Por: André | 02 Dezembro 2015
A acusação é uma das mais infâmias do século XXI: pedofilia; o acusado é uma pessoa da qual jamais se teria esperado algo assim, alguém acima de qualquer suspeita. E, além disso, é um respeitado homem da Igreja e muito conhecido, protagonista de uma fase heróica da vida da Igreja latino-americana, nada menos que Jesús Delgado, o secretário do novo beato Romero, seu principal biógrafo e grande promotor do processo que, em maio passado, levou o bispo mártir aos altares.
A reportagem é de Alver Metalli e publicada por Tierras de América, 27-11-2015. A tradução é de André Langer.
A Igreja salvadorenha, em completo silêncio, investigou uma denúncia de abuso sexual contra ele e resolveu suspendê-lo “de todas as funções sacerdotais, pastorais e administrativas”. Um procedimento rápido e conclusivo, quase uma admissão de responsabilidades em nome do acusado, que não por isso soa menos desconcertante.
No dia 25 de novembro, o chanceler da Arquidiocese de San Salvador, Rafael Urrutia, seu amigo, fez o anúncio público, em nome do arcebispo Escobar Alas. Urrutia é o encarregado da segunda fase do processo de Romero, a que deverá proclamá-lo santo. Também instruiu a causa de Rutilio Grande, que já está bem adiantada, provavelmente a um passo dos altares. Foi nomeado vice-postulador diocesano do processo “por mandato datado em Roma em 16 de junho passado” e que há poucos dias manifestou sua convicção de que seria rápido e trará resultados em prazo de tempo relativamente curto.
“Creio que a história de Romero já deixou uma marca em Roma”, disse a Tierras de América pouco depois da sua nomeação. E depois de Rutilio, “todos os outros”, acrescentou, referindo-se a “uma única causa para todos”, seminaristas, padres e catequistas assassinados antes e depois de Romero, cerca de 500 pessoas sobre as quais se estavam instruindo causas individuais.
Voltando a Secundino de Jesús Delgado Acevedo, este é o seu nome completo, e ao que aconteceu nas 48 horas que se seguiram ao chocante anúncio. Até a quarta-feira da semana passada, Delgado era vigário-geral da Arquidiocese de San Salvador e, portanto, ocupava o terceiro cargo hierárquico depois do arcebispo Escobar Alas e do bispo auxiliar Gregorio Rosa Chávez.
Delgado esteve na primeira fila no dia 30 de outubro em Roma, quando uma delegação formada por bispos, religiosos e leigos salvadorenhos viajou ao Vaticano para agradecer ao Papa Francisco pela beatificação de Romero e implorar uma pronta canonização, colocando nas mãos da Congregação para a Causa dos Santos todo o material sobre os possíveis milagres do bispo mártir. E nesse caso Delgado também fazia parte da causa.
Por meio de Urrutia soube-se que a denúncia contra Delgado foi apresentada à Secretaria para a Inclusão Social de San Salvador, uma estrutura que tutela os direitos dos menores, e a partir dali foi comunicada à Igreja local antes da visita da delegação de salvadorenhos a Roma. “Nesse momento inicia-se a investigação, se existe uma denúncia bem fundada”, explicou o chanceler. É algo que requer tempo, por isso, “a Arquidiocese tomou a decisão de fazer a viagem a Roma e depois continuar a investigação” na volta. Esta decisão explicaria, para Urrutia, a presença de Delgado na comitiva, embora pesasse sobre ele uma suspeita injuriosa.
Vanda Pignato, diretora da Secretaria de Inclusão Social de San Salvador e esposa do ex-presidente Mauricio Funes, deu a entender, em uma declaração feita nas últimas horas, qual poderia ser a possível evolução do que sob todos os efeitos é um caso com repercussão internacional. “Jamais vamos divulgar o nome dela ou o relato que ela nos contou, isto é confidencial. Porque há, seguramente, outras vítimas e se os meios de comunicação querem saber da vítima... as outras vítimas vão ter medo de apresentar uma denúncia”. Não fica claro se a referência a outras vítimas corresponde a Delgado ou à reticência que geralmente surge em uma denunciante quando corre o risco de que seu nome se torne público.
A pergunta chave foi feita, na sexta-feira 27 de novembro, por Carlos Colorado no sítio SuperMartyrio, que ele dirige. O que significa a história de Delgado para a causa de canonização do beato Romero que ainda está em andamento? Que repercussões pode ter? E, sobretudo, pode haver objeções? De pouco adiantará, como muitos estão fazendo, minimizar o papel de Delgado como colaborador de Romero e insinuar uma espécie de apropriação indevida de uma função que, na realidade, ele não tinha, pelo menos nas proporções que se lhe atribuem. O próprio beato Romero refere-se em seu diário ao “padre Jesús Delgado que me acompanha como secretário” à Conferência de Puebla (26 de janeiro de 1979). Além disso, é sabido que Romero o propôs várias vezes, em vão, como bispo, tratando de mudar um equilíbrio que não lhe era favorável dentro da Conferência Episcopal de El Salvador.
Mas há duas coisas que não se devem perder de vista. A primeira: a suspensão de Delgado “de todas as funções sacerdotais, pastorais e administrativas” disposta na semana passada inclui também “sua participação na comissão postuladora no Vaticano das causas de dom Oscar Arnulfo Romero e do Pe. Rutilio Grande”. Portanto, a partir desse momento, Delgado já não tem voz nem voto no caminho do beato Romero rumo aos altares.
A segunda, e mais decisiva. A mulher que o acusa de violação tem hoje 42 anos. Na época do abuso tinha nove. Fazendo algumas contas rápidas, deduz-se que “o romance”, como costumam chamar nestas situações os envolvidos, começou em 1982, dois anos depois do assassinato de dom Romero. Portanto, sua reputação está intacta, nenhuma sombra de cumplicidade pode atingi-lo. Mas, mesmo assim, é uma dessas notícias que provocam um nó no estômago dos fiéis.
Urrutia revelou que a denunciante não exigiu indenização e pediu, como reparação, que Delgado deixe o ministério e lhe peça perdão. “Falamos com ele (Delgado) e decidiu reunir-se com a vítima para pedir-lhe perdão”.
Para a lei salvadorenha, a responsabilidade penal de um abuso sexual cometido há 33 anos (se é reconhecido ou comprovado) já prescreveu. Para a Igreja não.
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