03 Dezembro 2015
O pai da teologia da libertação do Peru fala do Pe. Sandro Dordi e dos dois franciscanos poloneses que serão proclamados bem-aventurados no próximo sábado em Chimbote: "Mortos pelo Sendero Luminoso porque constituíam uma alternativa não violenta ao plano revolucionário. A denúncia da pobreza por amor 'complica' sempre a vida".
A reportagem é de Giorgio Licini, publicada no sítio Mondo e Missione, 02-12-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No Peru, já estamos às vésperas da beatificação dos mártires de Chimbote, três missionários – o sacerdote fidei donum de Bérgamo, na Itália, Pe. Sandro Dordi, e os dois franciscanos poloneses, Pe. Miguel Tomaszek e Pe. Zbigniew Strzalkowski – mortos em 1991 pela guerrilha maoísta do Sendero Luminoso.
Eles vão se tornar bem-aventurados no sábado, com um rito que será realizado justamente em Chimbote, no estádio da cidade. O que significa essa beatificação para o Peru? E – mais em geral – o que ela diz sobre o tema dos pobres e da sede de justiça, ferida ainda aberta nas periferias do mundo de hoje?
Perguntamos isso ao Pe. Gustavo Gutiérrez – o teólogo peruano considerado o pai da teologia da libertação – que, no mesmo país dos mártires de Chimbote, nasceu, desenvolveu o seu pensamento e ainda vive.
Eis a entrevista.
O que você pensa sobre a próxima beatificação dos três mártires de Chimbote?
São pessoas que eu encontrei e conheci apenas ocasionalmente. Mas eu diria que, para além da sua vida pessoal, podem ser feitas algumas considerações para toda a América Latina. Como é possível que em um continente de maioria cristã e católica tenha havido e ainda haja tantas pessoas que são mortas? É uma coisa que faz refletir. Esses religiosos são mártires porque foram mortos, como se diz, em odium fidei. Mas é preciso entender, mais precisamente, que isso aconteceu por causa da caridade, consequência da sua fé. Portanto, não foi uma questão de "doutrina" sobre a fé, mas de ação pela justiça. Eles também não desejavam ser mortos. O martírio traz o pecado à baila. Quando há uma pessoa morta, isso significa que há um assassino. E ninguém deseja que seja cometido um pecado desse tipo.
Quem são os pobres hoje? O que significa estar com os pobres?
Estar com os pobres significa ser cristão. A pobreza é a total falta de direitos de vários tipos: econômicos, culturais, raciais... A pobreza é a condenação desejada à marginalização e à irrelevância. É a substituição da justiça pela esmola. É o fatalismo de crer que a pobreza é inevitável e não um pecado do homem. A pobreza é complexa e tem muitas causas, mas não uma fatalidade. A denúncia da pobreza por amor "complica" a vida para outras pessoas. Daí o martírio. Ninguém está destinado a ser pobre. Não é a vontade de Deus.
O que você lembra do Bem-aventurado Dom Romero?
Eu o conheci em alguns encontros e depois fui ao funeral que foi uma autêntica tragédia, em um clima muito tenso, com mais de 40 mortos, boa parte deles pisoteados depois dos primeiros tiros. Falou-se de uma "conversão" de Romero aos pobres e à justiça durante o seu breve episcopado de apenas três anos em San Salvador. Na realidade, Romero era de formação, digamos assim, tradicional, mas não um "conservador". Ele só quis denunciar as causas da pobreza e os casos de homicídio. Ele quis estar ao lado dos pobres. Não é preciso ignorar ninguém, mas a nossa primeira preocupação são os pobres. A justiça não é marginal ou alternativa ao amor. É a primeira expressão do amor. Não podemos separar as duas coisas.
O que você pensa do terrorismo político como o que se abateu no passado sobre o seu país com o Sendero Luminoso e outros movimentos?
É absolutamente criminoso. Durante os conflitos internos da América Latina, a maioria das vítimas foram causadas pelas forças armadas governamentais ou relacionadas com os grupos de poder. Mas também grupos terroristas insurgentes fizeram muitos mortos, como os mártires de Chimbote. Pessoalmente, eu condeno essas ações do modo mais absoluto. Muitas vezes, os mártires dos terroristas caíram pelo fato de que, com a sua atenção e amor às pessoas, constituíam uma alternativa não violenta ao plano revolucionário. Eram como que "concorrentes" no território. Estavam fora da disputa política.
Que relação há entre pobreza e morte?
O conflito interno no Peru provocou cerca de 70 mil mortes. Dois terços delas entre os grupos indígenas mais desfavorecidos. Mais uma vez, morreram os mais pobres. A pobreza é a principal causa de morte no mundo. Basta pensar nos 800 milhões de famintos que ainda temos. Trata-se de uma forma de violência institucional. É justo falar de "escândalo" também como categoria teológica. A desigualdade social é uma grande ferida. Uma grande pedra de tropeço para o anúncio do Evangelho e a realização das promessas.
Mas a religiosidade na América Latina se torna cada vez mais espiritualista e talvez até fundamentalista...
É verdade. De fato, cresce também o pentecostalismo católico. Eu digo que tudo pode ajudar, com uma única condição: que não se crie uma separação com a realidade. A categoria da realidade é a que deve nos guiar. O Papa Bento XVI fez uma afirmação muito importante para a assembleia dos bispos latino-americanos em Aparecida, Brasil, em 2007: "A santidade não consiste em fugir do conflito". Vivemos em um tempo que definimos de "pós" em todos os sentidos: pós-industrial, pós-moderno, pós-ideológico... Mas ainda estamos longe de uma situação de pós-pobreza. Essa é a realidade!
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Os mártires de Chimbote e o escândalo dos pobres. Entrevista com Gustavo Gutiérrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU