15 Julho 2014
"As manifestações que explodem em nossas cidades mostram que a população não aceita mais que os processos decisórios ocorram a portas fechadas, capturados por interesses empresariais ou pessoais através de uma rede de laços profundamente encravada em nosso Estado e sistema político", escreve Cristiano Morsolin, Co-fundador do Observatorio SELVAS de Milão (Italia), em artigo publicado pelo portal EcoDebate, 14-07-2014.
Eis o artigo.
A Copa do Mundo já tinha definidos seus vencedores e vencidos. A Fifa e seus aliados, os donos do poder, seus grandes financiadores e empreiteiras, já ganharam seu jogo. Os historicamente excluídos já perderam, o que em alguns casos inclui o próprio teto, o espaço, o chão, oportunidades… A Copa do Mundo serviu de motivo para uma higienização das cidades. Remoções forçadas, ambulantes proibidos de trabalhar, mobilidade urbana comprometida.
As manifestações que ocorreram em São Paulo nas últimas semanas, reunindo diversos coletivos, têm como ponto em comum “a contestação dos gastos excessivos da Copa e a ausência de direitos nas áreas de saúde, moradia e das várias questões que são fundamentais para assegurar a dignidade humana”, diz padre Júlio Lancellotti,Coordenador da Pastoral do Povo de Rua, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste de São Paulo, padre Júlio Lancellotti está participando das manifestações em São Paulo e recebeu ameaças por ter criticado a ação da polícia durante os protestos.
Em entrevista à IHU On-Line (1), ele esclarece que “além da questão da Copa, estão presentes nas manifestações reações à questão da corrupção, aos desvios de verbas, à própria estrutura de um governo que se chama de progressista, ao descrédito da democracia representativa, à reforma política, que não acompanhou as mudanças, e a que se propõe está longe dos anseios da população. Há ainda, por parte dos governantes, uma incapacidade de entender e dialogar com novos sujeitos e personagens históricos. Hoje, a estrutura de sindicatos é questionada e os governantes querem conversar com as lideranças, porque estão dentro de uma estrutura que tem líderes, tem uma organização hierárquica; eles não estão conseguindo entender grupos libertários e horizontais. A estrutura do poder dificulta isso e há uma cristalização de uma visão, que não consegue perceber outras formas de visão. Convivendo com as pessoas que participam desses movimentos, vejo seres humanos que não são demônios”.
“Os grandes riscos de graves violações de direitos humanos na Copa do Mundo irão se abater principalmente sobre as meninas e os meninos no Brasil” denunciou na entrevista a Paulo Sérgio Pinheiro – presidente da Comissão Internacional da ONU de investigação sobre a Síria; secretário de Estado de Direitos Humanos no governo FHC; e Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP; e autor – a pedido da ONU – do mais completo estudo mundial sobre a questão da violência contra crianças e adolescência (2).
Raquel Rolnik: “Nossa questão não é impedir a copa, é mudar o país”
“Nossa questão não é impedir a copa, nossa questão é mudar o país, temos coisa muito mais importante a fazer, e mais complexa”, declara a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik sobre “Resistências no país do futebol”, título do livro lançado pela Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo (3).
Professora da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP, Raquel recentemente deixou o cargo de relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, que exerceu de 2008 a maio de 2014. Neste período, tornou-se uma referência internacional no tema violações de populações afetadas por megaprojetos esportivos, sobre o qual elaborou um relatório abordando os casos da Copa na África do Sul, das Olimpíadas na China e dos jogos da Comunidade Britânica na Índia, apresentado à ONU em 2010.
Mais recentemente, Raquel Rolnik tem se destacado como uma das principais analistas e críticas da captura corporativa dos espaços urbanos, dos desmandos e das graves violações de direitos e leis em nome da Copa do Mundo 2014 no Brasil. Este sequestro corporativo dos eventos esportivos, de acordo com a urbanista, é o problema principal que deveria incomodar, e não algum conflito ético de apaixonados por futebol.
“Quando apresentei o relatório [da ONU], descobri a perversa relação entre as políticas neoliberais urbanas e a organização de megaeventos esportivos, e a ligação entre estes dois elementos e a massiva espoliação dos direitos dos setores mais vulneráveis na cidade. Não por acaso os jogos, ao longo de sua história, foram, a partir de Los Angeles, tomados por operações de marketing, organizadas não pelos Estados mas por patrocinadores privados. Tem a ver com a globalização dos mercados imobiliários e financeiros, e a financeirização da produção nas cidades e o quanto essas plataformas dos megaeventos são uma vitrine de tudo e da própria cidade, como objeto de venda”, resume a urbanista.
O lugar da participação popular
“Estamos vivendo um novo ciclo”, avalia Raquel Rolnik. Um ciclo que se iniciou com as lutas pela redemocratização nos anos 80, e passou pelos movimentos sindicais e sociais, que foram conquistando novas institucionalidades e levaram à inclusão de novos partidos da base democrática no mainstream da política brasileira. Mas este processo, principalmente no período mais recente, não responde mais a todas as demandas da população, como se viu nas manifestações de junho de 2013, o que provoca rearranjos por vezes desfavoráveis ao processo democrático.
“Numa situação como esta que estamos vivendo, como não há forças no campo partidário que ecoem de forma direta e orgânica a voz das ruas, o perigo de totalitarismo, da militarização, está colocado. (..) Se nossa democracia representativa dá sinais claros de sua insuficiência, para não falar de seu esgotamento, isso significa que precisamos, sim, urgentemente, desenvolver e aprofundar instrumentos de democracia direta que permitam aos cidadãos sair da posição de espectadores e intervir diretamente na formulação, implementação e fiscalização de políticas públicas.
As manifestações que explodem em nossas cidades mostram que a população não aceita mais que os processos decisórios ocorram a portas fechadas, capturados por interesses empresariais ou pessoais através de uma rede de laços profundamente encravada em nosso Estado e sistema político.
Com a multiplicação das conferências, conselhos e consultas públicas em todo o país nos últimos anos, pudemos experimentar na prática instrumentos de democracia direta” (4).
Porque 250 mil pessoas ameaçadas de remoção?
Coordenadora da Articulação Nacional dos Comitês da Copa (ANCOP), entidade que reúne comitês populares para acompanhamento das ações dos governos, empresários e da FIFA em todas as cidades que recebem o evento, a ativista Rosilene Wansseto concedeu entrevista à Observatório sobre Latino-américa SELVAS comentando que “desde 2010, quando as primeiras lutas contra as violações trazidas pela Copa do Mundo iniciaram no Brasil, os Comitês Populares da Copa, nas 12 cidades sedes, se organizaram com intuito de fortalecer a defesa de direitos sociais e contra o modelo de cidade que aos poucos se implementava. Ao longo destes anos, com os desmandos e a truculência pela qual a Copa do Mundo foi sendo imposta, as diversas comunidades (250 mil pessoas ameaçadas de remoção), categorias e pessoas atingidas foram buscando formas de organização e resistência. O povo em geral foi percebendo que a Copa que se criava não traria benefícios para o país. Muitas vitórias surgiram deste processo de resistência. A partir das jornadas de junho de 2013, os levantes e reivindicações populares cresceram e as vitórias a partir da luta também. Hoje, ninguém pode negar que é com luta que se conquista!
A principal resposta dos Governos às pressões e conquistas não foram canais de diálogo e construção de novas políticas. Mas sim novas formas de repressão e violência policial. A este modelo de “segurança”, fortalecido e apresentado como legado em nome da Copa, nós manifestamos nosso repúdio. Torcemos pelo futebol e lutamos todo este período por uma outra Copa do Mundo, inserida em outro modelo de cidade, onde ocorram vitórias também na educação e saúde pública de qualidade, pela demarcação das terras indígenas, pelo fim da violência estatal e limpeza étnico-racial, pelo fim das remoções e despejos forçados, pela desmilitarização da polícia e contra a criminalização dos movimentos sociais” (5).
Segregação urbana aceita na ditadura segue sendo o padrão
A arquiteta Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAU), diz que pouco mudou desde que a ditadura militar promoveu a urbanização segregacionista, que reservou as melhores áreas urbanas aos ricos e jogou os pobres na periferia, distantes dos serviços públicos. Embora tenha havido avanços na Constituição de 1988, pouco saiu do papel. O direito à posse, previsto na Carta, é atropelado sempre que o Estado precisa de espaços para novas obras, como se viu no caso da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016. A reforma urbana foi abandonada (6).
O Senador Cristovam Buarque, Ministro da Educação do primeiro governo de Lula, considera outra segregação (7): “Até recentemente, a segregação se fazia com a convivência dócil dos excluídos, como se dizia então: os negros e os pobres sabem seus lugares. Não era necessário, como na África do Sul, explicitar em leis as calçadas e os banheiros só para brancos. No Brasil, a separação era automática, cada um sabia seu lugar. Com o aumento da população urbana, foi preciso separar fisicamente as classes, nos shoppings e condomínios, com cercas e crachás, mas ainda sem necessidade da explicitação em leis. Apesar de que houve propostas para proibir legalmente a entrada de imigrantes indesejados, bastava a apartação descrita no livro “O que É Apartação: O “Apartheid” Social Brasileiro”, de 1994.
Graças à internet, os “rolezinhos” desnudam o sistema de apartação implícita, sem leis. Daqui para a frente, os shoppings existirão e terão um papel positivo no conforto social, mas a “guerrilha cibernética” é uma realidade com a qual vamos conviver. Ou se assume a segregação explícita, ou se promove a miscigenação social.
E, para isso, o caminho é a escola. A segregação racial se fez nas alcovas, a segregação social se faz nas escolas. O único caminho decente e sustentável para o bom funcionamento dos espaços urbanos é a promoção da escola de qualidade em horário integral, com ofertas culturais para os jovens”.
A pedagogia social tem um papel importante como demostramos no IV Congresso Internacional de Pedagogia Social (8), que ocorreu em duas universidades de Campinas (UNICAMP e UNISAL) e em São Paulo (PUC/USP/MACKENZIE), com a organização do prof. Gerardo Caliman – professor da Universidade Católica de Brasília - Programa de Mestrado e Doutorado em Educação Cátedra UNESCO Juventude Educação Sociedade (muito conhecido na Europa, como experto da “Università Pontifícia Salesiana” de Roma (9) e prof. Roberto da Silva – USP, quem viveu dos três aos 17 anos confinado atrás dos muros da fundação FEBEM e acompanhou a história da instituição de perto organizando uma campanha por a sua extinção por muitas torturas e violação dos direitos da criança y adolescência (10).
Rafael de Oliveira Alves, Professor da Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais (Brasil) analisou A CIDADE E A COPA: EXCEÇÕES DO ESTADO E DO DIREITO EM FAVOR DA FIFA: “encontramos no Brasil os “Comitês Populares dos Atingidos pela Copa” que questiona o planejamento urbano estatal e de mercado das intervenções urbanísticas que reforçam a fractalização imposta pelo pós-fordismo. Como contraponto, os manifestantes propõem um planejamento urbano permeado pela cidadania material insurgente. Dialogam, assim, com as práxis cotidianas contrapostas à heteronomia estatal.
Se a fractalização normaliza a desigualdade e silencia os citadinos, a cidadania insurgente pretende ampliar esses “lugares de insurgência, porque introduzem na cidade novas identidades e práticas que perturbam histórias estabelecidas” (Holston, 1996, p. 250 (11).
(..) Quando identificadas intervenções urbanísticas que transformarão o espaço da cidade, vemos com mais intensidade que as matrizes de responsabilidades públicas são, em verdades, orientadas pelas exigências de um organismo internacional privado.
Nas três esferas analisadas – federal, estadual e municipal – observa-se uma orientação do Estado e do direito para a construção de exceções em favor do capital privado, capitaneado pela Fifa. Assim, confirma-se a hipótese de Agamben, para quem o Estado de exceção não é um evento isolado ou temporário, mas, sim, um modo de regulação social permanente (12).
NOTAS
5. ANCOP – Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa : http://bit.ly/1tIqcAw
11. Holston, J. 1996. Espaços de cidadania insurgente. Revista do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional, 24, 243–253.
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Copa do Mundo e a cidadania insurgente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU