28 Abril 2014
A ideia do aggiornamento [atualização] é a síntese de uma vida inteira; nela, encontram-se todas as etapas do caminho espiritual de Angelo Roncalli.
Publicamos aqui um artigo do então padre Joseph Ratzinger, publicado em 1968 pela revista Theologische Quartalschrift, e republicado pelo jornal Corriere della Sera, 25-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A grande figura do Papa João XXIII, em muitos aspectos, é um enigma. Com a sua ideia do aggiornamento [atualização], ele criou um novo modelo conciliar e fez uma reviravolta até então impensável na história da Igreja do século XX.
Mas de quais fontes brotava esse impulso? Prevalece largamente a impressão de que, na realidade, tratou-se, acima de tudo, de um desenvolvimento casual, do qual o simples e bom sacerdote de Sotto il Monte não podia ignorar a importância.
O fato de que ele mesmo tenha se definido como um saco vazio que o Espírito Santo encheu repentinamente de força parece ser uma confirmação direta dessa teoria da sua própria boca. Mas qual dos seus antecessores poderia ter tido a coragem, o autodistanciamento e a autoironia, a liberdade e a soberania interior diante das prementes exigências do ministério papal, para falar de si mesmo nesses termos, sem ter medo de comprometer a si mesmo ou o próprio ministério?
Quem dentre eles, sem a precisão do modo de falar curial ou teológico, poderia ter expressado com uma imagem tão direta e vigorosa a experiência da sola gratia, que aqui não é repetida só porque foi aprendida nos livros, mas é dita de modo novo com vivacidade, a partir da experiência pessoal mais madura, evitando todas as teorias, e que, por isso, é tão emocionante a ponto de ser reconhecida como verdade?
Quem consegue falar de modo tão direto, tão pessoal e tão livre não é um pároco de aldeia elevado repentinamente por um acaso da história, que não sabe o que faz, mas faz parte dos poucos que são verdadeiramente grandes, que, superando todos os esquemas, a experimentam pessoalmente de modo criativamente novo o que está na origem, a própria verdade, e conseguem colocá-la novamente em destaque.
Considero que a frase recém-lembrada seria suficiente por si só para assegurar a João o predicado da verdadeira genialidade, sem com isso tornar falsas as palavras sobre o saco vazio. Quem realmente sente a exigência da graça também sente a incongruência de todos os pressupostos humanos, que, antes disso, nunca podem ser nada mais do que um "saco vazio".
Mas onde afundam as raízes dessa magnitude? E qual é o seu verdadeiro conteúdo espiritual? (...)
Willam [autor do livro Vom jungen Angelo Roncalli (1903-1907) zum Papst Johannes XXIII (1958-1963), publicado em 1967 que Ratzinger está resenhando neste texto] mostra que a ideia do aggiornamento é a síntese de uma vida inteira; nela, encontram-se todas as etapas do caminho espiritual de Roncalli.
O mais surpreendente, porém, é que a principal raiz remonta ao tempo do seminário e se esconde em uma notícia do dia 16 de janeiro de 1903, que faz com que se reconheça uma virada dramática na luta pela santidade pessoal, refletida nas anotações do diário. Uma experiência de profundidade incisiva torna-se visível quando o seminarista de Bérgamo escreve: "Com a força de tocá-la com a minha mão, me convenci de uma coisa, isto é, como é falso o conceito que eu mesmo formei sobre a santidade aplicada".
A força da experiência pessoal que se esconde por trás dessas palavras é inequívoca; pode-se perceber nela aquela conversão autêntica de Roncalli, que fez do bravo seminarista aquele grande que o mundo aprendeu a conhecer a partir de 1958.
Não surpreende, portanto, que justamente em tal experiência se forjou a ideia de que entrou na história como verdadeira obra desse homem e que constituiu o centro do seu pensamento e da sua ação. Expressa-se nas palavras: "Da virtude dos santos, devo tomar a substância e não os acidentes. Eu não sou São Luís, nem devo me santificar exatamente como ele, mas como comportam o meu ser diferente, o meu caráter, as minhas condições diferentes. Não devo ser a reprodução magra e enrijecida de um tipo talvez perfeitíssimo. Deus quer que, seguindo os exemplos dos santos, absorvamos a sua seiva vital da virtude, convertendo-a no nosso sangue e adaptando-a às nossas atitudes individuais e circunstâncias especiais […]".
Os elementos decisivos do conceito de aggiornamento no conjunto aqui já estão dados, como ilustra Willam por meio de precisas análises: a distinção entre substância e acidentes, a recusa da "reprodução magra e enrijecida", a ênfase posta somente na "seiva vital", a necessidade de adaptação às atitudes e às circunstâncias da vida.
Mas isso significa: a ideia do aggiornamento não se referia acima de tudo às questões da dogmática teológica ou à mudança e à renovação da Igreja, mas está enraizada na luta pela verdadeira forma de santidade. Só a partir desse centro ela pode ser entendida concretamente: é essa intuição decisiva para a compreensão da verdadeira vontade do Papa João que emerge aqui. (...)
Indubitavelmente, mesmo depois de ter revelado desse modo o percurso espiritual do Papa Roncalli, muitas coisas permanecem escondidas no silêncio dos melhores anos da sua vida. Por exemplo, o que aconteceu quando, em vez dos santos jesuítas Luís, Estanislau Kostka e João Berchmans, Roncalli escolheu Francisco de Sales como seu santo?
O que aconteceu para que o "passo à frente" do conde Grosoli se tornasse "salto à frente" do papa do Concílio? De que modo João descobriu a tarefa ecumênica e de que modo descobriu as culpas dos cristãos para com os judeus?
A partir de onde se explica aquele inédito otimismo, que deveria ser melhor descrito como espiritualidade da esperança, em virtude do qual, por ocasião da inauguração do Concílio, ele pôde discordar daqueles profetas da desventura, "que anunciam sempre o pior, quase como se incumbisse o fim do mundo", e aos quais ele contrapunha as suas audazes palavras de esperança: "Tantum aurora est; et iam primi orientis solis radii quam suaviter animos afficiunt nostros!" (Constitutiones, decreta, declarationes, p. 870).
Tudo isso, em última análise, continua sendo o mistério de uma maturação da qual a herança escrita do papa nos faz reconhecer apenas alguns fragmentos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
''João XXIII fez uma reviravolta na história da Igreja.'' Artigo de Joseph Ratzinger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU