas mediante Jesus Cristo, o necessário, único e universal salvador de toda a humanidade" e afirma que "as outras religiões, embora possam apresentar alguns elementos de verdade, não mostram 'a verdade', nem mostram uma verdade capaz de levar os seus seguidores à salvação".
A interpretação da vida, da mensagem e da morte de Jesus, entendido como um resgate pelos pecados da humanidade, em suma, "desvia a atenção da mensagem de Jesus de amor e de justiça em uma sociedade injusta, que o condenou a morrer na cruz. Essa cristologia geralmente interpreta a salvação por meio de Jesus como a de um Deus-Homem que paga o preço pela ira de Deus-Pai. Isso parece contradizer o tema central do 'Deus é amor' e do 'ama a Deus e ao próximo' como critério de salvação atribuído ao Jesus dos Evangelhos".
Essa abordagem exclusiva, defendia Balasuriya, está na origem das aberrações "políticas" das quais foram responsáveis aqueles que administram o poder na Igreja: "As suas interpretações levaram a atitudes de profunda arrogância e intolerância das poderosas Igrejas cristãs. Foram utilizadas para legitimar a Inquisição, as invasões coloniais, o multissecular colonialismo. Os papas encorajaram os chefes de Estado europeus a invadir, conquistar e converter ao cristianismo todos os povos de outros continentes, para que se salvassem a alma".
Segue-se daí que "a cristologia tradicional exclusivista não pode ser reconhecida como uma teologia que realmente tem a ver com Jesus Cristo, pelo dano causado à maioria da humanidade por 1.500 anos".
Na origem dessa atitude, Balasuriya coloca o dogma do pecado original, por meio do qual "não há possibilidade para que a teologia cristã elabore uma interpretação que não ofenda os 'outros' que estão fora da Igreja, as outras religiões". Daí a necessidade de uma abordagem pluralista às religiões, já que nenhuma delas "tem o monopólio do conhecimento de Deus, da Realidade Última ou da salvação humana e da vida após a morte. Todas as religiões devem estar dispostas a aprender com as outras, a aprender até com a sociedade laica e até mesmo com a evolução do mundo e o seu progresso".
O que Balasuriya propunha, portanto, é repensar as religiões segundo uma lógica de complementaridade que substitua o espírito de competição. "As religiões mundiais – afirmava Tissa – tem um conjunto de valores centrais sobre os quais podem concordar e cooperar para a vida social prática".
A última intervenção do Pe. Tissa foi publicado pela revista de teologia da Eatwot no início de 2012. Nela, o teólogo retoma um capítulo de Mary and Human Liberation para examinar os pressupostos da teologia e chegar a uma distinção entre teologias positivas e negativas. "Toda teologia que deriva autenticamente de Deus em Jesus – escreveu – deve ser amorosa, respeitosa e satisfatória para a humanidade de todos os lugares e de todos os tempos. Essa é a natureza do Deus de justiça e de amor revelado na fundamental (e melhor) inspiração da Bíblia, em particular por Jesus. Consequentemente, nenhum elemento que, em uma teologia, seja insultante, degradante, desumanizante e discriminante com relação à humanidade de todo tempo e lugar pode vir de Deus em Jesus. Qualquer elemento desse tipo é necessariamente como que uma intrusão injustificada e deve ser eliminado do corpo da teologia cristã. Como disse Jesus: 'Pelos seus frutos os conhecereis'. Frutos de ódio não podem vir a Jesus ou de Deus. Esse princípio pode levar à revisão de grande parte da construção tradicional da teologia cristã ocidental".
Em termos positivos, "a partir do momento em que todo bem vem de Deus – argumentava Balasuriya –, tudo o que produz verdadeiramente humanização em qualquer religião ou ideologia também é, em última análise, de origem divina e deve ser respeitado como tal. A partir do momento em que Deus quer a felicidade de todos, quanto mais uma teologia leve à plena realização humana de todas as pessoas e de todos os povos, mais ela se aproxima da fonte divina. Esse princípio de crítica é racional e ético. Ele nos ajuda a libertar as teologias cristãs de imagens divinas que, em contradição com o ensinamento de Jesus, apresentam Deus como intolerante, parcial e cruel ou promovem a desumanização e a exploração dos seres humanos".
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Tissa Balasuriya, o teólogo que revelou o ''pecado original'' da Igreja sobre o diálogo inter-religioso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU