18 Dezembro 2014
“Prezado Tristão de Ataíde.
Foi com alegria que recebi o 1º número da Ordem sob sua direção. Ele veio me proporcionar ensejo de lhe escrever algumas palavras de afeto e admiração, que inexplicavelmente não lhe mandei em tempo, quando me ofereceu a 1ª série dos Estudos. Oferecimento que me encheu de satisfação e me penhorou deveras, acredite. Entretanto, nunca lhe mandei sequer um muito obrigado. Seria uma ingratidão se não fosse apenas uma prova a mais da minha irremediável incapacidade epistolar.”
Assim começou a troca de cartas entre Carlos Drummond de Andrade, um poeta itabirano de 26 anos, e Alceu Amoroso Lima, já o principal crítico literário do modernismo brasileiro, que assinava suas colunas na imprensa sob o pseudônimo Tristão de Ataíde.
A reportagem é de Leonardo Cazes, publicada pelo jornal O Globo, 06-12-2014.
O epistolário inédito, que vai de janeiro de 1929 até dezembro de 1982, foi reunido no livro “Correspondência de Carlos Drummond de Andrade & Alceu Amoroso Lima” (Ed. UFMG, 280 páginas, R$ 50), que será lançado em livro na próxima quinta-feira, às 18h, na Universidade Cândido Mendes (Rua da Assembleia 10).
Organizado por Leandro Garcia Rodrigues, especialista na obra de Amoroso Lima, o livro revela uma face menos conhecida de Drummond: o jovem dividido entre a formação católica e um ceticismo profundo em relação à religião. Logo na primeira carta, o poeta confessa suas angústias ao consagrado crítico, que se convertera ao catolicismo um ano antes. “Sou dos maus, dos piores católicos que há por aí. Talvez seja uma crise da mocidade, não sei, entretanto sinto pouca disposição para crer, e um contato extremamente doloroso que tive com os jesuítas me afastou ainda mais da religião. (...) De qualquer maneira, admiro e quase que invejo os que como V. deram uma solução definitiva a esse problema religioso que nós carregamos como uma ferida”, escreveu o poeta.
Alceu Amoroso Lima se converteu ao catolicismo em 1928, aos 35 anos, após um intenso debate com Jackson de Figueiredo, fundador do Centro Dom Vital e da revista “A Ordem”, a partir de 1922. Segundo Garcia, até então Amoroso Lima dizia ter ido à igreja apenas duas vezes na vida: para receber o batismo e casar. Ele fez parte de uma geração marcada pelo positivismo no final do século XIX e início do século XX e foi aluno, na faculdade de Direito do Rio de Janeiro, de Silvio Romero, um dos mais notórios intelectuais ateus da época. Após ser convertido por Figueiredo, Amoroso Lima passou a fazer a mesma coisa com outros escritores modernistas, como o próprio Drummond, embora sem o mesmo sucesso que obteve com Murilo Mendes, Jorge de Lima e Augusto Frederico Schmidt.
Na primeira resposta a Drummond, ele já aborda as dúvidas do amigo em relação à fé: “V. fala na ferida que levam os que como v. não creem ou não sabem que creem. Essa ferida é já um pouco de amor à Fé. Os que nada esperam dela, nem ao menos tem a noção da ferida, a suspeição de uma ausência, a intuição de que há qualquer coisa além do mundo que nos cerca. (...) Enfim, não quero posar de pregador leigo. A Fé não se incute, conquista-se. E como é um alargamento e não uma restrição, como é uma plenitude, só mesmo o caminho interior pode levar a ela ou tornar a ela.”
Garcia afirma que a questão religiosa discutida por ambos é o ponto alto da correspondência.
— Eu chamo isso de “problema de Deus”. Quase todos os escritores dessa geração tiveram esse problema com a fé. É um erro querer provar que eram ateus, eles eram sim extremamente céticos. Drummond tem muitas dúvidas sobre o que fazer com a fé. Não tem como jogar no lixo a sua formação católica, mas não quer se comprometer com a fé institucional. Seu ceticismo não é um zero de Deus. Existe uma camada religiosa e ele vê no Alceu o seu grande correspondente, o maior intelectual leigo da Igreja no Brasil. Ele não trata desse tema com mais ninguém. Mário de Andrade é outro que só fala de fé e religiosidade com Alceu — diz o professor.
Mário de Andrade, inclusive, foi o grande fiador da amizade dos dois. O trabalho de Rodrigues sobre a correspondência de Drummond e Amoroso Lima começou durante sua pesquisa de pós-doutorado sobre o epistolário do intelectual católico e Mário, que será lançada no ano que vem pela Edusp. Nos textos, havia muitas referências a Drummond. Cruzando as cartas trocadas entre os três, o professor descobriu que foi Mário o responsável por dar a Drummond o endereço de Amoroso Lima. O trabalho foi possível porque estão guardadas na casa deste, em Petrópolis, todas as cartas que recebeu ao longo da vida. Ao todo, são mais de 36 mil. Desafio mesmo foi decifrar a letra do crítico literário.
— A caligrafia do Alceu era conhecida por ser impenetrável. Como eu pesquiso sua obra há mais de cinco anos, desde o doutorado, já estou acostumado. No total, foram dois anos de trabalho para preparar esse livro — conta o professor, que não teve problemas com as respectivas famílias. — Quando organizamos uma obra assim, a primeira preocupação é a autorização dos familiares. Já mantinha uma ótima relação com a família do Alceu e os netos do Drummond também permitiram na hora. Eles contaram que o avô sempre se referia ao amigo como o grande crítico brasileiro do século XX.
No livro, Rodrigues propõe uma periodização para as cartas: de 1929 a 1934, elas eram mais longas e tinham um cunho existencial e filosófico (“é um Drummond desnudo, que está querendo se apoiar em algo mais forte”, diz ele); a segunda, entre 1934 e 1945, engloba o período em que o poeta foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema no Ministério da Educação, durante o Estado Novo. Os dois tratam basicamente de favores e pedidos em relação à administração pública; de 1945 a 1982, ambos começam a ser premiados, o reconhecimento público é crescente e eles passam a rever suas obras e aprofundam a amizade. Ainda na primeira fase, o professor destaca uma carta de 1931 em que Drummond fala abertamente de seus impulsos suicidas (leia trecho ao lado). O suicídio aparece na sua produção literária em diversos poemas reunidos nos livros “Alguma poesia”, “Brejo das almas”, “Sentimento do mundo” e “A rosa do povo”, mas num texto pessoal é a única vez, de acordo com Rodrigues.
— Nesta carta, Drummond faz um grande relato da infância, da sua formação religiosa e católica, da vontade que ele tem de cometer suicídio embora lhe falte coragem para isso. Na nota de rodapé eu faço uma análise do texto e relaciono com outros poemas e textos dele que têm essa temática. Este é um dado biográfico muito forte que aparece nessa correspondência.
Nos anos do poeta no MEC, a correspondência se torna menos frequente e significativamente mais curta. Em geral, são pedidos ou respostas a demandas anteriores, como esta carta de 18 de junho de 1935, que aborda uma indicação para um cargo no Instituto Benjamin Constant: “Meu caro Alceu: Tenho aqui sua carta, acompanhando outra do dr. Alcebíades Delamare, sobre a pretensão do Sr. João Bosco de Rezende. O lugar de secretário do Instituto Benjamin Constant está, realmente, vago, e há inúmeros candidatos a ele. Isto não impede que a solicitação do dr. Delamare seja objeto da melhor atenção e simpatia.” Rodrigues ressalta que, na época, Amoroso Lima já era bastante influente, especialmente nos círculos católicos, e não foram poucos os amigos e conhecidos que ajudou a conseguir uma colocação no governo. Em outros momentos, o próprio Drummond pediu seu auxílio em assuntos de interesse do ministério.
A admiração mútua fica ainda mais evidente na terceira fase, após o Estado Novo e que vai até o fim da vida do crítico. A propósito do primeiro volume de “Estudos literários”, série que reuniu a produção de Amoroso Lima entre 1919 e 1925, o poeta escreveu em junho de 1966: “Que livro! Foi abri-lo e folheá-lo, e logo me apareceram, vivos, os dias, as ideias, a agitação, entre criadora e destrutiva, da década de 20, em meio a qual havia um ponto de referência, uma claridade: você e sua crítica.” Entre 1969 a 1984, período em que Drummond assinou uma coluna no “Jornal do Brasil”, o crítico literário foi um atento leitor do amigo e volta e meia enviava telegramas com comentários elogiosos, como este em março de 1975: “Agradeço como carioca seu admirável poema do nosso Rio paradisíaco esperando o do Rio trágico favelas e subúrbios. Alceu”.
Trecho de Carta de Carlos Drummond de Andrade (1931):
O que me preocupa, afinal de contas, é a solução de uns certos problemas freudianos que enchem a minha vida e dos quais eu tenho que me libertar, sob pena de suicídio (em que tenho pensado inúmeras vezes, mas sem a necessária coragem) (...) Como vê, coloco-me inteiramente à margem da discussão sobre as diretrizes que é dado ao homem contemporâneo escolher para o seu rumo pessoal. Vou por um desvio, que é escuro e sem alegria, e não tenho certeza de chegar ao fim.
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Livro reúne epistolário inédito de Drummond e Alceu Amoroso Lima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU