31 Março 2014
"A veia totalitária do regime entrava pela nossa goela, cotidianamente. No cinismo que fez propaganda de crescimento econômico em meio a desabastecimento, miséria e fome; no arrocho salarial; na carência de livros editados; na censura moralista e estreita a filmes de sucesso internacional, como o Último tango em Paris. Nas filas para matricular crianças na escola pública, na procura por feijão. Nos apartamentos dos vizinhos invadidos a coronhadas nas buscas por guerrilheiros, nas noticias imprecisas de sequestros, tortura e morte, em nossos colegas presos e exibidos em frente à faculdade em carros da polícia. Na propaganda mentirosa, nos dados falsificados da inflação, nos boatos e nas informações truncadas, na impossibilidade de saber o que acontecia, afinal em nossa nação", escreve Jane Dutra Sayd, médica, professora adjunta aposentada do Instituto de Medicina Social da Uerj e membro da organização de base Palmiro Togliatti do Partido Comunista Brasileiro 1970- 80.
Eis o depoimento.
Nasci num 31 de marco de 1951. Cinquenta anos atrás, acordei para o meu aniversário com um ninho de metralhadoras encostado ao muro de casa. Era o golpe que destituiu o Jango, presidente eleito. Desde menina até me tornar profissional e mãe com filhos, vivi sem meus plenos direitos, de livre expressão e voto. Hoje, feliz, quero usufruir da liberdade desta nossa democracia para dar um depoimento sobre o que foi o dia-a-dia durante a ditadura brasileira.
Foi ruim, muito ruim. A primeira coisa que perdi, desolada, foi a esperança inebriante, adolescente, de que o método Paulo Freire alfabetizaria o país. A nossa área educacional foi extremamente perseguida em todos os níveis e a educação publica desmantelada no primeiro minuto após o golpe. A área cultural também foi vítima de censura e massacres ignorantes e violentos. As proibições a livros, filmes e músicas, as prisões e perseguições eram arbitrárias e sem maiores razões, mas, sem dúvida, trabalharam contra a inteligência: conseguiram expulsar nossos artistas, cientistas, físicos, biólogos, filósofos, economistas, jornalistas. Nós víamos os filmes na primeira semana; comprávamos livros e discos em cima do lançamento, antes que a censura mudasse de idéia.
Crescimento econômico houve, industrial, indiscutível. Mas realizado em um regime de opressão bárbaro sobre nossa classe operária. Os que não concordassem em dar horas extras eram demitidos no ABC paulista. Falava-se de uma mortandade de trabalhadores nos alicerces da ponte Rio Niterói e na rodovia Transamazônica, apontadas como mega operações de corrupção, além de campeãs no morticínio ocupacional. Os trabalhadores foram explorados ao máximo. A classe média foi espoliada em 1972, após incentivos de toda sorte para especular com ações; o estouro da bolha levou as economias forjadas no “milagre”.
Não só a educação e a saúde foram relegadas a um segundo plano. As condições de alimentação da população não eram de responsablidade pública. A única preocupação do ministério da agricultura era a soja para exportação, com plantio em regime de maquinaria pesada e expulsão de posseiros e mão de obra tradicional do campo. Durante anos houve falta de feijão e fila para comprar carne, óleo de soja, cebola e batata. O leite integral passou a ser mais caro, artigo de luxo, enquanto as massas consumiam leite desnatado. A ditadura jamais tomou sequer uma providencia para minorar este descalabro; dizia-se apenas que a seca na Bahia ocasionou a falta de feijão no país inteiro. É de supor que nossa população miserável sobreviveu de brioches nesse tempo sem feijão. As epidemias eram censuradas na imprensa, dados negativos sobre a população, como desnutrição ou mortalidade infantil, também.
O cotidiano para qualquer cidadão minimamente consciente tornou-se muito ruim, à medida que o regime se tornava mais autoritário, com laivos mesmo totalitários. O carnaval foi regulado: os sambas enredo tinham que se referir à história do Brasil. Proibiram a venda de cachaça no Carnaval, licenciando as bebidas mais caras. A Lei de Segurança Nacional proibia a carona, para dificultar a fuga de guerrilheiros. Passava-se nos pedágios na estrada sob a mira de metralhadoras. Houve anos de racionamento de combustível. Não se vendia gasolina no fim de semana. Não se podia sair do país sem pagar um depósito compulsório de 2000 dólares. E, humilhação e vergonha para o cidadão correto, era necessário uma certidão de que não se era subversivo para ter emprego público, para entrar na universidade, para bolsa de estudos, estágios e etc., fornecida pelo DOPS.
Assim, a veia totalitária do regime entrava pela nossa goela, cotidianamente. No cinismo que fez propaganda de crescimento econômico em meio a desabastecimento, miséria e fome; no arrocho salarial; na carência de livros editados; na censura moralista e estreita a filmes de sucesso internacional, como o Último tango em Paris. Nas filas para matricular crianças na escola pública, na procura por feijão. Nos apartamentos dos vizinhos invadidos a coronhadas nas buscas por guerrilheiros, nas noticias imprecisas de sequestros, tortura e morte, em nossos colegas presos e exibidos em frente à faculdade em carros da polícia. Na propaganda mentirosa, nos dados falsificados da inflação, nos boatos e nas informações truncadas, na impossibilidade de saber o que acontecia, afinal em nossa nação.
O legado da ditadura foi o atraso nas nossas tentativas de criar uma sociedade civil inclusiva, atraso com agravantes no plano moral. O autoritarismo opressivo da ditadura corroeu entre nós o valor da autoridade legítima. Aprendemos que toda autoridade é autoritária e deve ser respeitada o mínimo possível. O ufanismo mentiroso nos deixou incapazes de ver nossos méritos reais. Foram todos guindados igualmente à categoria de patriotadas ridículas. A falta de liberdade dificultou a educação cívica, o hábito de fazer escolhas sobre a vida pública. A falta de liberdade para divulgar, investigar, publicar, permitiu a escalada oculta da corrupção e da violência totalmente livres de qualquer controle social. A ditadura reforçou, ensinou e praticou a tortura sistemática, de forma a não se imaginar hoje policia sem tortura e humilhação.
Também vi, ao longo dos anos de chumbo, civis e militares que haviam apoiado o golpe se arrependerem. Conheci pessoas conservadoras para quem a agitação política era desordem e as dificuldades econômicas, fruto exclusivo do populismo do governo Jango. Mais tarde alguns, ao viverem a censura, os níveis do arrocho salarial e a mentira que engoliu suas economias, sentiram-se traídos. Não tinham como protestar ou pedir mudanças, seus direitos civis estavam cassados. Vi, várias vezes, a tragédia se abater sobre famílias: muitos dos que apoiaram o golpe tiveram filhos presos, desaparecidos, torturados ou mortos. Hoje eu percebo que, ao pedirem o golpe na constituição abrindo mão de seus direitos essenciais, assinaram a autorização para o sequestro, tortura e morte de seus filhos.
Por isso gosto cada vez mais da democracia. Por mais exasperante e frustrante que seja um governo democrático, ele jamais sairá tanto dos trilhos quanto se for uma ditadura. O governo democraticamente eleito que eu não suporto será sempre muito melhor do que o do ditador que eu puser no seu lugar. É essa a experiência de milhões de brasileiros, alienados ou militantes, civis ou militares. E, como democrata convicta, confio que as próximas eleições presidenciais decorrerão com debates e muita gente pela rua.
Espero que a busca coletiva por uma sociedade melhor, mais igualitária e mais justa, vença o ódio que ainda infesta uma parte de nossa sociedade. Psicopatas saudosos da opressão e ordeiros inocentes úteis, que até hoje acham que passeata é baderna, tentarão enxovalhar as eleições próximas com mensagens de ódio e incitação ao crime, como vi nas eleições anteriores. Mas espero que superaremos um dia nosso ranço escravagista , que não reconhece a igualdade de direitos como virtude da sociedade e fruto esperado da democracia. E agora, nessas eleições, espero que os brasileiros saibam manifestar seu repudio `as conclamações odientas, e reagir com atitude e votos democráticos, livres e felizes.
Cinquenta anos depois, mereço uma grande dose de democracia como presente de aniversário.
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50 anos do golpe de 1964. Um depoimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU