22 Outubro 2014
É possível que tudo o que aconteceu e está acontecendo nos tempos de hoje não envolva responsabilidades de ordem não só pastoral, mas principalmente intelectual, por parte não só da Igreja do Ocidente e da sua hierarquia, mas também do mundo católico na acepção mais vasta, começando pelos seus expoentes intelectuais?
A reflexão é do historiador e jornalista italiano Ernesto Galli Della Loggia, professor do Instituto Italiano de Ciências Humanas de Florença (SUM), em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 20-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
É lícito supor que, com o seu discurso de conclusão da primeira fase do Sínodo, o Papa Francisco tenha visado a dois objetivos. Acima de tudo, tentar dar uma imagem do seu magistério mais mediadora e, por assim dizer, "centrista" em relação a que até agora tinha aparecido a muitos; e, ao mesmo tempo, ele considerou que é urgente chamar a Igreja a superar aquelas divisões que pareceram tão evidentes justamente durante os trabalhos do Sínodo.
Mas, mais no fundo, isso pode e deve ser lido, talvez, sobretudo, como uma a tentativa bastante forte por parte de um pontífice que "veio do fim do mundo" de se posicionar fora de divisões e disputas que têm o seu teatro de escolha nos episcopados das Igrejas do ultrassecularizado Ocidente euroamericano, mas que, nos outros lugares do planeta onde o catolicismo vive e atua, acabam por significar pouco ou nada.
Não nos equivocamos, creio eu, ao dizer que é a essas terras que Bergoglio olha para o presente e para o futuro da Igreja. Ele olha para a América Latina, com a sua desesperada religiosidade descamisada e "subversiva", com a sua liturgia desordenada, para a África tradicionalista com as suas milhares hibridações culturais, imersa em uma pobreza aparentemente sem futuro. Aqui, sim, nessas partes do mundo, dominadas em tal medida por realidades simples e muitas vezes brutais, aqui, sim, é que o chamado papal constante, quase obsessivo, à "acolhida", à "misericórdia", à "caridade" adquire para o catolicismo um valor estratégico crucial. Aqui, sim, é que essas virtudes têm o valor de palavras de ordem e aludem a linhas de ação capazes de ampliar de modo decisivo os confins da fé católica.
Mas as mesmas palavras, como se sabe, podem significar coisas diferentes em contextos diferentes. Assim, os "progressistas" que se alinham nos exaustos episcopados das Igrejas do Ocidente correm para se apossar de termos como "acolhida", "caridade", "misericórdia", para usá-los contra os "conservadores" presentes nessas mesmas Igrejas; que, por sua vez, se sentem na obrigação de denunciar a inevitável ambiguidade desses mesmos termos.
Tanto os primeiros quanto os segundos, incapazes de superar as já obsoletas disputas pós-conciliares, que veem há mais de meio século os "progressistas" empenhados em acusar a Igreja "do poder", e os "conservadores" a ver por toda a parte os perigos de "protestantização"; os "progressistas", prontos de tempos em tempos a ecoar pontualmente o politicamente correto secularizado; os "conservadores", prontos a suspeitar da sutil intenção dos outros a abandonar o depositum fidei. Ambas as inclinações episcopais, por fim, desajeitadamente apoiadas pelos respectivos homólogos laicos na política e nos jornais.
Durante o Sínodo sobre a família, entrou em cena mais uma vez esse confronto, na realidade, totalmente interno às Igrejas do Ocidente. No qual o papa e as suas posições se encontraram como que pegos de surpresa, correndo o risco, de fato, de uma contínua instrumentalização. Daí, provavelmente, a decisiva intervenção final de Bergoglio.
Na realidade, a adoção plenamente aceita e mal dissimulada de categorias próprias da política no debate do mundo eclesiástico e, em geral, católico nos países ocidentais dá a impressão de ser nada mais do que um substituto das muitas perguntas de fundo que deveriam ser a premissa obrigatória desse debate, mas que, ao invés, em substância, sempre se guardaram muito bem de se fazê-las.
Viu-se isso claramente a propósito daqueles grandes temas como os comportamentos sexuais, a procriação, o matrimônio, que produziram as maiores divisões dentro do Sínodo. Trata-se, com toda a evidência, de questões referentes, por um lado, à ideia abrangente do ser humano e do seu destino dentro do desígnio da criação e, por outro, à relação que a sua cotidianidade moral deve ter com tal perspectiva geral.
Questões que, como se entende, dificilmente podem ser resolvidas sob a insígnia da "simples" liberdade de consciência ou da "misericórdia", como, ao invés, a inclinação "progressista" tentou fazer nos últimos dias na sala do Sínodo, colocando-se no mesmo comprimento de onda lexical do papa.
De fato, é evidente que, assim, corre-se realmente o risco de não captar em nada o porte real do que autenticamente está em jogo. Que, neste caso, se não me equivoco, é o próprio coração daquilo que uma religião monoteísta é e que, no fim, não pode não ser.
Mas, se for assim, então é difícil não se admirar do fato de que, como eu dizia, quando os episcopados ocidentais decidem hoje discutir tais assuntos, especialmente se for para buscar adequações doutrinais àquelas que são chamadas de "mudadas exigências dos tempos", não se deem conta, e quase nem percebam, se poderia dizer – nem os inovadores, nem os seus adversários, com a solitária e luminosa exceção de Ratzinger –, que, antes de tal tarefa, todos eles, há muito tempo, deveriam ter se feito, talvez, uma pergunta: como é que, nas últimas décadas, um amplo número de fiéis, talvez até a maioria, não seguem mais as diretrizes da Igreja? Que na sua própria vida cotidiana eles se desviam, não apenas de aspectos secundários, mas também basilares do seu ensino? Quem não aceitam mais a sua concepção do ser humano, da relação entre os sexos, da transmissão da vida? Como é que esse gigantesco andaime cultural que detivera o campo por séculos esteja, hoje, de fato, a ponto de desmoronar? Que, justamente nesta parte do mundo historicamente cristão, forças e tendências estranhas, se não hostis, ao legado cristão se mostrem capazes de prevalecer em tantos campos, de ditar estilos de vida e de pensamento?
E para continuar com as perguntas de fundo escritas nas coisas: é possível que tudo o que aconteceu e está acontecendo envolva responsabilidades de ordem não só pastoral, mas principalmente intelectual, por parte não só da Igreja do Ocidente e da sua hierarquia, mas também do mundo católico na acepção mais vasta, começando pelos seus expoentes intelectuais?
Para quem olha para essas coisas com um olhar de fora, mas consciente do tesouro de pensamento e de ação encerrado na tradição "romana", é difícil se convencer de que "caridade" e "misericórdia" possam realmente preencher esse vazio de reflexão, representando respostas adequadas às dramáticas interrogações acima referidas.
É difícil se libertar da ideia de que, talvez, essas interrogações aludem a um grandioso "sinal dos tempos" que se anunciam ao Ocidente. Um "sinal dos tempos" que deveriam ser adequadamente decifrados. E, talvez, feito objeto de um novo anúncio.
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As perguntas sem respostas. Artigo de Ernesto Galli della Loggia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU