11 Novembro 2014
Em uma encíclica de 1921, Bento XV reivindicava a fé da Divina Comédia, apesar das duras críticas à Igreja. Antecipando algumas aberturas de Bergoglio.
A reportagem é de Lucio Villari, publicada no jornal La Repubblica, 08-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 30 de abril de 1921, em um pós-guerra de inquietações, foi dada a conhecer aos italianos uma encíclica de conteúdo inesperado.
Era dedicado a um poeta e era assinada pelo Papa Bento XV, um pontífice de grande inteligência política (havia denunciado o "massacre inútil" da Primeira Guerra Mundial).
O poeta era Dante, que, depois de séculos de discordância, a Igreja pretendia reabilitar. A encíclica In praeclara summorum, era uma inédita homenagem à religiosidade católica de Dante, mas com claras alusões à força intelectual da crítica dantesca aos poderes da Igreja, a vontade de poder dos papas, do clero corrupto.
Era uma reapropriação, talvez esperada há algum tempo em alguns segmentos do catolicismo, mas adiada depois da plena reivindicação da obra teórica e da poesia de Dante, vetores de liberdade e verdade para a "nação" italiana, por parte da cultura liberal e democrática e de todas as estruturas ideais do Ressurgimento.
A nova liberdade da Itália também era modelada sobre a rejeição de Dante dos muitos poderes fraudulentos da Igreja, temporal e não.
Bento XV não sabia que, oito anos depois, em 1929, o seu sucessor assinaria cinicamente com o Estado fascista um pacto não liberal. Mas, como homem de cultura, Bento XV – que, em alguns aspectos, parece ser o precursor das aberturas do Papa Francisco – tinha intuído que uma eventual superação daquele dissídio não poderia deixar de passar mediante um diálogo com Dante.
O papa fala de um homem que crê em Deus e em uma Igreja digna do seu papel universal, mas que abre espaço para a crítica histórica da Igreja. No Canto XI do Paraíso, Dante deixa o maior elogio à pobreza e à "admirável vida" de São Francisco e, no XXVII, a mais veemente invectiva de São Pedro contra as degenerações da Igreja e da própria figura do papa.
A encíclica não podia ignorar tudo isso, mas o texto revela um certo sofrimento de composição. Além da ideologia, segundo o pontífice, há, apenas no valor estético da poesia de Dante, o caminho aberto para a doutrina católica: "Embora não seja escasso o número dos grandes poetas católicos que unem o útil ao agradável, em Dante é singular o fato de que, fascinando o leitor com a variedade das imagens, com a vivacidade das cores, com a grandiosidade das expressões e dos pensamentos, ele o arrasta ao amor da sabedoria cristã. (…) Por isso, embora separado de nós por um intervalo de séculos, ele ainda conserva o frescor de um poeta da nossa época e certamente é muito mais moderno do que alguns recentes."
Nessa tentativa, havia intenções específicas. As palavras da encíclica diziam respeito justamente ao clima filosófico e político italiano daqueles anos, marcados não só pelo sobrevivente Modernismo, mas também pela presença cada vez mais incisiva do pensamento de Benedetto Croce e a progressiva laicização da educação pública.
O confronto cultural entre a cultura católica e a liberal e laica, portanto, estava prestes a se tornar um desafio para os mais altos níveis. Por isso, Dante podia ser uma primeira trincheira da doutrina cristã posta no campo até então ocupado por um Dante laico e ressurgimental. Era preciso fazer da Divina Comédia um testemunho de fé.
Daí o pano de fundo operativo: "Pois, embora em alguns lugares o 'poema sagrado' não seja mantido longe das escolas públicas e, de fato, seja contado entre os livros que devem ser mais estudados, porém, ele não costuma fornecer aos jovens aquele alimento vital que é destinado a produzir, já que estes, pela direção defeituosa dos estudos, não estão predispostos à verdade da fé, como seria necessário".
Poucos meses antes da publicação da encíclica, em setembro de 1920, Croce enviava às livrarias La poesia di Dante. Esse ensaio, por anos, estaria no centro de amplas discussões críticas, mas o que importava naquele momento para a Igreja é que Croce era ministro da Educação Pública e que o método de Croce abria perspectivas pedagógicas muito diferentes das esperadas por Bento XV. As instruções à leitura de Dante por parte do ministro Croce eram claras.
A encíclica era para ser uma primeira resposta, imediata, para essas instruções? É preciso pensar a respeito. Sobretudo ao ler esta passagem: "A sua Comédia, que merecidamente recebeu o título de divina, mesmo nas várias ficções simbólicas e nas recordações da vida dos mortais sobre a terra, não visa a outro fim senão a glorificar a justiça e a providência de Deus".
Ao contrário do que se possa imaginar, esse discurso tão problemático sobre Dante ainda está em aberto, na pesquisa histórica e estética e também na teológica. O humano e divino dantesco sempre se enfrentam e esperam respostas renovadas.
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Quando um papa reabilitou Dante: ''É o sumo poeta católico'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU