Por: Jonas | 17 Outubro 2014
“Uma derrota do processo revolucionário sírio e de seus objetivos marcaria muito provavelmente o fim da experiência das regiões autônomas de Rojava e das esperanças do povo curdo em poder decidir seu próprio futuro diante da oposição de múltiplos atores: os imperialismos ocidentais e russos, os chauvinismos árabes e turcos e as forças islâmicas reacionárias”, escreve Joseph Daher, em artigo publicado por Rebelión, 15-10-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A cidade de Kobane na Síria, que é habitada em sua maioria por curdos, esteve durante várias semanas sob a ameaça direta do Estado Islâmico (EI). Desde o início da ofensiva do Estado Islâmico, no dia 16 de setembro de 2014, morreram mais de 550 pessoas, entre elas 298 militantes do Estado Islâmico, 236 combatentes curdos e cerca de 20 civis. Mais de 12.000 civis ainda permanecem em alguns setores da cidade de Kobane, ao passo que a ofensiva do Estado Islâmico contra Kobane e suas aldeias vizinhas já provocou o deslocamento forçado de cerca de 200.000 pessoas.
Na realidade, a cidade já teria sucumbido há muito tempo se não fosse pela resistência organizada do Partido da União Democrática (YPD, que é vinculado ao PKK, Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e suas forças militares, Unidades de Proteção Popular (YPG), como também pela participação ativa de ao menos três batalhões de combatentes árabes na cidade: o batalhão revolucionário de Raqqa, o batalhão “O Sol do Norte” e o batalhão de “Jirablis”. No dia 4 de outubro, o Exército Sírio Livre (FSA) também decidiu enviar mil combatentes para defender Kobane.
Kobane tem uma localização estratégica para o Estado Islâmico. Em primeiro lugar, a cidade se localiza entre as cidades de Cerablus e Tell Abyad, ambas sob a ocupação do Estado Islâmico, sendo assim, sua captura permitiria uma continuidade territorial. Em segundo lugar, é uma porta de entrada para a Turquia.
Kobane, uma cidade chave nas regiões autônomas de Rojava
A cidade de Kobane é a terceira cidade curda da Síria e foi a primeira cidade a ser libertada do regime de Assad, no dia 19 de julho de 2012.
Kobane é também o centro de um destes três ambientes (junto a Afrin e Cizre) que se auto-estabeleceram em “regiões democráticas autônomas”, a partir de uma confederação de “curdos, árabes, assírios, caldeus, turcomanos, armênios e chechenos”, como se afirma no Preâmbulo da Constituição de Rojava (nome de Curdistão ocidental ou sírio).
As experiências de autoadministração destas regiões são muito interessantes, particularmente em relação aos direitos da mulher e das minorias étnicas e religiosas. Existem, no entanto, algumas contradições, em especial no que diz respeito ao autoritarismo das forças do PYD, que não hesitaram em reprimir a ativistas ou em fechar instituições contrárias.
Não podemos esquecer que o PYD, assim como sua organização matriz PKK, carece de credenciais democráticas em seu funcionamento interno e em relação a outras organizações consideradas rivais ou que, como vimos, são críticas do mesmo.
Devemos, por exemplo, recordar os movimentos de protesto de fins de junho de 2013 em algumas cidades de Rojava, tais como Amouda e Derabissyat, contra a repressão e detenções de ativistas revolucionários curdos.
Nesse quesito, no entanto, o PYD está longe de ser a única organização na Síria e dentro da oposição síria.
Isso não nos impede de proporcionar pleno apoio ao movimento nacional de libertação curda em sua luta pela autodeterminação no Iraque, Síria, Turquia e Irã contra os regimes autoritários que os oprimem e/ou lhes impedem de alcançar sua autodeterminação.
Isto é também a razão pela qual devemos exigir a eliminação do PKK de todas as listas de organizações terroristas na Europa e em outros lugares.
Podemos, com efeito, criticar a direção do PKK ou do PYD por algumas de suas políticas, mas, como se argumentou anteriormente, um princípio fundamental dos revolucionários é que primeiro devemos apoiar incondicionalmente todas as formas de luta pela libertação e a emancipação, antes de ter o direito de criticar a maneira como são lideradas.
A coalizão e Turquia ou a luta contra os curdos
Os bombardeios da coalizão internacional, liderada pelos Estados Unidos com a colaboração das monarquias reacionárias do Golfo, não foram capazes de deter a ofensiva do Estado Islâmico, desde o dia 23 de setembro. Nesse período, o Estado Islâmico estava a 60 quilômetros de Kobane... hoje, o Estado Islâmico entrou e ocupou vários distritos da cidade. O Estado Islâmico destruiu, além disso, várias residências e edifícios administrativos.
Esta intervenção militar demonstra mais uma vez que não está esboçada para ajudar as populações locais em sua luta pela liberdade e a dignidade, mas, sim, está a serviço dos objetivos dos imperialistas ocidentais, com o consentimento do imperialismo russo e de todos os sub-imperialistas regionais que participam diretamente (Arábia Saudita e Qatar) ou indiretamente (Turquia), ou que não se opõem como o Irã. Todos estes atores pretendem colocar fim aos processos revolucionários na região e restaurar sua estabilidade como regimes autoritários, em favor de seus interesses e não aos das massas populares da região.
De sua parte, o governo turco do Partido da Justiça e o Desenvolvimento (conhecido como AKP) demonstrou, mais uma vez, sua oposição a qualquer projeto de autodeterminação curda que pudesse desafiar seus interesses políticos.
O governo turco acusou também o PKK de terrorista semelhante ao Estado Islâmico. O governo turco pretende mediante estas acusações prejudicar as organizações curdas que operam em seu território ou em sua periferia, ou ao menos cooptar algumas delas.
O objetivo principal do governo turco é, na realidade, impedir o estabelecimento de uma zona autônoma curda junto à fronteira com a Síria. É por isso que a principal demanda do governo, em Ancara, para a coalizão e a comunidade internacional, é a criação de uma zona de abrandamento na Síria, e não, como o governo de Erdogan afirma, para proteger as áreas nas mãos do Exército Sírio Livre, aqueles que agora estão lutando junto às forças curdas contra o Estado Islâmico.
Neste mesmo contexto, o governo turco também impediu e continua impedindo que combatentes do PYD cruzem a fronteira para se unir à cidade de Kobane e ajudar seus companheiros curdos em sua luta contra o Estado Islâmico. As autoridades turcas, pela primeira vez desde 1992, impuseram um toque de recolher em seis províncias do país povoadas em sua maioria por curdos, após grandes manifestações de membros da comunidade curda contra a política do governo em não querer ajudar a cidade de Kobane e de não permitir a passagem de combatentes curdos até a Síria.
Depois de quatro dias de distúrbios, o ministro do interior, Efkan Ala, apresentou um primeiro relatório muito forte, que registra 31 mortos e 360 feridos, mais de mil prisões e danos impressionantes, principalmente no sudeste de maioria curda no país. As vítimas, feridos e presos, eram em sua grande maioria curdos.
O líder do PYD, Salih Muslim, pediu para que a Turquia a permita a passagem de combatentes e de armas para Kobane, ao mesmo tempo em que se opôs categoricamente à intervenção do exército turco na cidade, o que segundo ele seria semelhante a uma “ocupação”.
De sua parte, o líder preso do PKK, Abdullah Öcalan, também advertiu que a queda de Kobane significaria o fim de todos os esforços pela paz, realizados durante os últimos dois anos, entre a Turquia e o PKK.
Há ainda há mais de 8.000 presos políticos curdos em prisões turcas acusados de terrorismo.
Kobane e a revolução síria
A queda da cidade de Kobane e a sua ocupação pelo Estado Islâmico representaria uma dupla derrota: para a autodeterminação do Povo Curdo e para a Revolução Síria.
A administração autônoma de Rojava é o resultado direto e positivo da revolução síria e nunca teria sido permitido ou sido capaz de existir sem o popular e massivo movimento a partir de baixo do povo sírio( árabes, curdos, e assírios juntos) contra o criminoso e autoritário regime de Assad.
Estas mesmas forças populares também se uniram contra as forças reacionárias islâmicas que atacaram no passado e atualmente continuam atacando as regiões de Rojava. Hoje em dia, o FSA e as forças curdas estão lutando lado a lado contra o Estado Islâmico em Kobane, ao mesmo tempo em que também presenciamos manifestações de apoio em outras regiões libertadas da Síria em solidariedade a Kobane.
A revolução a partir da base pelas massas populares da Síria, árabes e curdos, é a única solução contra o sectarismo religioso, o racismo e o chauvinismo nacional.
A autodeterminação do povo curdo foi fortalecida pela revolução síria e isso deve continuar. É uma relação dialética e ambas estão vinculadas.
Uma derrota do processo revolucionário sírio e de seus objetivos marcaria muito provavelmente o fim da experiência das regiões autônomas de Rojava e das esperanças do povo curdo em poder decidir seu próprio futuro diante da oposição de múltiplos atores: os imperialismos ocidentais e russos, os chauvinismos árabes e turcos e as forças islâmicas reacionárias. Por outro lado, o processo revolucionário sírio não estará completo sem a possibilidade para o povo curdo de decidir livremente seu próprio futuro: separação ou participação em uma Síria Democrática, Social e Secular com seus direitos nacionais assegurados.
É por isso que devemos nos opor a todas as tentativas de minar tanto a autodeterminação curda como o processo revolucionário sírio, porque seus destinos estão atrelados, tanto pelo regime de Assad, como pelas forças islâmicas reacionárias, os diversos imperialismos (Estados Unidos e Rússia) e os sub-imperialismos (Irã, Turquia, Arábia Saudita e Qatar).
É necessário se opor a todas as formas contrarrevolucionárias, porque pretendem dividir as classes populares mediante o sectarismo e o racismo.
Viva a Revolução Síria!
Viva a autodeterminação do povo curdo!
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Kobane, a questão curda e a revolução síria, um destino comum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU