30 Novembro 2015
Historicamente, os cristãos sempre estiveram obcecados pelo debate sobre as fontes próprias da autoridade dos ensinamentos. Uma das questões presentes na Reforma Protestante, por exemplo, era saber se, para apresentar uma verdade vinculante sobre a vontade de Deus, bastava unicamente a Bíblia ou se era também necessária a autoridade da Igreja.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 28-11-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O líder atual dos católicos com certeza reconhece a importância tanto das Escrituras como da Tradição. No entanto, claro está que, no nível pessoal, ele prima por uma outra fonte de sabedoria com um fervor espiritual quase igual.
Numa palavra, Francisco inclui a importância dos pobres nesse debate.
No momento, Francisco está na África para uma visita de seis dias que o levará ao Quênia, a Uganda e à República Centro-Africana. Do ponto de vista noticioso, a escala neste último país é o principal a ser abordado, pois ela marca a primeira vez que um pontífice da era moderna põe os pés em uma região de guerra em curso.
Quanto ao que pensa e sente o pontífice também neste momento, no entanto, uma de suas últimas paradas no Quênia é, provavelmente, o ponto mais surpreendente desta jornada.
Na sexta-feira pela manhã, Francisco foi até uma favela em Nairóbi chamada Kangemi. Não contando com sistema de esgoto e com eletricidade limitada, esta localizada é o lar de aproximadamente 150 mil pessoas exprimidas em um pequeno vale com encostas íngremes que chegam até o Rio Nairóbi.
Encontrar-se com os pobres é uma característica das viagens papais, e os noticiários desta visita de sexta-feira se focaram na denúncia das condições de vida na favela, tais como a insistência dele de que o acesso à água potável é “um direito humano universal e básico”.
Francisco já fez declarações assim em outras ocasiões. Embora permanecem urgentemente relevantes, elas não acrescentam muito ao entendimento de quem é o pontífice e do lado de quem ele se encontra.
Olhando mais atentamente, no entanto, Francisco não poderia ir a Kangemi simplesmente para comiserar-se com os pobres da África. Ele foi aí para reconhecer o que chamou de “a sabedoria encontrada nos bairros populares”.
Ele elogiou estas pessoas por aqui que chamou de a “resistência obstinada” pelo inautêntico ou secundário, dizendo que elas se agarram aos “valores evangélicos que a sociedade opulenta, entorpecida pelo consumo desenfreado, parece ter esquecido”.
Francisco se queixou de que “o discurso da exclusão” geralmente “desconsidera ou parece ignorar” esta sabedoria, tratando os pobres como problemas, ou objetos de alívio, em vez de tê-los como fontes de conhecimento.
O papa citou um documento produzido por um grupo de sacerdotes na Argentina que trabalham naquilo que os argentinos chamam de “villas misérias”, ou seja, grandes favelas que circundam as principais cidades.
Segundo o documento, uma comunidade pobre pode “oferecer algo a estes tempos em que viemos. Isto se expressa em valores tais como a solidariedade, o doar-se aos outros, a preferência pelo nascimento em detrimento da morte, a partilha do pão com quem se encontra faminto (pois “sempre há lugar para mais um à mesa”), o mostrar paciência e força de vontade quando se se depara com uma grande adversidade e assim por diante”.
Ele ainda poderia ter ressaltado que os sacerdotes argentinos cultivaram estes insights na prática, pois ele os enviava às “villas misérias” enquanto foi arcebispo de Buenos Aires, dando, ele próprio, o exemplo ao passar uma parcela significativa de seu tempo nestas comunidades.
“O caminho de Jesus começou na periferia”, disse o papa na sexta-feira. “Ele vai dos pobres e com os pobres em direção aos pobres”,
Francisco reforçou esta mensagem no sábado em outro momento num encontro com pessoas empobrecidas na localidade de Nalukolongo, em Uganda, onde visitou um lar para mais de 100 deficientes físicos, idosos, destituídos e vulneráveis de todos os credos e etnias.
É surpreendente que a determinação do Papa Francisco em escutar os pobres geralmente o conduza a conclusões contraintuitivas.
Em uma de suas alocuções na sexta-feira, ele abordou a questão da distribuição injusta da terra, a falta de acesso à educação e à saúde e a ofensa moral formada pelas “periferias abandonadas, sujas e degradadas” – fatores decorrentes do descaso político.
Entretanto, o pontífice também rejeitou aquilo que chamou de as “novas formas de colonialismo”. Como exemplo, citou o fato de que “geralmente se pressionam os países a adotarem políticas típicas da cultura do descarte, como aquelas que visam a redução da natalidade” – objeção tipicamente encontrada na direita cultural e política.
A referência a novas formas de colonialismo é uma reformulação da frase que se tornou parte do estoque retórico do papa: “colonialismo ideológico”, que quer dizer a afirmação segundo a qual os governos dos países ocidentais e as ONGs estão tentando coagir os países pobres a adotarem políticas progressistas no tocante ao controle populacional e à moralidade sexual como condição para a cooperação ao desenvolvimento.
A combinação destas posturas desafia a lógica convencional da política ocidental, mas para Francisco elas não são o produto de uma plataforma política. Pelo contrário, derivam da experiência de escuta dos pobres.
Os críticos irão talvez dizer que há um perigo em ter o Papa Francisco romantizando a pobreza, e pode-se obviamente debater as conclusões específicas a que ele chega a partir de sua própria experiência junto aos empobrecidos.
O que não está em disputa, no entanto, é que, para este papa, a pobreza é uma fonte de verdade espiritual e moral, tão convincente quanto qualquer declaração dogmática ou concílio ecumênico.
Caso queiramos compreender a agenda de Francisco, não precisamos vasculhar o Catecismo da Igreja Católica ou o Código de Direito Canônico. Melhor será visitar lugares como Kangemi.
* * *
A seguir apresento duas observações sobre a viagem do Papa Francisco ao Quênia e a Uganda, antes de ele se arriscar visitar a República Centro-Africana.
Até que ponto Francisco está determinado a fazer esta escala neste último país, apesar das preocupações com a segurança? No voo de ida ao continente, ele visitou o cockpit de seu jato da Alitalia e disse ao piloto que se ele não se sentir confortável em aterrissar na República Centro-Africana, então que lhe passe um paraquedas, pois, de uma forma ou de outra, ele está indo visitar o país.
O novo nome para o colonialismo
Sempre que um papa viaja para a África, tende a haver duas narrativas em que a imprensa ocidental particularmente se interessa:
• aquela em torno do HIV/Aids e da proibição da Igreja para com o uso da camisinha;
• e a narrativa em torno das legislações contrárias à comunidade LGBT e da postura da Igreja sobre a homossexualidade e o casamento homoafetivo.
Até neste sábado, Francisco não abordou diretamente nenhum desses temas.
No primeiro caso, ainda no Quênia ele visitou um centro de tratamento mantido pela Comunidade de Sant’Egídio, movimento leigo católico, e no sábado ele ouviu o testemunho de uma ugandense de 24 anos que perdeu os pais em decorrência do HIV tendo nascido, ela própria, com a doença. O pontífice disse a ela que a oração pode transformar as “experiências ruins em esperanças”.
No segundo caso (a questão da homossexualidade), Francisco nada disse até então. No sábado, ele evitou tocar no assunto quando celebrou a memória de um grupo de mártires ugandenses lembrados, em parte, por recusarem as investidas homossexuais de um rei do século XIX.
Na ausência de comentários papais sobre estes temas, trago eu mesmo uma observação sobre a forma como muitos cristãos africanos pensam a respeito desses assuntos.
Há um século e meio, o cristianismo era em geral visto como uma força colonial na África. Segundo uma versão tradicional da história destes mártires de Uganda (23 dos quais eram anglicanos e 22 católicos), eles foram ordenados à morte pelo rei Mwanga, do reino de Buganda, em 1886 porque eram suspeitos de serem agentes dos colonizadores europeus.
Atualmente, inúmeros cristãos africanos – bem como muçulmanos africanos, seguidores das religiões africanas indígenas e outras – se veem como vítimas do colonialismo, nesse caso do tipo cultural.
Creem que os governos ocidentais e as ONGs estão tentando fazer com que a África abandone os seus valores tradicionais concernentes ao controle populacional e à homossexualidade como condição para a cooperação ao desenvolvimento.
Era este o sentido da referência feita pelo papa às “novas formas de colonialismo” no Quênia, citada acima, ecoando um sentimento que ouvimos, com frequência, ser dito por bispos católicos e outros líderes cristãos deste continente.
Sem entrar nos méritos aqui, uma observação aparentemente objetiva seria a seguinte: jamais se conseguirá encontrar um caminho para o debate sobre os direitos dos gays ou sobre o controle populacional na África sem se levar em conta a forma como estas memórias histórias do colonialismo, combinadas com ressentimentos contemporâneos sobre os desequilíbrios de riqueza e poder, estão presentes na discussão.
Em outras palavras, para muitos africanos o secularismo (ou a laicidade) é o novo nome para o colonialismo. Parece que, quanto mais o Ocidente pressiona, mais determinados os africanos se tornam em resistir.
“Francisco está junto” no combate às mudanças climáticas
A partir desta semana, teremos um total de 248 viagens papais além-mar na era moderna. Hoje, temos uma fórmula clara para estes eventos, o que significa que, quando há exceções, elas tendem a se destacar.
Uma dessas exceções veio na quinta-feira, dia de Ação de Graças nos EUA, quando Francisco foi à sede da ONU em Nairóbi, no Quênia. Esta foi a primeira vez que um papa visita as instalações deste organismo internacional em um país em desenvolvimento, e ele usou esta sua escala para proferir um discurso na dianteira da cúpula internacional sobre as mudanças climáticas a se iniciar nesta segunda-feira (30 de nov.) em Paris.
“Estamos perante um grande compromisso político e econômico”, disse Francisco sobre o encontro. Ele sugeriu que a África é o lugar certo para se ter como exemplo, sendo o lar dos “pulmões do planeta repletos de biodiversidade”, com as bacias do Congo, e também sendo um continente que sofre as calamidades decorrentes do desflorestamento e da desertificação.
Ele convidou a cúpula de Paris, conhecida como COP21, a adotar uma “nova estratégia energética que dependa de um uso mínimo de combustíveis fósseis, busque a eficiência energética e faça uso de fontes com pouco ou quase nenhum conteúdo de carbono”.
O que podemos tirar desta decisão papal incomum em acrescentar uma visita à ONU em seu itinerário normal de viagem – em particular, à sede da organização dedicada ao Programa para o Meio Ambiente?
Em uma palavra, significa que Francisco está junto na luta contra as mudanças climáticas. Seria “catastrófico”, advertiu ele, se acordos ousados não forem firmados.
“Estamos confrontados com uma escolha que não pode ser ignorada: queremos melhorar ou destruir o meio ambiente”, disse ele em Nairóbi, ecoando a linguagem empregada por ele em setembro quando discursou à Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York.
Francisco reforçou o que chama de “meios legítimos de pressão” para influenciar positivamente as negociações.
(Um destes meios de pressão veio no sábado, quando o cardeal Claudio Hummes apresentou a Petição Católica pelo Clima à cúpula de Paris com mais de 800 mil assinaturas, incluindo as dos cardeais americanos Sean P. O’Malley e Theodore McCarrick, apelando aos líderes políticos a “reduzirem drasticamente as emissões de gás carbono”.)
Da mesma forma, Francisco se colocou contra os céticos do aquecimento global, alertando para as “informações manipuladoras” que visam proteger os “planos e projetos” de grupos de interesses específicos.
Visto a amplitude de causas que um papa pode abraçar, é de se perguntar por que o tema das alterações climáticas parece ser são fundamental para Francisco.
Em uma palavra, a resposta é porque ele considera o meio ambiente o limite da cultura contemporânea do descarte, que também solapa os pobres, os idosos, os migrantes e refugiados, os nascituros e outras categorias da humanidade desprezadas.
O que Francisco está confirmando na África é que ele vê Paris como um ponto potencial de inflexão em direção a uma maior “cultura do cuidado”, que, segundo ele, não é uma “utopia idealista”, mas sim uma “perspectiva realista” e que ele está determinado a não perder nenhuma oportunidade em conduzir a história nessa direção.
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Para Francisco, a sabedoria vem dos pobres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU