02 Dezembro 2015
Na terça-feira, 24 de dezembro de 2013, às duas da madrugada, um policial vestido à paisana deparou com alguns vizinhos que interrompiam uma rua em Flores, o bairro de Buenos Aires em que nasceu o papa Francisco. O agente, fora de serviço e enlouquecido, sacou sua pistola de 9 milímetros e disparou, matando um dos integrantes do piquete, Ángel Duarte, de 40 anos.
A reportagem é de Manuel Ansede, publicada por El País, 01-12-2015.
A história desta morte tem a ver com o abuso de autoridade, mas também com o aquecimento global. Uma onda de calor açoitou o norte e o centro da Argentina entre o fim de 2013 e o início de 2014. Foi o dezembro mais quente desde que há registros, com as temperaturas mais de 2,5 graus acima da média de referência 1961-1990. O Serviço Meteorológico Nacional decretou alerta vermelho em Buenos Aires devido à onda de calor.
As altas temperaturas provocaram várias mortes. O aumento do consumo de energia elétrica para ligar o ar condicionado causou cortes de luz. E os contínuos apagões provocaram protestos comunitários, com barricadas de pneus ardendo nas ruas. Tudo isso graças ao aumento do CO2 na atmosfera do planeta, segundo os cientistas. O aquecimento global já não é um enigma, mas um fenômeno real de consequências explosivas.
“Desde que a primeira conferência internacional sobre mudança climática foi realizada em 1995, 606.000 pessoas perderam a vida e 4.100 milhões de pessoas se feriram, perderam seus lares ou precisaram de ajuda de emergência devido a algum desastre meteorológico”, segundo o último relatório do Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNISDR). O estudo, com números impactantes, foi apresentado uma semana antes do início do encontro do clima de Paris, do qual se espera um novo acordo internacional para reduzir as emissões de CO2.
Desde 1995, 606.000 perderam a vida em desastres meteorológicos, potencializados pelo aquecimento
“Em longo prazo, um acordo em Paris para reduzir emissões de gases de efeito estufa representará uma contribuição considerável para a redução de perdas e danos ocasionados pelos desastres, os quais em parte são reforçados pelo aquecimento do planeta e pela elevação do nível do mar”, afirmou a sueca Margareta Wahlström, diretora da UNISDR.
O relatório do órgão das Nações Unidas afirma que entre 2005 e 2014 registrou-se uma média de 335 desastres meteorológicos no mundo, quase o dobro dos registrados entre 1985 e 1995. Isso significa que a mudança climática duplicou em 20 anos as inundações, tempestades, ondas de calor e secas? Muito poucos na comunidade científica se atreveriam a responder que sim.
A bíblia neste campo é o Boletim da Sociedade Meteorológica dos EUA, que todo ano radiografa catástrofes naturais para verificar se não eram tão naturais quanto pareciam. O relatório deste ano, Explicando eventos extremos de 2014 de uma perspectiva climática, encontrou 14 desastres vinculados provavelmente ao aquecimento global, de um total de 28 analisados por cientistas de todo o mundo.
A onda de calor na Argentina “foi cinco vezes mais provável” pela mudança climática provocada pelo ser humano, segundo o relatório. O documento também alerta que o risco de temperaturas anuais recorde na Europa – como aconteceu em 2014 – “aumentou em grande medida devido à mudança climática”. Na Espanha, 2014 foi extremamente quente, com uma temperatura média de 15,96 graus, 1,33 grau acima dos índices normais, segundo a Agência Estatal de Meteorologia. Foi o segundo ano mais quente desde que há registros.
A onda de calor na Argentina “foi cinco vezes mais provável” devido à mudança climática, segundo um estudo
“A maior parte dos estudos que analisam ondas de calor conclui que nós, humanos, estamos tornando estes eventos mais prováveis e intensos”, explica Stephanie Herring, principal autora do relatório e pesquisadora da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA. “No entanto, em outros tipos de eventos, como as tempestades de inverno, não encontramos a marca humana com tanta frequência”, reconhece Herring.
Sua equipe acredita que os incomuns três furacões que atingiram o Havaí em 2014 foram “substancialmente mais prováveis devido à mudança climática”. Entre eles destacou o ciclone tropical Iselle, que varreu o arquipélago em agosto e destruiu 60% dos cultivos de papaia, arruinando os agricultores mais pobres, sem seguro contra desastres naturais.
Jacarta, a capital da Indonésia, com 10 milhões de habitantes, também sofreu os efeitos da mudança climática, segundo os cientistas. A cidade recebeu chuvas insólitas entre 10 e 20 de janeiro de 2014. Milhares de edifícios e boa parte da infraestrutura ficaram inundados, paralisando a cidade. Um total de 26 pessoas morreram e as perdas econômicas chegaram a 384 milhões de dólares, segundo as autoridades. “As inundações devastadoras em Jacarta são mais prováveis devido à mudança climática”, sentencia o relatório, que se apoia em registros históricos e modelos matemáticos super complexos.
Os cientistas também acreditam que o aquecimento global estava por trás do dilúvio que caiu no outono de 2014 nas montanhas francesas Cevenas, da seca na África oriental e das asfixiantes ondas de calor vividas na Austrália e Ásia. As regiões pobres registraram a maior parte das vítimas. “Os países em desenvolvimento são frequentemente mais vulneráveis aos eventos meteorológicos extremos, porque estão menos adaptados”, lamenta Peter Stott, coautor do relatório e climatologista do Met Office, o serviço meteorológico do Reino Unido.
Nem tudo é aquecimento global
O relatório Explicando eventos extremos é publicado desde 2011. Esta quarta edição inclui 32 pesquisas independentes de 28 desastres naturais, 14 deles vinculados à mudança climática pelos especialistas. Mas isso não quer dizer que 50% das catástrofes meteorológicas esteja relacionado ao aquecimento global. “Nosso trabalho não é uma amostra aleatória de eventos de todo o mundo. Há um viés de seleção, porque os autores escolhem os eventos que vão analisar e com frequência coincidem com o lugar em que se encontram”, reconhece Stephanie Herring, principal autora do relatório.
Sete das pesquisas, por exemplo, estudaram secas registradas no planeta, mas a maioria não encontrou ligação com a mudança climática. No Brasil, por exemplo, o consumo desenfreado, e não o aquecimento global, foi o culpado de que São Paulo tivesse de racionar água de maneira drástica e vivesse a pior crise hídrica do século. Cada paulistano gasta 175 litros de água por dia, frente aos 110 litros recomendados pela Organização Mundial de Saúde. O sistema de abastecimento de São Paulo, além disso, perde 29% da água potável.
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Os desastres naturais não são tão naturais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU