28 Julho 2014
"Parece não restar nenhuma dúvida. Um despacho judicial, como o prolatado nesse caso de Cruz Alta, confirma o que já era sabido há muito tempo. Em 1987, durante uma conferência da OAB nacional realizada em Belém do Pará, justamente com o objetivo de se agilizar o respeito devido aos direitos humanos fundamentais do povo pobre, aí se incluindo as/os sem terra com direito à reforma agrária, transitava no auditório a seguinte tese: “é preciso garantir-se que a reforma agrária, atualmente impedida pela interpretação da lei, seja inviabilizada também pela sentença", escreve Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul. É mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Segundo o jurista, "é o que está acontecendo agora quando um juiz julga da forma como aconteceu neste caso".
Eis o artigo.
No dia 07 deste julho, um juiz federal devolveu para o foro de Cruz Alta o processo nº 5003011-04.2014.404.7116, na Justiça Federal e nº 011/1.14.0001672-6 , na Justiça Estadual, relativo a uma ação de reintegração de posse lá proposta contra dezenas de famílias de sem-terra, que haviam ocupado parte de um imóvel rural situado naquele município. Ele recebera o tal processo por força de o INCRA, uma autarquia da União legalmente encarregada de promover a reforma agrária no país, ter manifestado interesse na aquisição da área em litígio. Como se sabe, sempre que um ente público da União intervém num processo judicial que corre perante a Justiça Comum, esse processo tem que ser julgado pela Justiça Federal (art. 109, inc. I da Constituição Federal).
As famílias de sem-terra, então, voltaram a estar sob o risco de serem desapossadas. Por mais que este tipo de acontecimento se repita em todo o país, e algumas execuções de reintegração de posse terminem matando gente, as ordens judiciais de desapossamento das famílias sem-terra protagonistas dessas ocupações, são ainda bem raras as liminares, as sentenças, os acórdãos dos tribunais, as providências administrativas interessadas em investigar as causas de um fenômeno social dessa magnitude. Mesmo que ela revele uma injustiça social conservada e reproduzida por mandados judiciais desse tipo.
Embora não falte ao ordenamento jurídico do país disposições expressas sobre a forma e o conteúdo dos direitos que identificam o uso lícito e socialmente legítimo da posse sobre terra, seja ela urbana seja rural, a superficial visão de uma certidão fornecida pelo Registro de Imóveis que ateste domínio ou outro direito sobre uma determinada fração desse bem, tem sido julgada suficiente para fundamentar a expedição do mandado liminar de reintegração contra as/os sem-terra.
O fato mais do que notório da pobreza e até da miséria de que padecem milhões de brasileiras/os pobres no meio rural do Brasil provocou mudança significativa do nosso ordenamento jurídico, ainda em 1964, em pleno regime militar, por improvável que pareça, com o Estatuto da Terra e depois, em 1988, com a Constituição Federal. Para a implementação da política pública de reforma agrária, então, detalhada também por outras leis, ficou encarregado o INCRA. Não por outra razão, a tal política figura na própria denominação dessa autarquia.
Assim, que motivo poderia existir para o juiz federal devolver o processo para a Justiça Comum, em Cruz Alta? – No seu despacho ficou registrado o seguinte: “... a simples intenção do INCRA em adquirir o imóvel por meio de compra e venda permite, no máximo, o reconhecimento da existência de interesse patrimonial, social ou econômico, mas não jurídico, o qual pressuporia, ao menos, a demonstração da efetiva aquisição do bem, nos termos do art. 42, § 2º, do CPC.”
Observe-se o tamanho desse absurdo. O juiz não reconhece nem interesse social (isso para o dito despacho nem é “jurídico”...) para uma autarquia da União, cujo principal encargo público é o de garantir, justamente, o tal interesse jurídico sim e por força de lei, para promover a reforma agrária. Não é interesse jurídico o interesse social de garantir o acesso à terra? E mais: ele só reconheceria legitimidade para a mesma autarquia se ela já tivesse adquirido a terra em disputa.
Mas será que não dá para perceber que, se isso tivesse acontecido, a própria ação possessória nem teria sido ajuizada??
Não dá para perceber que o INCRA, com poder legal, jurídico sim, até para desapropriar imóveis rurais, está se propondo adquirir a terra pagando em dinheiro, tal a parafernália burocrática que enfrenta, no país inteiro, em centenas de ações de desapropriação de terra? Sujeitas a um tipo de defesa latifundiária, muitas vezes sustentada apenas na lerdeza histórica do devido processo legal que, como se sabe, protege bem mais a propriedade de um, mesmo ao custo da vida de multidões? A repressão ao descumprimento da função social da propriedade por ser “social” também não é jurídica?
Não dá para perceber que uma decisão dessas proíbe ao INCRA conferir um mínimo de eficácia aos primeiros artigos da Constituição Federal (o 1º, em seus incisos II (cidadania) e III (dignidade da pessoa humana) e o 3º em seu inciso III (erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais)?
O tal despacho procura apoio também em precedentes jurisprudenciais do próprio Superior Tribunal de Justiça. O que causa espanto, entretanto, a juízes/as com um mínimo de sensibilidade social, é o fato de que, exatamente pela repetição trágica das sucessivas ocupações de terra, que não ocorrem somente aqui no Estado, estão elas a exigir, como muito bem previu o PNDH-3 aquilo que a hermenêutica constitucional costuma identificar como necessária “interpretação de reajuste”.
No caso – e aí está o incrível paradoxo -, esse reajuste pode ser fundamentado até em jurisprudência anterior à própria criação do STJ e emissão de suas Súmulas, das quais se socorreu o infeliz despacho.
A história comprova: quando o ordenamento jurídico do país admitia a escravidão (leia-se em Lenine Nequete, O Escravo na jurisprudência brasileira, Porto Alegre: 1988, p.261, o seguinte precedente judicial em favor da liberdade dos escravos): “as disposições endereçadas ao bem de algumas pessoas, por utilidade pública, humanidade ou outro motivo semelhante, impunha-se interpretá-las com a extensão adequada a favor desses motivos (...) e quando houvesse obscuridade na lei, o remédio era entendê-la no sentido mais conforme com a intenção do legislador”. Isso aconteceu em pleno Brasil Império (1876).
Ainda que seja temperada a parte final dessa decisão judicial já que, modernamente, em vez de intenção do legislador, a doutrina constitucional se preocupa em dotar a interpretação das leis nos próprios princípios constitucionais, ao juiz que redigiu esse despacho faltou julgar o quanto de “utilidade pública” e “humanidade” (!) deveria ter sido cogitado para que “a extensão adequada a favor dos motivos” da intervenção do INCRA no processo estava presente.
Parece não restar nenhuma dúvida. Um despacho judicial, como o prolatado nesse caso de Cruz Alta, confirma o que já era sabido há muito tempo. Em 1987, durante uma conferência da OAB nacional realizada em Belém do Pará, justamente com o objetivo de se agilizar o respeito devido aos direitos humanos fundamentais do povo pobre, aí se incluindo as/os sem terra com direito à reforma agrária, transitava no auditório a seguinte tese: “é preciso garantir-se que a reforma agrária, atualmente impedida pela interpretação da lei, seja inviabilizada também pela sentença.”
É o que está acontecendo agora quando um juiz julga da forma como aconteceu neste caso. Não é que ele ataque a causa dos conflitos que lhe foram submetidos e, sobre os mesmos, faça justiça. Na medida em que impede a ação pública tendente a garantir o acesso à terra de quem à ela faz jus, em vez de dar solução legal e justa a um conflito social, ele não oferece outra saída as vítimas desse conflito senão a de fazer justiça pelas próprias mãos.
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Quando a ocupação de terra é a única saída - Instituto Humanitas Unisinos - IHU