18 Fevereiro 2014
Serve de medida para se mostrar o quão as coisas ficaram ruins para os membros da Legião de Cristo, ordem marcada por escândalos sexuais, o fato de que a primeira pergunta que um jornalista se sente na obrigação de fazer ao novos líderes é esta: “Você já abusou sexualmente alguém?”
A título de registro, o Pe. Eduardo Robles Gil Orvañanos respondeu a esta pergunta assim: “Eu posso prometer, eu juro, que nunca fiz isso (...). Não faria sentido algum colocar alguém que tenha algo a esconder em uma posição de liderança”.
O religioso concedeu entrevista ao The Boston Globe no dia 14 de fevereiro, a sua primeira para um país de língua inglesa.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada pelo jornal The Boston Globe, 15-02-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Até pouco tempo os legionários eram uma potência católica, um organismo de sacerdotes que desfrutavam do apoio do Papa João Paulo II e de outros pesos pesados do Vaticano, empunhando uma vasta gama de poder político e financeiro. A ordem caiu em desgraça após as revelações de que seu fundador vivera uma vida dupla chocante, inclusive tendo relações com duas mulheres e sendo pais de até seis filhos, bem como por ter praticado abusos sexuais em seminaristas jovens e, supostamente, em dois de seus filhos.
O fundador, o padre mexicano Marcial Maciel Degollado, morreu em 2008. Estes fatos a respeito de sua conduta, juntamente com os escândalos envolvendo outros legionários de destaque, fazem a ordem ser o símbolo do crise de abuso sexual no catolicismo em geral. Um relatório recente da agência noticiosa Associated Press descreveu os membros da Legião de Cristo como “um dos exemplos mais flagrantes de como (...) os líderes da Igreja colocam os interesses da instituição acima dos interesses das vítimas”.
Alguns críticos, incluindo ex-membros da ordem religiosa, disseram que ela deveria ser abolida. Em vez disso, Bento XVI colocou-a sob intervenção papal em 2010, instalando um delegado papal para promover uma reforma. O processo foi com a eleição, em 20 de janeiro deste ano, de Eduardo Robles Gil Orvañanos, sacerdote de 61 anos de idade e uma das velhas autoridades da Legião de Cristo no México.
Tendo presente este histórico, fica obviamente relevante perguntar se o sucessor do Pe. Maciel tem algo escondido e que não queira falar.
Na entrevista a nós concedida, ele insistiu não haver nada de errado em seu passado. Também afirmou não estar envolvido com o acobertamento dado ao fundador, dizendo ter passado os seus anos de trabalho no campo, em sua maior parte na América Latina, e que somente veio a saber da verdade em 2008, quando um de seus superiores lhe contou.
Eduardo Robles assegurou que, agora, os legionários estão comprometidos com a tolerância zero quanto a abusos sexuais, o que inclui um comprometimento rigoroso com a transparência.
“Estamos totalmente empenhados em criar um ambiente seguro em todas as nossas escolas e em tudo o que fazemos”, contou-nos na entrevista.
Não importa o que se faça com as garantias dadas por Eduardo Robles, uma coisa está clara: os legionários constituem um problema para o Papa Francisco.
Até este momento, poder-se-ia criticar o Papa João Paulo II por não levar a sério as acusações feitas contra o Pe. Maciel, ou mesmo culpar Bento XVI por nomear um delegado, o cardeal italiano Velasio De Paolis, que tem, aos olhos dos críticos, feito reformas mais cosméticas do que substantivas. Tanto num caso como no outro, nada pode ser atribuído ao Papa Francisco.
Mas a partir de agora o papa deixou suas impressões digitais no futuro da ordem religiosa.
No mês de maio, o pontífice escreveu uma carta em que oferecia “uma palavra de encorajamento”; em agosto nomeou um membro destacado dos legionários para ocupar o cargo número dois da cidade do Vaticano. Ao ratificar os resultados das recentes eleições da Legião de Cristo, ele está sinalizando que a ordem está pronta para voltar aos trabalhos; então, daqui em diante é a sua reputação que está em jogo.
Eduardo Robles disse que o pontífice lhe passou uma mensagem “muito acolhedora” sobre sua eleição, e que os legionários e sentem “completamente apoiados” pelo papa.
Se os membros da Legião de Cristo forem vistos como tendo genuinamente virado uma nova página, sendo mais flexíveis em seus controles internos, colaborando mais efetivamente com o restante da Igreja e dizendo a verdade seja sobre o passado da ordem seja sobre o presente, o Papa Francisco terá os merecidos créditos por ter engendrado uma mudança real.
No entanto, se o resultado for uma continuidade da ordem, mergulhada nas antigas formas, ou se eles não absorverem as lições do desastre de seu fundador, então o papa não terá mais onde pôr a culpa.
Em sua entrevista ao jornal The Boston Globe, o cardeal Sean O’Malley, que goza de uma reputação como ex-reformador no fronte dos abusos sexuais, insistiu que Francisco está “certamente ciente da seriedade deste assunto”.
Tensão criativa entre Francisco e seu czar doutrinal
Dom Gerhard Müller, o czar doutrinal do Vaticano que irá se tornar cardeal no próximo dia 22, esteve em Milão para dar uma palestra na abertura do ano acadêmico na Faculdade de Teologia da Itália Setentrional. Se fechássemos os olhos e voltássemos no tempo, poderíamos pensar estar ouvindo um outro prefeito doutrinal alemão, o cardeal Joseph Ratzinger antes de se tornar Papa Bento XVI.
Dom Müller tocou em muitos dos assuntos favoritos de Ratzinger, em particular o perigo de a teologia católica ser distorcida pela “pressão midiática” e por “mentalidades incompatíveis com o conteúdo autêntico da fé”.
Retomando o “sensus fidelium”, frase latina referente à ideia de que a doutrina deve refletir as crenças das bases da Igreja, Müller disse que isso não significa determinar a verdade via pesquisas de opinião ou plebiscitos. Insistiu que a fórmula correta é o “sensus fidelium in Ecclesia”, ou seja, que a crença popular deve estar enraizada nas fontes “insuperáveis e indispensáveis” da fé na Escritura, na tradição e na autoridade doutrinal oficial da Igreja.
Müller pediu “rigor crítico” na teologia católica, em oposição ao “descuido” que emerge ao se considerar os estímulos vindos da mídia ou da pressão da opinião pública sobre questões tais como “mulheres no sacerdócio (...) e o acesso aos sacramentos para aqueles que não estão em comunhão plena com a Igreja”.
Esta última questão foi uma maneira de confirmar a oposição de Dom Müller relativa a permitir católicos divorciados e recasados de receber os sacramentos, uma posição já expressa por ele em outubro passado.
Müller também pareceu questionar o valor de uma pesquisa recente dos católicos ao redor do mundo em preparação ao Sínodo dos Bispos sobre a família, a ocorrer este ano. Os resultados divulgados por algumas conferências episcopais mostraram números substanciais de católicos que rompem com a doutrinal oficial em assuntos como o uso de métodos contraceptivos e coabitação antes do casamento.
“Não há pessoa alguma que não possa ver o erro e a miopia em usar email para sondar as opiniões das pessoas na internet de modo indiscriminado”, disse.
Em suma, Müller usou sua fala, feita na presença do cardeal Angelo Scola, de Milão, outro peso pesado no mundo católico, para traçar alguns limites em certos assuntos.
Pode parecer confuso a razão pela qual um papa como Francisco, que parece encarnar uma posição doutrinal bastante moderada, ter confirmado Müller como o teólogo-chefe do Vaticano no último mês de setembro. Não haverá contradição entre a propensão para a abertura de portas por parte do pontífice e a aparente determinação de Müller para fechá-las?
A mesma pergunta costumava surgir sob o Papa João Paulo II, em particular durante a década de 1990 quando ele teve um forte progressista organizando suas liturgias e um arquiconservador liderando o departamento vaticano que define as regras para o culto católico. Aqui também muitos analistas viram tal justaposição como uma mera incoerência.
No entanto, há uma outra forma de se olhar para estas coisas, inspirado por um adágio do Papa João XXIII, que certa vez disse: “Tenho que ser papa tanto para aqueles que têm um pé no acelerador quanto para aqueles que têm um pé no freio”.
Em sua época, João Paulo II quis preparar suas próprias celebrações litúrgicas, especialmente quando viajava tentando misturar elementos de adoração local, qualquer que fosse o país que visitava. Exatamente por esta razão é que ele queria um linha-dura em Roma para se certificar de que a Igreja não estava jogando o bebê fora junto da água litúrgica do banho.
Em outras palavras, não havia uma incoerência. Ao menos no pensamento de João Paulo II, tratava-se de uma tensão criativa.
Algo semelhante pode estar acontecendo hoje com o Papa Francisco e com seu chefe doutrinal.
Este papa sabe que o seu estilo espontâneo irá, em algum momento, balançar as coisas e que esta ênfase na misericórdia levantará questões difíceis sobre se os julgamentos católicos tradicionais são válidos. Ele não irá se conter neste momento. Todavia, poderá estar querendo alguém para lhe mostrar a outra direção, na esperança de algo como o “feito de Heráclito”: estabilidade através do equilíbrio de forças opostas.
Se de fato for esta a lógica, até agora Dom Müller parece estar desempenhando muito bem o seu papel.
Nostalgia pelo Papa Bento XVI
Se fosse necessária uma prova de que alguns católicos conservadores estavam se sentindo um pouco nostálgicos pelo Papa Bento XVI, esta prova veio no último dia 11, quando se completou um ano desde o anúncio de que o líder iria renunciar. Dois textos marcantes vindos de escritores italianos renomados mostram isso. Cada um deles tem um importante seguimento nos círculos católicos.
Num artigo publicado no jornal italiano Libero (em 12-02-2014), Antonio Socci lançou a pergunta sobre se a renúncia do Papa Bento foi mesmo válida sob a lei canônica, dando a entender que, de qualquer forma, sob os olhos de Deus, Bento ainda pode ser o papa. Ao mesmo tempo, Robert de Mattei publicou um texto no website de sua fundação (Lepanto), onde afirma que os desdobramentos desde a eleição do Papa Francisco – incluindo o seu famoso dizer sobre os gays: “Quem sou eu para julgar?” – correm o risco de cair numa “estrada que leva ao cisma e à heresia”.
De Mattei também apontou para os Franciscanos da Imaculada – ordem religiosa tradicional devotada à antiga Missa Latina cujo líder foi deposto em dezembro pelo papa – como um caso em que a ênfase papal sobre a misericórdia é basicamente uma farsa.
Que fique claro: nem Socci tampouco Mattei são malucos. Pelo contrário, são vozes experientes nos assuntos católicos e que representam importantes círculos eleitorais dentro de da Igreja.
Socci associa-se com o poderoso movimento leigo Comunhão e Libertação, provavelmente o grupo mais importante entre os católicos conservadores na Itália. Trabalhou para a rede de televisão estatal RAI e é autor de best-sellers sobre assuntos tais como João Paulo II, o capuchinho estigmatizado Padre Pio e as conhecidas revelações da Virgem Maria em Fátima. De Mattei é uma figura de destaque nos círculos neoconservadores da Europa e um ex-assessor para o governo italiano na época do então primeiro ministro Silvio Berlusconi.
Socci e de Mattei podem ser considerados um tanto quanto conservadores, mas certamente não são lunáticos. O fato de que os dois estejam expressando dúvidas sobre o novo papa indica que, apesar dos níveis de aprovação astronômicos do líder religioso, ele poderá enfrentar trabalho para trazer junto de si os retardatários de seu próprio rebanho.
O artigo de Socci é particularmente interessante por sua tentativa de ressuscitar Bento XVI como um ponto de encontro para os descontentes.
As leis canônicas exigem que para a renúncia de um papa ser válida, ela deve ser “feita livremente”. Socci especula, ao afirmar que o os mandatários vaticanos possam ter forçado o papa a renunciar na esteira do escândalo espetacular de vazamento, em 2012, ou seja, que este acontecimento possa não ter sido um ato verdadeiramente livre. Socci igualmente se pergunta sobre se Bento poderia ter renunciado apenas num sentido “exterior”, ou seja, em seu coração ele ainda se reconheceria como o pontífice.
Com certeza, Bento XVI não fez coisa alguma para atiçar tais reações. Pelo contrário, tem-se mantido fora dos holofotes enquanto sinaliza, em privado, a sua afeição e apoio pelo Papa Francisco.
Todavia, o ensaio de Socci aponta para uma trajetória plausível se acaso a reação da direita para com Francisco continuar a aumentar. A Igreja poderá acabar com uma maioria de “católicos do Papa Francisco” e uma minoria influente de “católicos do Papa Bento”. Isso pode não exatamente acrescentar elementos para um cisma, mas mesmo assim é algo sobre o qual se pode pensar.
O “problema italiano” na reforma financeira do Vaticano
Um estudo recente feito pela União Europeia descobriu que o preço da corrupção nos 28 países membros a cada ano é de 120 milhões de euros, dos quais 60 milhões vêm da Itália. Uma outra forma de colocar esta conclusão é dizer que a Itália, por si só, é responsável pela metade da corrupção em toda a União Europeia.
O estudo descobriu ainda que uma parcela equivalente a 97% dos italianos acredita que a corrupção é generalizada no país, enquanto que 88% também disse ter descoberto que, às vezes, pagar um suborno seja a forma mais fácil, senão a única, para se fazer uso dos serviços públicos.
O estudo observou que, dados os caprichos envolvendo as pesquisas sobre corrupção nos estados membros, tais estimativas de custos não são outra coisa senão um palpite. No entanto, não é difícil imaginar que a Itália tem um grande problema para resolver.
É importante que isso seja lembrado, já que o papa está se preparando para a terceira reunião com o seu “G8”, o conselho dos cardeais assessores. Nela a reforma financeira vaticana está no topo da agenda.
Na verdade, muitos dos desenvolvimentos relatados na imprensa internacional como histórias vaticanas são, quando detalhadas, histórias italianas: episódios em que funcionários do Vaticano estão simplesmente seguindo a mesma cartilha de seus homólogos no país. Isso é especialmente verdadeiro quando se trata de gestão financeira.
Eis um exemplo.
No ano de 2010, promotores italianos anunciaram que o cardeal italiano Crescenzio Sepe era alvo de uma investigação anticorrupção relacionada ao seu período de presidente da poderosa Congregação para a Evangelização dos Povos, entre os anos de 2001 e 2006. Os promotores suspeitam que Sepe fez acordos de camaradagens com políticos italianos envolvendo apartamentos pertencentes ao Vaticano ao mesmo tempo em que milhões de euros em fundos estatais estavam sendo alocados para remodelar projetos em sua congregação.
Mesmo que o cenário descrito pelos promotores esteja correto, Sepe pode não ter se visto como fazendo algo errado. Em vez disso, ele simplesmente estaria fazendo o que os italianos de sua geração pensavam pensar ser o certo, ou seja, cuidar de seus amigos.
Esta observação reforça o desafio profundo da glasnost financeira do Papa Francisco, que é mais cultural do que legal ou política.
A parte fácil será impedir o tipo de corrupção flagrante, mesmo para os padrões italianos, revelada na recente célebre causa envolvendo o monsenhor Nunzio Scarano, um analista do Vaticano acusado de participar em um complô ao estilo John le Carré para contrabandear milhões em espécie, da Suíça para a Itália, em nome de uma família de magnatas. O esquema supostamente envolveu um jato particular e um ex-agente da polícia federal investigativa italiana.
Scarano ganhava um modesto salário de aproximadamente 40 mil euros anuais, embora fosse alegadamente dono de uma rede de propriedades caríssimas em sua terra natal, Salerno, e tivesse uma coleção particular de arte com originais de Chagall e Van Gogh. Era conhecido em Roma como o “Monsenhor dos 500 euros”, devido a seu hábito de andar com altas somas de dinheiro. Nesse caso, Scarano devia saber que não estava lidando de forma correta com as regras.
O desafio mais profundo é mudar uma cultura na qual muitas formas de corrupção sequer são percebidas como tais. Facilitar contratos para com os amigos, apesar de um suposto processo competitivo de licitação, por exemplo, ou não fazer perguntas dura sobre de onde se tirou certa quantia de dinheiro, são comportamentos que muitos dos veteranos não iriam considerar como corrupção, mas como simplesmente formas consagradas pelo tempo de se manter as coisas “em família”.
Um teste para se saber se as medidas da reforma financeira adotadas pelo Papa Francisco são de verdade é, portanto, este: Irá ele promover uma internacionalização rápida do departamento pessoal financeiro do Vaticano, rompendo com a velha guarda?
No topo da cadeia alimentar, tal processo está em andamento. O presidente do Banco do Vaticano é um alemão; o chefe da agência antilavagem de dinheiro do Vaticano é um suíço, e assim por diante. A pergunta é se tais mudanças no topo irão produzir uma cultura mais internacional de transparência entre a gestão do meio e as abelhas operárias, ou se a realidade diária no Vaticano continuará a fazer paralelo com os padrões às vezes opacos do “il bel paese” [o belo país] da Itália.
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Legionários de Cristo. Um problema para o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU