18 Dezembro 2015
Falando de ambiente, um historiador (White) e um químico (Lovelock) referem-se a precedentes religiosos ou míticos. E o papa propõe um diagnóstico orientado sobre um eixo não só religioso, mas também ético-político, e atualizado sobre o relógio dos movimentos ecológicos e pelo direito à cidade.
A opinião é do arqueólogo e historiador da arte italiano Salvatore Settis, ex-diretor da Scuola Normale Superiore di Pisa, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 16-12-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A crise da água em Messina, na Itália, não é um incidente de percurso, mas o prenúncio do mundo que virá. Ou, melhor, que já veio: megalópoles como São Paulo, Lagos, Mumbai (mas também Los Angeles) experimentam secas frequentes.
A urbanização que concentra nas cidades 53% da população mundial (em 2030, serão 70%) não faz as contas com o ambiente, com o esgotamento dos recursos naturais, com fomes que pareciam esquecidas, mas que afetam um bilhão de pessoas amassados nas favelas.
Segundo o geógrafo M. Gandy, "não há nenhuma maneira para aplacar essa sede urbana e industrial: novas fontes de provisão simplesmente não existem". Mudanças climáticas, desastres hidrogeológicos, falta de manutenção dos solos, cimentificação de superfícies agrícolas agravam uma crise que nos esforçamos para não ver.
Em um livro recente, Water 4.0, David Sedlak (que leciona engenharia sanitária), prefigura um mundo em que crescem juntos o desperdício e a penúria, e a água é um produto caro demais para os pobres. A água é o teste decisivo da degradação ambiental, e o mundo distópico de Mad Max, de George Miller (2015), onde um tirano a distribui caprichosamente às plebes, corre o risco de ser o nosso. Messina mostra, no pequeno, aquilo que em São Paulo diz respeito a 21 milhões de habitantes.
Em 1979, Hans Jonas, no seu Princípio responsabilidade, proclamava "o imperativo ecológico": "O destino comum do homem e da natureza, redescoberta em perigo, faz-nos redescobrir a dignidade própria da natureza, impondo-nos que conservemos a sua integridade".
Mas, em nome de quê? Duas correntes de pensamento ecológico tentaram uma resposta. Em 1969, um químico, James Lovelock, lançou a "hipótese Gaia", segundo a qual a Terra é um sistema unitário que se autorregula visando a resultados ótimos. Se esta visão traz o nome da deusa grega da Terra, Gaia, é por sugestão de um vizinho de Lovelock, William Golding (o autor de O Senhor das Moscas), que também fez alusão a ele no seu discurso de aceitação do Nobel (1983).
Ainda mais influente é o historiador L. White, que imputava (1967) a crise da relação homem-natureza à convergência entre concepção cristã do homem e fé baconiana na tecnologia: daí a destruição dos recursos naturais e o "carcinoma da urbanização não planejada". Para White, a saída é "encontrar uma nova religião, ou repensar a nossa" de acordo com o ensinamento de São Francisco, "o maior radical da história cristã depois de Jesus", porque "substituiu a ideia da igualdade de todas as criaturas (incluindo o homem) à do domínio ilimitado do homem sobre a natureza".
São Francisco, portanto, foi o santo padroeiro dos ecologistas 50 anos antes da encíclica Laudato si' do Papa Francisco (24 de maio de 2015), onde o Cântico das Criaturas desencadeia a reflexão sobre o "crescimento desmedido e descontrolado de muitas cidades que se tornaram pouco saudáveis para viver, devido não só à poluição proveniente de emissões tóxicas, mas também ao caos urbano, aos problemas de transporte e à poluição visiva e acústica. […] Não é conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos de cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contato físico com a natureza. Em alguns lugares, rurais e urbanos, a privatização dos espaços tornou difícil o acesso dos cidadãos a áreas de especial beleza; em outros, criaram-se áreas residenciais 'ecológicas' postas à disposição só de poucos, procurando-se evitar que outros entrem a perturbar uma tranquilidade artificial. Muitas vezes encontra-se uma cidade bela e cheia de espaços verdes e bem cuidados em algumas áreas 'seguras', mas não em áreas menos visíveis, onde vivem os descartados da sociedade" (n. 44-45).
Falando de ambiente, um historiador (White) e um químico (Lovelock) referem-se a precedentes religiosos ou míticos; o papa propõe um diagnóstico orientado sobre um eixo não só religioso, mas também ético-político, e atualizado sobre o relógio dos movimentos ecológicos e pelo direito à cidade.
Por isso, a encíclica condena o crescimento das megalópoles, a privatização dos espaços, a formação de guetos urbanos para "os descartados da sociedade" e fala da responsabilidade como "cuidado da casa comum", missão confiada por Deus ao homem, mas também, de acordo com o direito, "moderador efetivo das regras para as condutas permitidas à luz do bem comum, funções inadiáveis de cada Estado: planejar, coordenar, vigiar e sancionar dentro do respectivo território" (EG 177).
Esse novo embaralhamento das cartas, em que a linguagem religiosa invade textos escritos por estudiosos leigos e em que o papa adota uma linguagem secularizada, nasce da dramática situação do mundo que nos rodeia, que impõe uma responsabilidade comum.
O nexo forte, que se repete na encíclica, entre devastações do ambiente, ameaças à saúde e crescimento da pobreza, direciona o diagnóstico para as práticas da democracia, incluindo aquela ação popular que vem do direito romano e que se destaca em algumas constituições recentes da América Latina (Brasil, Colômbia): "Dado que o direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma decisão política sob pressão da população. A sociedade, através de organizações não governamentais e associações intermediárias, deve forçar os governos a desenvolver normativas, procedimentos e controles mais rigorosos. Se os cidadãos não controlam o poder político, também não é possível combater os danos ambientais" (EG 179).
Essa advertência diz respeito a todos nós: no centro da encíclica, assim como das reflexões de filósofos e juristas, estão os direitos das futuras gerações, já que "o ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos" (EG 95).
Por isso, para além de toda diferença ideológica, "é urgente elaborar um pensamento comum prático, um mesmo conjunto de convicções voltadas à ação, desencadeada pelos princípios do bem comum e direcionada para a política" (J. Maritain).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O imperativo ecológico, de Gaia à Laudato si'. Artigo de Salvatore Settis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU