05 Setembro 2014
"As perspectivas do Ocidente, que por muito tempo dominaram o pensamento do Vaticano, estão sendo ampliadas pelas da América Latina. Um novo momento histórico chegou. O papa Francisco está assumindo um risco. Os conservadores, que já estão murmurando sobre outras mudanças nesta nova era franciscana, não estão felizes", escreve Paul Vallely, um diretor de "The Tablet", um jornal semanal católico internacional, e autor de "Pope Francis: Untying the Knots", em artigo publicado pelo jornal The New York Times e reproduzido pelo portal Uol, 05-09-2014.
Eis o artigo.
O papa Francisco está revertendo a posição de guerra fria do Vaticano contra a Teologia da Libertação.
O papa Francisco ganhou manchetes recentemente, quando anunciou que Roma suspendeu o bloqueio à beatificação do arcebispo Óscar Romero de San Salvador, que foi morto a tiros enquanto rezava uma missa em 1980. Mas muito menos atenção foi dada a outra das ações do papa, uma que ressalta uma mudança significativa dentro do Vaticano sob o primeiro papa latino-americano na história da Igreja Católica Romana.
O arcebispo Romero foi assassinado depois de falar em prol dos pobres, durante uma era em que esquadrões da morte de direita agiam em El Salvador sob um governo militar apoiado pelos americanos nos anos 70 e 80. Por três décadas, Roma bloqueou seu processo de beatificação por temor de que isso apoiaria os defensores da Teologia da Libertação, o movimento revolucionário que insiste que a Igreja Católica deve trabalhar para promover a libertação econômica e social –tanto quanto espiritual– dos pobres.
Esse obstáculo foi removido sob o papa Francisco. O papa agora diz que é importante que a beatificação do arcebispo Romero – um passo precursor da canonização – "seja feita rapidamente". Os católicos conservadores tentaram minimizar a importância política da posição do papa, afirmando que o arcebispo, apesar de um campeão dos pobres, nunca abraçou plenamente a Teologia da Libertoção.
Mas outra decisão do papa Francisco mina esse revisionismo. Neste mês ele também suspendeu a proibição de rezar a missa, imposta há quase 30 anos, ao padre Miguel d'Escoto Brockmann, que foi suspenso como padre por servir como ministro das Relações Exteriores do governo revolucionário Sandinista da Nicarágua, na mesma época. Não há ambiguidade quanto a posição a respeito da Teologia da Libertação do padre D'Escoto, que já chamou o presidente Ronald Reagan de "açougueiro" e "criminoso internacional". Posteriormente, como presidente da Assembleia Geral das ONU, o padre D'Escoto condenou os "atos de agressão" americanos no Iraque e no Afeganistão.
Mas há mais por trás da ação do papa do que gentileza a um senhor de 81 anos. Em uma reviravolta notável, a Teologia da Libertação está sendo revista. Durante a Guerra Fria, a ideia de que a Igreja Católica deveria dar "opção preferencial aos pobres" era vista por muitos em Roma como um marxismo mal velado. O papa João Paulo II, que foi criado sob o totalitarismo do bloco soviético, estava determinado a reprimi-lo. Em uma visita à Nicarágua, ele famosamente repreendeu com dedo em riste o colega do padre D'Escoto, o também padre e ministro Ernesto Cardenal. O Vaticano também silenciou expoentes cruciais da Teologia da Libertação. Seu padre fundador, o padre peruano Gustavo Gutiérrez, foi colocado sob investigação pela guardião da ortodoxia doutrinária do Vaticano, a Congregação para a Doutrina da Fé, ou CDF.
Washington compartilhava os temores do papa polonês com a possibilidade da nova teologia poder abrir outra porta para infiltração comunista na América Latina. A CIA criou uma unidade especial que informava sobre as centenas de padres e freiras radicais, muitos dos quais se tornaram vítimas das ditaduras militares da região.
O papa Bento XVI adotou uma abordagem mais sofisticada que a de seu antecessor. Como chefe da CDF antes de se tornar papa, ele emitiu críticas oficiais à Teologia da Libertação em 1984 e 1986. Elas endossavam a defesa dos pobres, mas condenava os "sérios desvios ideológicos" por parte dos radicais que abraçavam o determinismo econômico marxista e a luta de classes. Mas a maioria dos teólogos da libertação não dizia que os pobres deveriam pegar em armas. Eles apenas diziam que a Igreja Católica deveria ajudar os pobres a se libertarem de sistemas econômicos injustos por meio dos sindicatos trabalhistas, das cooperativas e de grupos de autoajuda.
Após o fim da Guerra Fria, o papa Bento encorajou os bispos da América Latina a encontrarem novos meios de expressarem a "inclinação para os pobres" da Igreja. Ele participou de um encontro seminal em Aparecida, Brasil, em 2007, no qual refinou a mensagem da Teologia da Libertação. O padre eleito pelos bispos para elaborar o documento foi Jorge Mario Borgoglio, o arcebispo de Buenos Aires, que seis anos depois foi eleito papa Francisco, e anunciou que queria uma "Igreja pobre, para os pobres".
O papa passou por sua própria revolução na Teologia da Libertação. Ele foi nomeado líder dos jesuítas na Argentina em 1973, em parte para reprimir o movimento. Mas 15 anos depois, após passar pelo que chamou de "grande crise interior", ele se tornou o "Bispo das Favelas" em Buenos Aires e passou a rever seus pontos de vista. Ao longo das décadas que se seguiram, ele reabilitou figuras cruciais da Teologia da Libertação na Argentina e apoiou o tipo de iniciativas de baixo para cima que o Vaticano, com seu modelo de governança autoritário de cima para baixo, tanto temia.
Quando a Argentina passou pelo maior calote de dívida na história bancária em 2001 –que lançou metade da população abaixo da linha de pobreza– o padre Bergoglio condenou o que chamou de estruturas econômicas "corruptas". Ele atacou o "capitalismo desenfreado" por fragmentar a vida econômica e social e disse que a "distribuição injusta de bens" cria "uma situação de pecado social que clama aos céus".
Essa é uma linguagem da Teologia da Libertação subordinada ao ensinamento social católico. Papas anteriores fizeram críticas semelhantes ao capitalismo, mas a linguagem do papa Francisco tem sido mais veemente e indignada.
No ano passado, o papa convidou o padre Gutiérrez, cujo livro de 1971, "Teologia da Libertação", está há anos sob investigação da CDF, para um encontro com ele no Vaticano. "L'Osservatore Romano", o jornal semioficial do Vaticano, marcou o evento proclamando que a Teologia da Libertação não pode mais "permanecer nas sombras às quais foi relegada por alguns anos, ao menos na Europa". Além disso, o padre Gutiérrez foi coautor recentemente de um novo livro com o arcebispo Gerhard Müller, o atual chefe da CDF, que foi nomeado ao cargo por Bento 16. O arcebispo Müller agora descreve a Teologia da Libertação como uma das "correntes mais significativas da teologia católica do século 20".
As perspectivas do Ocidente, que por muito tempo dominaram o pensamento do Vaticano, estão sendo ampliadas pelas da América Latina. Um novo momento histórico chegou. O papa Francisco está assumindo um risco. Os conservadores, que já estão murmurando sobre outras mudanças nesta nova era franciscana, não estão felizes. Mas em um momento em que a desigualdade econômica entre ricos e pobres está aumentando, a reabilitação pelo papa da Teologia da Libertação é oportuna e em grande parte bem-vinda.
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Papa Francisco quer retomar ''uma Igreja para os pobres'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU