Por: André | 14 Mai 2014
A primeira vez que Domingo Bresci (foto) viu Carlos Mugica foi em um jogo de futebol no seminário de Villa Devoto. Chamou-lhe a atenção não pela habilidade, mas pela garra: empurrava, chutava. “Assim foi durante toda a sua vida, um apaixonado, entregue a full”, disse Bresci, que se encontraria com Mugica no Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo (MSTM). Juntos compartilharam, entre muitas outras coisas, uma “parada” em frente à Casa Rosada contra a erradicação das favelas, que eles pretendiam transformar em bairros operários, e protestos na prisão de Devoto e no interior contra as condições de detenção dos presos políticos. Bresci, agora à frente da Paróquia São João Batista e assessor da Secretaria de Culto, foi delegado regional do MSTM. Mugica não teve cargos no Movimento, mas se destacava por sua personalidade e carisma. Bresci fala com o Página/12 em uma pequena sala da Chancelaria, muito próxima do acolhedor bairro no qual viveu Mugica e também da Villa 31, onde o padre fundou a Paróquia Cristo Operário e levou adiante seu trabalho pastoral e social. “Foi um transgressor da sua classe e um transgressor dentro da Igreja”, disse.
Fonte: http://bit.ly/1iJzDnK |
A entrevista é de Victoria Ginzberg e publicada no jornal argentino Página/12, 11-05-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Quando e como conheceu Mugica?
No seminário de Villa Devoto. Ele foi ordenado sacerdote em 1959, eu em 1962. O conheci olhando como jogava futebol nas quintas-feiras à tarde, que era o dia livre dos seminaristas. Sobressaía-se porque era um tipo que se metia, chutava, empurrava, empenhava-se com toda a sua energia. E assim foi durante toda a sua vida, era um apaixonado pela vida, entregue a full. Pela forma de ser de Carlos chamavam-no de "Bestia". Mas não era monstro no futebol, era monstro para trabalhar, para rezar. Era obsessivo com tudo o que fazia.
No seminário também se destacava?
Pelo que sei, ao contrário do seu primário e secundário, que parece que não foram muito brilhantes – é interessante que não foi a um colégio religioso, mas a um público, e o secundário o fez no Nacional de Buenos Aires –, no seminário era uma pessoa muito inquieta, preocupada. Era a época da preparação do Concílio Vaticano II, que começou em 1962.
Quando se aproximaram?
No seminário comecei a trabalhar, junto com um grupo de professores do seminário, com universitários da UBA. Havia um grupo que se chamava Juventude Universitária Católica que tinha a ideia de se aproximar, no espírito do concílio, muito aberto, ecumênico, da realidade do pensamento, da intelectualidade. Tudo estava em ebulição. Havia um clima revolucionário em todos os âmbitos: a guerra do Vietnã havia influído muito, antes a Revolução Cubana, a Argélia. Os grupos cristãos participavam. Aí nos conhecemos. Depois tivemos outras aproximações com questões sociais. Em 1957, houve uma grande enchente que afetou muito a Grande Buenos Aires e fomos às zonas inundadas, ajudamos. Ele incursionava ajudando o padre da Paróquia Santa Rosa de Lima, em Belgrano e Pasco, em uma atividade de visita a bordeis de Balvanera. Isso era uma novidade para ele, que vinha daqui da região, da rua Arroyo. O pai foi ministro de Relações Exteriores de Arturo Frondizi e a mãe, proprietária de muitos hectares de terras na província. De Arroyo ao bordel foi um salto enorme. A outra etapa foi ir para Resistencia para fazer uma experiência de vida rural e conhecer essa problemática. Depois organizou acampamentos, nas férias íamos às fábricas, ajudávamos famílias na construção das suas casas e aí se foi dando essa afinidade, na linha da preocupação com o social. Depois de conhecer a situação, nos colocávamos a questão de porque havia tanta injustiça e aí começou o que aqui se chamou de diálogo com o marxismo, que também vinha da Europa.
Isso foi orgânico?
Era na Faculdade de Filosofia e Letras. Chamaram-no porque o conheciam, era um homem de reflexão. Os universitários estavam organizados em grupos, mas na Igreja éramos sujeitos soltos. A organização dos Sacerdotes para o Terceiro Mundo foi posterior. Antes foi o processo de “conversão”. Carlos não nasceu pobre; converteu-se aos pobres. Começou pela descoberta da problemática social, os bairros, o interior, os sindicatos, as favelas. Depois, ou simultaneamente, fez-se a pergunta pelas causas dessa situação. Para entender isso seria preciso buscar instrumentos de análise e nesse momento o marxismo era o que estava em voga. Depois houve críticas, uma atualização, constituíram-se as cátedras nacionais para analisar os processos nacionais de libertação, de onde surgiu a denominação de Terceiro Mundo. Mesmo que seja nomeado secretário do cardeal de Buenos Aires Alberto Caggiano, mesmo que seja nomeado para a Paróquia de El Socorro, de Juncal e Suipacha, Carlos começa uma aproximação com a favela que estava perto da sua casa e da paróquia onde trabalhava. Começa a ver essa contradição entre esses dois mundos. Em seguida, a presença dele na favela foi para incentivar as melhorias nas condições de vida das pessoas e isso o levou a organizar o próprio pessoal do lugar. Sua conversão o levou ao seu compromisso. Depois das etapas social e ideológica vem a etapa política. Ele e muitos outros começaram a incursionar, depois que se fundou o Movimento, na política... como se fazia, com quem, com que instrumentos. Sempre procurando acompanhar o processo da própria gente. Todos aprendemos que era preciso escutar o povo, não dizer a ele o que tinha que fazer.
E então se aproximaram do peronismo?
As maiorias populares eram majoritariamente de identidade peronista. Se queríamos estar com o povo não havia outra forma. Havia que acompanhá-lo, mas não somar-se indiscriminadamente. Diferenciamos a identidade peronista da cúpula peronista e do partido justicialista. Nós nos apoiávamos na essência histórico-cultural do peronismo.
Como foi a relação pessoal de Mugica com Perón?
Perón interessa-se pelo Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo porque sua última experiência foi brigar com a Igreja, em 1955. Muitos dos padres que pertenceram ao Movimento eram antiperonistas em 1955 por defender a Igreja. O Movimento redescobre o peronismo através destas experiências de inserção em territórios. O que custaria a Mugica, que vinha de uma família antiperonista, era dizer que era peronista. Era um peronismo que depositava uma grande expectativa em Perón, no seu retorno. Em 1968, Mugica viaja para Paris para fazer seis meses de atualização teológica e vai para Puerta de Hierro e conversa com ele.
Por conta disso depois é nomeado para o Ministério da Ação Social?
A Juventude Peronista quer incluir Carlos na lista de deputados da Capital. Conversamos sobre isso e decidimos que não, que não queríamos assumir esse papel, mas o de apoiar, acompanhar. Fizemos uma contraproposta, a de ser assessor do Ministério da Ação Social, porque se supunha que isso favoreceria a ação que ele estava desenvolvendo nas favelas.
E já sabiam quem era López Rega?
Uma parte, mas não tudo. Desde o começo, Carlos começa a se sentir incomodado entre os funcionários, mas também tem suas discordâncias com os projetos que López Rega tinha sobre as moradias. Os padres vileiros propunham que fossem os próprios favelados os que pensassem suas casas e participassem de projetos de construção. López Rega queria fazer isso através de empresas. Isso não interessa a Carlos... e a administração do dinheiro... Convoca uma assembleia de bairro e decide renunciar. Isso provoca um enfrentamento com López Rega, que incidiu seguramente para que a Triple A o matasse.
E a relação com as organizações armadas, sobretudo com os Montoneros?
Vinha, sobretudo, do Colégio Nacional de Buenos Aires. Foi assessor de grupos de jovens católicos. Aí os conheceu. Depois eles se organizaram, não o consultaram mais sobre a organização, mas ele e Alberto Carbone eram lideranças. Depois há diferenças com o modo de encarar e analisar como tinha que ser a revolução na Argentina. Há um distanciamento que se acentua com o retorno de Perón e a passagem à clandestinidade dos Montoneros. Eles não respondem à condução de Perón, eram muito verticalistas e se militarizaram.
Mas Mugica não descartava a luta armada, ou sim?
Ele tem essa frase que diz: “eu posso deixar me matar, mas nunca vou matar ninguém”. Todos dizíamos que essa decisão tinha que partir do povo em seu conjunto, não de um grupo de dirigentes iluminados que diziam o que, quando e como se daria essa luta armada.
Mas em um contexto de ditadura a apoiava...
A apoiamos. O Movimento. Em um contexto de ditadura era legítimo, mas tinha que estar respaldada pelo povo. Esse era também um questionamento para as organizações. Na democracia se deslegitimava.
Estava claro nesse momento quem foram os que o mataram ou houve discussões?
A princípio não estava muito claro. No dia seguinte à morte, o jornal Noticias, dos Montoneros, fez um comentário muito lavado sobre a morte de Carlos e isso levantou a suspeita de que poderiam ter algo a ver. Carlos não economizava críticas para aqueles que haviam sido seus alunos. Inclusive no velório, na Paróquia São Francisco Solano, há uma briga quando alguns membros dos Montoneros aparecem. Depois Mario Firmenich pega Alberto Carbone, levam-no em um carro com os olhos vendados, e em um tom amistoso diz a eles que não foram eles, que a ordem para matá-los não partiu deles. Depois se especula que poderia ter sido um grupo de discordava da condução do processo. Mas, finalmente, se soube que a ordem veio da Triple A, que tinha muitos motivos para isso. Em poucos meses, além disso, matam a outros líderes sociais como Rodolfo Ortega Peña, Atilio López, Silvio Frondizi. Era uma operação de terror, para implantar o medo.
Mugica teve muitos embates que a hierarquia da Igreja?
Em 1972, o arcebispo Juan Carlos Aramburu pediu-lhe que abandonasse o sacerdócio e que se dedicasse à política. Foi punido. Isso lhe doeu muito, porque era uma pessoa da Igreja. Foi um transgressor da sua classe e um transgressor dentro da Igreja. Renunciou à possibilidade que tinha de dinheiro, mulheres e renunciou também à possibilidade de uma carreira eclesiástica. Em seguida, nomearam-no secretário do cardeal e para a Igreja do Socorro. Poderia ter sido bispo rapidamente, comportava-se bem, pela família da qual vinha... Mas, não queria isso.
Quem ocupa hoje o lugar antes ocupado pelo Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo na Igreja?
Seriam os padres na opção pelos pobres, mas o contexto é muito diferente. Os problemas de fundo em alguns aspectos melhoraram, mas outros se mantêm. Hoje, a moradia, a terra, a organização social continuam sendo desafios. Agora há o Plano Pro.Cre.Ar, mas a envergadura do que existe para fazer é muito grande. Agravou-se com as drogas.
Há uma mudança com Francisco na Igreja.
Como Francisco apoiou os padres vileiros, os que falavam contra se cuidam. Mas é contraditório ver certos meios falando dos pobres quando os que estão com esses meios são os que fabricam os pobres. É absurdo, “preocupados com a pobreza”... se é produzida pelos setores que estão com eles. Com Francisco muda um pouco o eixo. Se ele disse “uma Igreja pobre para os pobres”, que é o que nós dizíamos, bem-vindo seja. Mas vejamos como isso se implementa. Continuam atuais as questões que Carlos colocou e ele tinha vinculação com os jovens também. O grupo Cristãos para o Terceiro Milênio reclama para que a Igreja permita o acesso aos arquivos da época da ditadura que existem no Episcopado e também se pede o mesmo ao Vaticano. Pelo que parece, Francisco deu o aval, mas até agora não se soube de nada. Também solicitaram ao Episcopado que se declare a Carlos como mártir do povo de Deus, a ele e a todos os bispos, sacerdotes e leigos assassinados.
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“Mugica foi um transgressor da sua classe e um transgressor dentro da Igreja”. Entrevista com o padre Domingo Bresci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU