19 Março 2014
"O resultado da ausência de uma política forte baseada na justiça de transição e no dever de memória fez com que o Brasil fosse obrigado a ver, no limiar dos 50 anos do golpe militar, análises que procuram nos levar a crer que a ditadura não foi tão ditadura assim, que no fundo ela começou mesmo em 1969, com o Ato Institucional nº 5, e que não faz muito sentido processar torturadores, exigir mea culpa das Forças Armadas e das empresas que financiaram o regime. Não faz muito sentido exigir o reconhecimento da culpa e o pedido de perdão" escreve Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo), em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, 18-03-2014.
Eis o artigo.
"Há quase 50 anos, o Brasil assistiu a um golpe militar que impôs a pior ditadura de sua história, responsável por crimes contra a humanidade, terrorismo de Estado, censura e arbítrio."
Essa frase deveria ser atualmente a descrição de fatos históricos, aceitos como evidências. Fatos que, por si só, teriam a força de provocar a indignação coletiva e o rechaço dos restos dessa época que ainda permanecem entre nós.
No entanto, para setores expressivos, tanto da população quanto daquilo que um dia foi chamado de "formadores de opinião", a frase "não é bem assim". Ela deve ser nuançada e colocada melhor em seu contexto.
O resultado da ausência de uma política forte baseada na justiça de transição e no dever de memória fez com que o Brasil fosse obrigado a ver, no limiar dos 50 anos do golpe militar, análises que procuram nos levar a crer que a ditadura não foi tão ditadura assim, que no fundo ela começou mesmo em 1969, com o Ato Institucional nº 5, e que não faz muito sentido processar torturadores, exigir mea culpa das Forças Armadas e das empresas que financiaram o regime. Não faz muito sentido exigir o reconhecimento da culpa e o pedido de perdão.
Tais análises são dignas do puro e simples negacionismo. Pois será sempre negacionista toda historiografia que visa minimizar crimes contra a humanidade, servindo-se de leituras tortas para dirimir o ímpeto social por punição e justiça contra os que se serviram do Estado para impor um regime assentado na violência bruta e na eliminação de setores descontentes da população.
Sim, agora temos uma literatura negacionista "made in Brazil". Ela se traveste de argumentos do tipo "os dois lados tiveram excessos" para fazer o pior de todos os exercícios: a relativização do governo ilegal e criminoso que tomou de assalto o Brasil por duas décadas.
Assim, já faz algum tempo que os interessados na história brasileira alertam para a repetição a qual as sociedades estão submetidas quando são incapazes de elaborar seu passado. Essa lei é tão forte quanto a lei da gravidade.
Não é de se estranhar que, dos esgotos do conservado-rismo nacional, apareça novamente esse cortejo de fetichistas de quarteis, apolíticos amantes de políticos de di- reita, defensores da famí- lia brasileira com sua produção em série de neuróticos e membros do Grupo Armado do Menino Jesus.
Sim, para aqueles que diziam que a reconciliação já tinha sido alcançada milagrosamente no Brasil, a história apresenta a mais nova edição da "Marcha da Família com Deus pela Liberdade".
Um agradecimento especial aos negacionistas por esse desrecalque.
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