27 Março 2014
A eleição de um ex-guerrilheiro marxista como próximo presidente de El Salvador não deverá significar o fim da controversa lei de anistia do país, que protegeu criminosos de guerra da acusação pelos assassinatos de milhares de salvadorenhos, incluindo o do arcebispo Oscar Romero há 34 anos.
A reportagem é de Linda Cooper e James Hodge, publicada no sítio National Catholic Reporter, 24-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O presidente eleito de El Salvador, Sánchez Cerén (foto), um comandante superior da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) antes de ela se tornar um partido político, foi se afastando da sua promessa de 2013 de obter a revogação da lei de anistia de 1993 como uma forma de fazer justiça e fechar as feridas do conflito armado de 12 anos que deixou mais de 75 mil mortos.
Mas sua fina margem de vitória – meros 6.300 votos – e o fato de o seu partido não controlar a Assembleia Legislativa dificultariam que ele revogasse uma lei que divide o país tão profundamente. Ao menos não sem a pressão internacional e as decisões da Suprema Corte salvadorenha.
Sánchez Cerén, vice-presidente em exercício, foi declarado o vencedor do segundo turno pela Autoridade Superior Eleitoral no dia 16 de março, derrotando Norman Quijano, um candidato de direita firmemente contrário à revogação da lei.
Quijano era o candidato da Aliança Republicana Nacionalista (Arena), fundada pelo falecido major Roberto D'Aubuisson, um graduado da Escola das Américas (SOA) do Exército dos EUA – agora conhecida como Instituto do Hemisfério Ocidental para Cooperação de Segurança – e um líder do esquadrão da morte conhecido como "Maçarico Bob", por usar maçaricos durante os interrogatórios. A Comissão da ONU sobre a Verdade de El Salvador concluiu ele deu as ordens para assassinar Romero.
O partido Arena estava no poder quando os militares salvadorenhos assassinaram seis padres jesuítas, sua empregada e sua filha em 1989, e a Comissão da Verdade das Nações Unidas anunciou em 1993 que 85% das mortes no tempo da guerra foram cometidas por militares salvadorenhos e seus esquadrões da morte, e apenas 5% pela FMLN.
A Comissão da Verdade recebeu a tarefa de "pôr fim a qualquer indício de impunidade por parte dos oficiais das Forças Armadas", mas, cinco dias depois que o relatório da comissão foi divulgado em 1993, o partido Arena pressionou a Assembleia Legislativa para que aprovasse a lei de anistia concedendo um cobertor de impunidade.
Quijano disse que revogar a lei de anistia "seria prejudicial para a reconciliação (…). Por que temos que abrir as feridas 20 anos depois?".
Mas parece que as feridas do tempo da guerra nunca foram fechadas, a julgar por uma pesquisa do Instituto de Opinião Pública da Universidade Centro-Americana, que mostrou que mais de 60% dos salvadorenhos querem que a lei seja revogada.
E as memórias da violência promovida pelo Estado no passado só cresceram quando Quijano pediu que os militares impedissem que Sánchez Cerén tomasse posse.
No entanto, o ministro da Defesa de El Salvador, general David Munguia, rapidamente acalmou os temores ao dizer que os militares não iriam intervir e cumpririam a decisão da Autoridade Superior Eleitoral.
Enquanto isso, as acusações de Quijano de fraude eleitoral foram refutadas por observadores internacionais das Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos e do Departamento de Estado dos EUA, todos os quais afirmaram que a eleição foi justa e livre.
A ordem bastante tênue de Sánchez Cerén irá tornar mais difícil para ele governar o país, que tem uma das mais altas taxas de homicídio do mundo e está repleto de gangues e de violências relacionadas às drogas.
O presidente eleito, ex-professor de escola pública e ministro da Educação de 69 anos, tem defendido políticas de combate às drogas e ao crime que enfatizam a reabilitação e a educação, rejeitando a política militarizada do "punho de ferro" promovida por Quijano.
Ele também pediu igualdade econômica, inclusão e expansão da assistência social e dos programas de saúde para combater a pobreza e o analfabetismo, e superar as desigualdades sociais e econômicas que alimentaram a guerra civil.
Ao recuar em sua promessa de buscar a revogação da lei de anistia, Sánchez Cerén disse que a questão realmente era uma questão para a suprema corte do país.
Em setembro, a Câmara Constitucional da Suprema Corte salvadorenha aceitou uma ação contestando a lei de anistia movida pelo Instituto de Direitos Humanos da universidade jesuíta Centro-Americana e outros grupos. A ação argumenta, em parte, que a lei viola a obrigação do país de cumprir os tratados internacionais sobre os direitos humanos.
A corte esperou até depois das eleições para tomar uma decisão sobre o caso. Enquanto isso, começou uma investigação sobre o massacre de El Mozote, em que mais de 900 homens, mulheres e crianças foram mortos pelas tropas salvadorenhas armadas, treinadas e orientadas pelo Exército dos EUA.
O Tribunal Inter-Americano dos Direitos Humanos ordenou El Salvador a julgar os responsáveis pelo massacre, apesar da lei de anistia. O tribunal, que também ordenou que as reparações sejam feitas, disse que tais atrocidades não estão sujeitas a uma anistia, que elas são crimes contra a humanidade internacionalmente reconhecidos.
Para complicar a situação, o arcebispo de San Salvador, Dom José Luis Escobar Alas, desencadeou a indignação internacional em setembro quando fechou as portas do amplamente respeitado escritório de direitos humanos Tutela Legal, apenas um mês depois que a Suprema Corte aceitou a ação contestando a lei de anistia. O escritório tem provas sobre milhares de assassinatos e atrocidades que poderiam ser usados para processar criminosos de guerra.
Seis semanas depois, três homens armados invadiram o escritório da Pro-Búsqueda, uma organização que procura crianças desaparecidas, muitas das quais foram levadas pelos militares, de acordo com o Comitê de Solidariedade com o Povo de El Salvador. Os homens armados queimaram documentos e destruíram computadores.
Os arquivos do Tutela Legal, no entanto, têm desempenhado um papel fundamental em vários processos judiciais nos Estados Unidos e na Espanha envolvendo oficiais militares salvadorenhos.
Um caso norte-americano envolve Inocente Orlando Montano, um ex-comandante militar salvadorenho que a Comissão da Verdade da ONU diz que esteve envolvido nos assassinatos dos jesuítas. Montano, outro pós-graduado da Escola das Américas - SOA, foi condenado em setembro a 21 meses de prisão por ter mentido sobre o seu passado militar em papéis de imigração dos EUA que lhe permitiram viver em Boston pelos últimos 12 anos.
A Espanha está buscando a extradição de Montano para responder as acusações pelo seu papel nos assassinatos dos jesuítas, juntamente com outras 19 pessoas acusadas no caso. Dos 20 homens, 10 são graduados da Escola das Américas do Exército dos EUA, incluindo o ex-ministro da Defesa, general Rafael Humberto Larios, o seu vice-ministro, general Juan Orlando Zepeda, o comandante da Força Aérea, general Juan Rafael Bustillo, e o general René Emilio Ponce, chefe da Junta de Chefes de Estado.
O tribunal espanhol não pode julgar o caso até que um dos oficiais aparece diante dele. O Departamento de Justiça dos EUA ainda tem que decidir se quer enviar Montano para a Espanha ou deportá-lo de volta para El Salvador, quando ele sair da prisão. A decisão é arriscada para os oficiais norte-americanos, já que os EUA não apenas armaram e treinaram os militares salvadorenhos, mas também enviaram ao governo 4 bilhões de dólares em um esforço para derrotar a FMLN.
O mais condenatório são as especificidades do envolvimento dos EUA no caso dos jesuítas. Por um lado, o Exército dos EUA tinha escondido o fato de que o major Eric Buckland, um conselheiro sênior dos EUA em El Salvador, havia dito aos seus superiores que Ponce estava envolvido no complô para matar os jesuítas. Na época, Ponce estava sendo preparado pelos EUA para se tornar o próximo ministro da Defesa salvadorenho.
A Comissão da Verdade da ONU, mais tarde, condenou Ponce por ordenar o assassinato do reitor da universidade jesuíta, Pe. Ignacio Ellacuría, e todas as testemunhas. Ele citou 26 militares salvadorenhos, 22 dos quais eram graduados da SOA.
O Departamento de Estado disse que vai trabalhar com Sánchez Cerén, mas os salvadorenhos podem ser perdoados por estarem céticos, dada a histórica interferência dos EUA no seu país e ao fato de que o governo Obama violou a lei federal ao continuar treinando soldados de Honduras na SOA, depois que os militares hondurenhos derrubaram o presidente democraticamente eleito do país, Manuel Zelaya, em 2009.
Sánchez Cerén se comprometeu a trabalhar com os EUA e, ao pisar sobre ovos em torno da lei de anistia, ele está seguindo os passos do presidente cessante Mauricio Funes, que pediu desculpas em nome do Estado pelo assassinato de Romero, por El Mozote e pelas mortes de milhares de vítimas inocentes, mas nunca assumiu a questão da anistia.
A sua hesitação não se coaduna com muitos defensores dos direitos humanos.
Benjamin Cuéllar, diretor do Instituto de Direitos Humanos da Universidade Centro-Americana, dos jesuítas, disse que as desculpas não são suficientes. Ele disse à Latinamerica Press: "A pior morte que ocorreu com esse governo é a da esperança das pessoas. Não há um compromisso com as vítimas nem com a verdade".
A Anistia Internacional pediu a revogação da lei de anistia, dizendo que ela obstrui a justiça e não responsabiliza ninguém por atrocidades bem documentadas.
Em 2010, na primeira vez em que o Estado salvadorenho celebrou Romero publicamente, o historiador Pe. Jesus Delgado, autor de uma biografia do arcebispo, fez uma séria observação ao jornal Los Angeles Times: "Eu acho que nenhum partido no poder vai ter a vontade política de investigar. Você precisa de três gerações para que as emoções se acalmem. Este continua sendo um país armado, altamente polarizado, um país sem uma cultura de diálogo".
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El Salvador se esforça para chegar a um acordo com seu passado violento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU