Por: Caroline | 15 Abril 2014
Joseba Achotegui é psiquiatra, psicoterapeuta e secretário geral da sessão de psiquiatria transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria, é também professor titular da Universidade de Barcelona. No presente artigo traz algumas reflexões sobre a nossa sociedade contemporânea e sua relação com a “saúde” e “doença”, sua construção social e implicações políticas. O artigo é publicado por Publico, 13-04-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Um velho aforismo médico diz que a saúde é um estado transitório de bem-estar. Bem, essa afirmativa parece não anunciar nada de bom, afinal, todos nós ficaremos doentes. Por isso a prevenção deve ter certa proporção, uma racionalidade, e não pode ser algo que acabe gerando cada vez mais problemas que devem resolvidos, algo que nossa sociedade parece esquecer, cada vez mais.
Já dizíamos, em outro artigo, que a racionalidade é atualmente considerada como algo superado, extinto, defasado, frente ao brilho que acompanha a intuição e a emoção e, pelo visto, devem ser nossas guias na vida. Pois bem, justamente nesse ponto entra a “hipocondrização”, pois é através da irracionalidade e dos medos que ela é facilmente induzida na relação com a saúde. E, nesse ponto, acaba sendo associada uma enorme falta de formação em saúde, da qual a população padece. Por exemplo, por que não se explica a racionalidade e a desmistificação que o modelo evolucionista oferece para pensarmos as doenças, isto é, não como um castigo, uma ameaça, ou um mal bíblico sem a consequência da interação de determinados fatores de adaptação que hoje em dia são cada vez mais conhecidos e que, se forem compreendidos, poderão ser resolvidos com maior frequência? A doença é uma doença, um desafio adaptativo.
Com a louvável desculpa de fazer a prevenção das enfermidades, algo obviamente muito importante, é realizada uma grande campanha de “hipocondrização” da população: por exemplo, uma parte relevante da publicidade trata dos riscos de doenças, e dos respectivos produtos para preveni-las. Com a elogiável intenção de nos proteger, primeiro nos colocam o medo no corpo e depois, rapidamente, nos oferecem um produto que possa nos salvar. (Um velho procedimento, mas já bem conhecido em outras áreas da sociedade).
É verdade que a declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1948 consagrou a famosa definição de que “a saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não a mera ausência de doenças” com o bem-intencionado propósito de integrar os aspectos psicossociais no conceito de saúde. Aquela definição foi elaborada no contexto do surgimento dos sistemas públicos de saúde e da descolonização e teve como objetivo mostrar a importância de melhorar as condições de vida da sociedade. Entretanto, aos poucos, essa ideia foi se modificando e, poderíamos dizer, que seu sentido foi sendo transformado, e passou-se a considerar que a saúde é algo “absoluto” pelo qual devemos pagar qualquer preço, mesmo que, paradoxalmente, indique algum risco à própria saúde, como ocorre quando, em busca da prevenção, são ingeridos comprimidos com perigosos efeitos colaterais, ou quando são realizados, indiscriminadamente, repetidos testes de riscos para pesquisas.
O atual sistema dominante, fundamentado na ideia capitalista da briga de gladiadores, necessita de um inimigo que deve ser eliminado ou explorado. Como aponta Sandín, as bactérias e os vírus cumprem com perfeição este papel. Transmitiu-se a população a mensagem de que vivemos um perigo permanente, uma guerra. “Já tomou suas defesas?” nos diz um conhecido anúncio mostrando alguém que acaba de se levantar da cama. Esta é a guerra, “mais madeira”, como diria o comediante estadunidense Groucho Marx.
Assim, apenas 1% dos vírus e bactérias são hostis, e isso em determinadas circunstâncias, contudo já temos um inimigo externo, na linha de George Orwell de 1984. Sabemos que nosso corpo tem mais bactérias simbióticas conosco, que formam parte de nós mesmos, como as células. Nosso DNA é constituído, em grande parte, por vírus embutidos, que cumprem importantes funções, mas aqui estamos em uma guerra aos vírus e às bactérias para conseguir a assepsia total, a necessidade de sempre melhorar nossas defesas nesta guerra permanente na qual estamos. As consequências, a questão dos gastos sanitários desnecessários e o medo no qual vivemos, são, por exemplo, o incremento das alegrias e a diminuição da resposta imunitária.
Não falemos de um nível psicológico nesse momento, tema que tratei em outros artigos neste mesmo blog, onde a confusão premeditada entre stress e transtornos de ansiedade, dor e depressão, entre outros, é algo massivo.
Todavia, conhecemos muito bem a relação sobre a prevenção da doença, mas o que mais afeta a saúde é a pobreza, algo que está crescendo de maneira exponencial em nossa sociedade. É nessa questão que deveria estar a maior parte da verdadeira prevenção, não na “hipocondrização”. Hoje sabemos muito bem que pelo simples fato de viver em uma área pobre de uma cidade, a esperança da vida diminui em 10 anos, já para aquele que vive nas ruas restam 20 anos de vida. “A rua mata”. Porque, como já indicava a epidemiologia, na saúde se pesa mais com o código postal do que com o código genético.
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“A biopolítica hoje: da prevenção à ‘hipocondrização’ da sociedade”. Artigo de Joseba Achotegui - Instituto Humanitas Unisinos - IHU