12 Março 2014
A verdadeira revolução que Kasper deixa entrever no seu discurso não é a práxis sacramental para os divorciados em segunda união, mas sim a configuração da Igreja como "Igreja doméstica".
A opinião é do jornalista italiano Marco Burini, em artigo publicado no jornal Il Foglio, 04-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Por ser padre, mesmo que idoso, Walter Kasper é alguém que intuiu para onde o mundo vai e como deve ser abordado: sem encastelamentos, nem piscadelas, com uma força lúcida e tranquila. Deve ser a teologia feita de joelhos que lhe permite um olhar tão cheio de frescor e franqueza sobre as coisas dos humanos, aquelas que, no fim, realmente importam: os afetos, os laços, os desejos.
A família e tudo o que gira em torno dela em termos de amores, traições, filhos, sexo, dinheiro e poder são, com efeito, o jogo decisivo que está sendo jogado sobre a nossa pele. Por isso, vale a pena para os crentes mobilizar as melhores inteligências e concentrar as forças para reagir a um sistema tendencialmente desumano.
Kasper fala de "alienação", e não exagera. Há algum tempo, entramos em uma terra estrangeira, onde os velhos instrumentos de medição não funcionam mais. É melhor confiar no faro do crente, o sensus fidei, nutrido de Escritura e tradição – mas tradição no sentido vivo de passagem do bastão de geração em geração.
O código e o manual, o direito (canônico e natural) e a casuística não são suficientes, porque estão ligados demais a uma ordem de ideias que foi varrido. A família é uma instituição primordial, "mais antiga do que o Estado", lembra Kasper, mas pode sobreviver ao declínio das instituições? E se o Estado não consegue mais sustentar a família, conseguirá a Igreja, que não está se saindo muito melhor como instituição?
A resposta não é óbvia. E não é uma questão de mera sobrevivência, ou seja, de repropor o velho esquema de família – patriarcal ou nuclear a partir desse ponto de vista muda pouco – e nem mesmo se contentar com uma "adaptação liberal ao status quo", mas, muito mais corajosamente, tomar "uma posição radical que vá às raízes, isto é, o Evangelho" e a partir daí olhar para a frente. No fundo, na história da Igreja, a reforma sempre foi um retorno criativo às origens.
Por isso, o discurso de Kasper tem um corte bíblico e patrístico, com um senso da história realmente surpreendente em um teólogo sistemático. Aqui realmente há pouca teoria ou, melhor, nenhuma. Não é a hora de dar uma polida na doutrina, mas sim de se deixar interrogar, como crentes, por aquilo que está acontecendo não com os outros, mas acima de tudo com nós mesmos.
É hora de uma "cultura do coração" que remova as pessoas dos baixios do sentimentalismo e do romantismo em que uma civilização inteira encalhou (coração em sentido bíblico, obviamente, como sinônimo de liberdade).
A lição de Kasper é sutil e realista demais para agradar aos simplificadores de profissão, é cheia de nuances que devem ser apreciadas sem reduzir tudo à pergunta de sempre: "Tudo bem, mas, no fim, vão dar ou não a comunhão aos divorciados em segunda união?".
Kasper não evita o problema, ao contrário, sugere uma solução que, além disso, é da Igreja do Oriente, o caminho penitencial para uma gradual e plena readmissão ao sacramento, mas só se se seguir todo o seu raciocínio se entende realmente o que está em jogo. A Igreja, nesse ponto, coloca em jogo muito mais do que a face; coloca em jogo a pele: cada vez mais as famílias se desagregam e cada vez mais a Igreja vai a pique não porque se subverte uma ordem natural fixada de uma vez por todas, no hiperurânio dos doutos, mas porque a própria Igreja é uma família.
De fato, a verdadeira revolução que Kasper deixa entrever no seu discurso não é a práxis sacramental para os divorciados em segunda união, mas sim a configuração da Igreja como "Igreja doméstica".
Uma volta para casa, em todos os sentidos. E aqui há realmente algo novo, uma instituição que tenta se tornar novamente leve, à medida dos homens e das mulheres do tempo presente. Igrejas domésticas, periféricas, que "tornam a Igreja local presente na vida das pessoas", que se reúnem para rezar e comer e falar e curar as feridas.
A ouverture de Kasper parece não ter reunido muitos consensos no consistório. Müller e Schönborn usaram outros tons, dando a entender que a solução penitencial indicada por Kasper é arriscada, depende demais da maturidade do pastor individual que deveria instruí-la, e a qualidade dos padres é aquela que é, e portanto seria melhor uma solução jurídica.
Evidentemente, entre os pastores, muitos preferem um controle de cima, garantido por um direito canônico que, no entanto, já tem pouca força sobre a vida dos fiéis, incluindo os padres. Contudo, a operação Bergoglio-Kasper é clara: acelerar os tempos e concentrar os esforços para abrir caminho para a ação de reforma.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
''Igreja doméstica'': o necessário destino eclesial. Artigo de Marco Burini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU