14 Outubro 2014
Há poucos meses, o Instituto de Infectologia do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo, publicou uma cartilha com oito recomendações sobre um tema aparentemente simples: o uso de antibióticos. Mas, em tempos de tanta complexidade na medicina e na ciência, ser simples não tem nada a ver com ser inofensivo. O consumo indiscriminado desses medicamentos é apontado como uma das mais importantes causas da propagação das chamadas "superbactérias".
A reportagem é de Monica Gugliano, publicada pelo jornal Valor, 10-10-2014.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica as infecções provocadas por esses micro-organismos como um grave problema de saúde pública e diz que a humanidade vive a "era pós-antibiótico". No mês passado terminou o prazo para a consulta que a OMS fez aos 114 países que participaram do estudo "Antimicrobial resistance: global report on surveillance". Com base nessas informações, no próximo ano será lançado o Plano Mundial Contra a Resistência aos Antimicrobianos, um esforço global entre cientistas e governos para combater a ameaça. "É uma luta de vida contra vida", diz a infectologista Rosana Richtmann, do Emílio Ribas, uma das maiores especialistas do país no assunto.
Seres humanos e bactérias dependem uns dos outros para viver. Existem milhares de tipos desses organismos. A maior parte é inócua e ajuda a vida dos humanos, das plantas e dos animais. Aquelas que vivem nos intestinos, por exemplo, são fundamentais para a digestão dos alimentos e a produção de vitaminas. Outras são responsáveis pelos nutrientes de vegetais. E foram elas que, de certa forma, deram vida ao planeta, há bilhões de anos, permitindo que o oxigênio fosse mantido na atmosfera terrestre. Mas a versão turbinada desses organismos unicelulares costuma ser fatal.
Infecções que em poucos dias poderiam ser tratadas e curadas se tornam indomáveis e causam a morte dos pacientes. Entre elas, diarreias, pneumonias, infecções urinárias e a gonorreia.
O problema, que a OMS define como uma ameaça real no século XXI e não mais uma "fantasia apocalíptica" para o futuro, resulta da impossibilidade de combater esses micro-organismos. As bactérias sofrem mudanças, passam a identificar os inimigos e criam escudos que as protegem deles. As vulneráveis desaparecem. As resistentes se multiplicam e transmitem à nova geração essa imunidade. Quando foram identificados os primeiros casos, na década de 1990, os cientistas atribuíam essa resistência à seleção genética. Atualmente se sabe que partículas de DNA (ácido desoxirribonucleico) transmitem as informações genéticas entre esses micro-organismos e, em casos específicos, produzem enzimas especiais que as protegem dos antibióticos.
É difícil calcular as perdas humanas e os custos materiais das doenças cuja origem é atribuída às superbactérias. O estudo da OMS estima que o sistema de saúde americano gaste entre US$ 21 bilhões e US$ 34 bilhões por ano com doenças resistentes aos antibióticos. O mesmo documento diz que essas doenças podem custar entre 0,4 e 1,6% do PIB de um país. As somas fabulosas, entretanto, não ajudam a sanar o problema. Também nos Estados Unidos, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês de Center for Diseases Control and Prevention) já foram identificadas 17 tipos de superbactérias para as quais não há antibióticos. No Brasil, a situação é igualmente grave. "Já existem em São Paulo bactérias completamente intratáveis. Nos casos em que elas chegam ao sistema nervoso central não há o que fazer", afirma o vice-diretor médico do HCor, o infectologista Pedro Mathiasi Neto.
No Brasil, a assessoria de comunicação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) forneceu dados de 2012, ano em que foi registrado um total de 11.731 notificações de IH (infecção hospitalar) provenientes das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de 1.128 hospitais brasileiros localizados em 25 unidades da Federação. O Sudeste concentra 59% das notificações e 54% dos hospitais que realizaram notificação, enquanto o Norte possui 6% das notificações e 6% dos estabelecimentos.
Quanto ao consumo de antibióticos, embora desde 2011 a venda seja controlada por meio de receitas médicas, ainda não há dados. "A escrituração dos dados das receitas aviadas nas farmácias e drogarias no SNGPC [Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados] passou a vigorar em 16 de abril de 2013. Assim, não existem ainda séries históricas suficientes para a avaliação mais robusta sobre o perfil de prescrição e de uso dos antimicrobianos", informa a assessoria.
No entanto, números divulgados por consultorias como a IMS Health apontam que os antibióticos são o quinto tipo de remédio mais vendido no mundo. Em 2013, o consumo bateu na cifra de US$ 40 bilhões, dos quais mais de US$ 1 bilhão só no Brasil. Segundo a infectologista do Emílio Ribas, a maioria das prescrições é equivocada, portanto inútil. "Acontece que o próprio paciente, quando chega ao consultório com uma inflamação na garganta, espera sair de lá com uma receita de antibiótico. Ele não tem uma infecção, tem um vírus e não precisa do antibiótico. Se ele tomar esse medicamento, vai matar as bactérias que naquele momento o ajudam a melhorar sua imunidade. E, pior, estimulará as mutações que se tornarão mais e mais resistentes", afirma Rosana Richtmann.
Em julho de 2009, o advogado Cesar Monteiro foi ao dentista para uma limpeza nos dentes. Na raspagem houve um pequeno sangramento. Dois dias depois da consulta, ele começou a se sentir mal, perdeu o apetite, passou a ter febre diariamente. Procurou o médico da empresa onde trabalha e o diagnóstico foi gastrite. Como a febre não cedia, passou a tomar, por conta própria, um analgésico e antitérmico. Mas só piorava e resolveu procurar outro médico. Saiu da consulta com uma requisição para fazer um exame de sangue naquela mesma hora. Do laboratório foi, sem escalas, para a UTI de um hospital em Brasília, onde mora. "Naquela hora, eu até não me sentia tão mal. Só que dali em diante só piorei", conta.
Durante uma semana, os médicos tentaram descobrir qual era a bactéria que se espalhava pelo corpo do advogado de 62 anos, provocando septicemia. "Na noite do dia 17 de julho, eu estava praticamente morto. Meus órgãos começaram a falir. O rim não funcionava. Fui entubado. Até hoje não sei como não morri", recorda-se. O advogado não morreu porque os médicos conseguiram achar um antibiótico que liquidasse o estreptococo (uma espécie de bactéria que pode causar sérias infecções, mas na maior parte dos casos é inofensiva). "A mortalidade dos pacientes com septicemia é de 50% dos casos", informa Mathiasi Neto.
O advogado não chega a ter o perfil exato do paciente de risco. Mas é um bom exemplo sobre como acontecem esses casos. Qualquer pequena falha no sistema imunológico e qualquer pequena ferida aberta são as portas para que as superbactérias entrem em circulação. No caso dele, os insignificantes arranhões na boca, provocados pela raspagem, permitiram a contaminação com o estreptococo. A bactéria é comum na boca e nas vias respiratórias.
"De fato, somos mais bactérias do que células", diz a infectologista Rosana. Elas têm uma estrutura extremamente simples, só podem ser vistas no microscópio (o tamanho oscila de 0,2 a 6,0 micrômetros - a milésima parte do milímetro). Calcula-se que só no intestino de um ser humano vivam mais bactérias do que todas as células existentes no corpo. A capacidade de reprodução, por divisão binária, é assustadora. Considerando um período de 11 horas, a cada 20 minutos uma bactéria pode gerar outros cinco milhões. "Achávamos que éramos mais espertos que os micro-organismos. Perdemos", constata o infectologista David Uip, secretário da Saúde de São Paulo.
Admitir a perda nesse confronto significa para a ciência um retrocesso de quase meio século. Foi em 1928 que o médico e bacteriologista escocês Alexander Fleming fez uma descoberta que transformaria a medicina. No laboratório do Hospital Saint Mary, em Londres, ele encontrou um fungo do gênero "Penicillium" que conseguia impedir a produção das moléculas que formavam uma membrana em torno do estafilococo. Fleming buscava algum agente capaz de deter a disseminação dessa bactéria, causadora de septicemia e responsável pela morte de milhares de homens na Primeira Guerra.
Na época, o achado não despertou muita atenção. A Segunda Guerra, porém, mostrou a importância de transformar aquele agente em um medicamento que combatesse as infecções. E a partir de 1940 a penicilina começou a ser produzida em escala industrial. Grandes investimentos em pesquisas no setor farmacêutico levaram à descoberta de novas substâncias. Surgiu a estreptomicina, usada contra a tuberculose. O bioquímico Selman Waksman, que a encontrou, não apenas conquistou o Prêmio Nobel de Medicina, em 1952, como também batizou o medicamento: antibiótico é a junção do latim "contrário" e do grego "vida". São os remédios à base de substâncias vivas capazes de exterminar outras.
Em 2012, porém, dados da Organização Mundial da Saúde mostraram que 500 mil casos de tuberculose foram causados por bactérias resistentes. Até 2015, as projeções são alarmantes e dois milhões de pessoas podem contrair a doença sem que seja possível curá-las e essas pessoas podem morrer do mesmo modo que acontecia nos séculos XIX e XX. A incidência da tuberculose, depois de um longo período em que foi considerada controlada, recrudesceu no rastro do HIV. O vírus da aids, ao destruir as células do sistema imunológico, abriu espaço e deu fôlego ao bacilo de Koch, que, segundo estudos científicos, pode estar presente em até 20% da população mundial sem ser notado. "O vírus da aids é a grande pandemia e o responsável pelo reaparecimento de doenças que considerávamos controladas", afirma o infectologista Luiz Carlos Pereira, diretor do Hospital Emílio Ribas, um centro de referência na América Latina no tratamento das doenças infectocontagiosas.
A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) coordenou os estudos de resistência antimicrobiana na América que estão no documento da OMS. O resultado mostrou que a "Enterichia coli" (uma bactéria comum no intestino) não é controlada nem mesmo pela terceira geração de antibióticos específicos desenvolvidos para tentar exterminá-la. Cerca de 90% das infecções provocadas pelo "Staphylococcus aureus" tampouco dão sinais de fraqueza quando tratadas com os medicamentos disponíveis. "O lançamento de novas drogas está sempre muito atrás dos micro-organismos que precisamos combater", diz Mathiasi Neto. No século XX, dez classes de antibióticos foram desenvolvidas. Nestes primeiros 14 anos do século XXI, apenas duas.
O "Staphylococcus" é uma bactéria que vive na pele sem causar problemas. Mas em contato com áreas internas pode levar à bacteriemia e osteomielite, entre outras graves infecções. Há maior dificuldade em destruí-la, depois que se instala na corrente sanguínea, porque é uma das mais resistentes a todo tipo de antimicrobianos. Já na década de 1940, junto com o surgimento dos primeiros remédios, apareceram grupos indiferentes aos medicamentos. "Ela é uma das mais importantes causas de infecções de pele. Mas os casos graves, em quase sua totalidade, são vistos nos hospitais", diz a dermatologista Thais Guerreiro.
Desde 1999, nos Estados Unidos, a proporção de "Staphylococcus aureus" resistentes à meticilina (MRSA, do inglês Methicillin-resistant Staphylococcus aureus) ultrapassa 50% entre os pacientes em UTI. No Brasil, os índices de cepas MRSA são também bastante elevados (40% a 80%), principalmente em UTIs.
À medida que os antibióticos vão se tornando impotentes, novas mutações de bactérias desafiam a ciência. Em 2007, um morador da Suécia viajou à Índia, o país onde nascera. Tinha 59 anos, era diabético e de saúde frágil. Ao chegar a Ludhiana, sua cidade natal, reparou que sua pele estava marcada por úlceras profundas. Foi mandado para a capital, Nova Déli, onde seu tratamento incluiu doses maciças de antibióticos. Resistiu meses até que, já de volta para a Suécia, médicos descobriram uma bactéria que os antibióticos conhecidos não conseguiam destruir. Cientistas da Grã-Bretanha, que colaboraram com os suecos, encontraram a enzima responsável pela força do micro-organismo. Eles a batizaram de New Delhi metallo-beta lactamase 1 ou NDM-1. No ano passado, ela surgiu em dois pacientes de um hospital em Londrina (PR).
Os hospitais estão no topo da cadeia de contaminação por superbactérias. Não quer dizer que esse ambiente concentre toda a responsabilidade por isso. Mas eles reúnem as condições propícias para que elas se propaguem. Primeiro porque estimativas apontam que os hospitais respondem, no Brasil, pelo consumo de 54% dos antibióticos. E segundo porque o paciente no hospital, é óbvio, não está em boas condições de saúde. Quanto mais delicado for o quadro e mais tempo o doente permanecer internado, maiores serão as chances de contrair uma infecção por superbactéria.
Ao entrar num hospital, o risco de cada pessoa de contrair uma infecção é diferente e há uma escala para medi-lo. O paciente é diabético? Tabagista? Tem doenças crônicas? Quanto tempo deverá permanecer? Se ele ficar menos de três horas, suas chances são menores que 1. A partir desse tempo, elas vão crescendo, até chegar a 10. "Se o paciente estiver na UTI, por exemplo, os instrumentos usados - sondas, cateteres etc. - podem ser uma fonte de contaminação. Eles abrem um espaço de entrada no organismo. Seria injusto, porém, dizer que as superbactérias são exclusivas do ambiente hospitalar", afirma o infectologista Mathiasi Neto, do HCor.
Embora combater as superbactérias seja uma tarefa quase impossível, para evitar a propagação desses seres, antes que se tornem invencíveis, são necessárias medidas bem possíveis. Nos hospitais, investimentos no treinamento, educação e controle dos profissionais são fundamentais. Para as pessoas, uma lição materna ajuda muito: lavar muito bem, e sempre, as mãos.
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