Por: Jonas | 20 Agosto 2014
Emmanuel Renault é professor e diretor do Departamento de Filosofia na Universidade de Paris X-Nanterre (França), e autor de vários livros, como Marx e a Filosofia e Sofrimentos Sociais, entre outros. Convidado pelo Centro Franco Argentino da Universidade de Buenos Aires, participará de um seminário e palestras sobre o presente e os desafios de renovação enfrentados pelo pensamento de Karl Marx e a teoria crítica, após a crise do neoliberalismo. Sobre esses temas, o lugar que ocupam no mundo acadêmico e as opções para abordar o conflito social, abertas pelo conceito de “luta por reconhecimento”, discorreu para o jornal Página/12, via correio eletrônico.
A entrevista é de Javier Lorca, publicada por Página/12, 19-08-2014. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Qual é a atualidade da obra de Marx?
O desenvolvimento do altermundialismo, a partir de meados dos anos 1990, e a crise do neoliberalismo, nos anos 2000, fez com que se voltasse a Marx. A fase neoliberal do desenvolvimento do capitalismo confere uma centralidade política para as questões econômicas de tipo estrutural – como a mundialização, a deslocalização, a financeirização -. Por sua vez, deu lugar à emergência de uma nova classe dominante transnacional com lucros exorbitantes. A crise do neoliberalismo propagou a ideia de que as próprias estruturas do capitalismo significavam um perigo permanente para a sociedade. Tudo isto pareceu dar razão a Marx.
No entanto, não foi uma volta ao que foi a originalidade da política e a teoria que ele procurava elaborar, ou seja, uma política de autoemancipação dos dominados e excluídos, uma teoria social baseada na análise das tendências estruturais do modo de produção capitalista. Nesse sentido, podemos dizer que a volta de Marx não foi uma volta a Marx. Pois bem, o que em Marx é original é também pertinente para a análise do mundo atual.
Em que aspecto?
O Capital propõe uma análise das estruturas gerais do capitalismo que não foi igualado. Por outro lado, os escritos filosóficos e políticos esboçam uma teoria da autoemancipação, cujo mérito se dá a partir dos obstáculos para a autoemancipação: efeitos de legitimação e dissimulação ideológicos, processos de sujeição às relações sociais de dominação, isolamento e redução à impotência, devido aos mecanismos de exploração capitalista... Esta teoria oferece ferramentas indispensáveis para aqueles que não renunciaram ao projeto de uma política popular – de autoemancipação dos dominados e excluídos – e de uma democracia radical – ou de uma democratização da democracia -. Porém, isto não significa que basta ler O Capital para compreender o capitalismo contemporâneo, ou que O Manifesto Comunista é a chave de todos os problemas políticos e sociais aos quais nos confrontamos na atualidade.
E o que do pensamento de Marx estaria desatualizado?
Marx já havia insistido, em vida, sobre a necessidade de revisar suas próprias análises à luz das transformações econômicas e políticas, e é evidente que estas mudanças foram consideráveis desde a sua morte. O Capital descreve algumas tendências estruturais que jamais existem em estado puro. O capitalismo não é uma essência eterna, mas, sim, um fenômeno histórico. Também seria ilusório pensar que a autoemancipação dos dominados e excluídos só poderia ser pensada em relação à teoria marxista da dominação de classe e do partido revolucionário. Tanto para a teoria social, como para a análise e a estratégia política, manter-se fiel ao projeto de Marx significa reformulá-lo. Para isto, acredito que não se deve hesitar em se apoiar na sociologia de Bourdieu da dominação, na análise foucaultiana de poder, nas teorias feministas das relações sociais de sexo, nas teorias de raça, nos estudos subalternos e nas teorias do sistema-mundo.
Que lugar ocupam o marxismo e a teoria crítica no espaço universitário europeu?
Nas universidades europeias, Marx não saiu realmente do purgatório. As ciências econômicas não conferem nenhum lugar às “heterodoxias”, e nas ciências sociais não apenas os marxistas desapareceram de cena, como também as referências aos conceitos de Marx, que perderam toda a legitimidade. Assistimos a um ressurgimento dos conceitos de classe social e de dominação em sociologia, assim como a uma renovação da história social, mas esta evolução, que é propícia para novos usos de Marx, ainda não produziu esses efeitos. A situação é um pouco diferente na filosofia. Marx se tornou um clássico que é legítimo citar e comentar. Porém, não podemos dizer que haja uma verdadeira discussão filosófica sobre ele. A França é uma exceção, neste sentido, conforme demonstra uma revista como Actuel Marx, que tenta contribuir para esta discussão.
Qual é a situação da teoria crítica?
É um pouco diferente. Esta corrente de pensamento conserva uma forma de institucionalização bastante importante na Alemanha, Itália e França, ainda que se entenda “teoria crítica” no sentido limitado da tradição da Escola de Frankfurt, de seu projeto de atualizar Marx, apoiando-se na psicanálise e na sociologia e dando conta, ao mesmo tempo, das especificidades do capitalismo contemporâneo.
Na Alemanha, a presença universitária se deve principalmente a (Jürgen) Habermas, a (Axel) Honneth e a seus alunos, e corresponde a programas filosóficos que geralmente operam uma ruptura com as origens marxistas da Escola de Frankfurt.
Na França e na Itália, a recepção é também fundamentalmente filosófica. Porém, a referência a Adorno, mais frequente, serve muitas vezes para manter um vínculo com o programa inicial da teoria crítica e as tentativas de renovação permitem travar um debate com os neo e pós-marxismos.
Por que você considera que as denominadas “lutas por reconhecimento” são centrais para explicar o conflito social?
O conceito de “luta por reconhecimento” ilustra o tipo de atualização de Marx ao qual me referia. Posto em circulação por Honneth, um dos principais representantes da teoria crítica contemporânea, permite esclarecer, a partir de outra perspectiva, o que Marx localizou no coração dos processos sociais e políticos, a saber: o conflito.
Porém, além disso, permite fazer isso sem deixar de se apropriar dos novos problemas políticos apresentados pelas lutas, em sua dimensão identitária, contra as relações sociais de sexo ou de raça, das diferentes facetas da colonização interna. A função deste conceito é dar conta da maneira como a experiência da injustiça pode conduzir a práticas de transformação social e a reivindicações políticas.
Na perspectiva de uma política popular, é importante partir da experiência social dos dominados e excluídos. Na perspectiva de uma política de autoemancipação, também é importante dar conta das dinâmicas de politização da experiência social. Pois bem, observa-se que a experiência da injustiça se estrutura, na maioria das vezes, mais pelos afetos do que por representações claras e distintas da justiça. E também é um fato que esta experiência está, em geral, atravessada pelo sentimento de humilhação ou desprezo e que pode dar lugar a diferentes esforços com o objetivo de que cesse esta negação de reconhecimento, desde a fuga até a reivindicação explicitamente política, passando pela violência.
O conceito de “luta pelo reconhecimento” permite interpelar as diferentes dinâmicas de politização das experiências sociais negativas, a partir de suas motivações comuns, o que permite evitar a estigmatização das formas indignas da política dos grupos subalternos – a violência, as revoltas, etc. -.
Por sua vez, permite explicitar uma lógica comum à luta contra diferentes tipos de injustiça. Em geral, vive-se um salário de miséria como uma falta de reconhecimento da dificuldade ou do valor do trabalho, assim como uma moradia degradada pode ser causa de vergonha. As lutas pelo salário ou pelos direitos sociais implicam desafios de reconhecimento, por isso não há nenhuma razão para considerar que as lutas sociais e as lutas identitárias são inconciliáveis. Não o são, e o objetivo de uma política popular é trabalhar para reforçar as convergências.
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“Na universidade, Marx não saiu do purgatório” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU