24 Novembro 2015
"Como qualquer analista internacional sabe, se não forem combatidas as fontes de financiamento vindas das monarquias do Golfo, Estados com governos totalitários e que compartilham do credo dos dirigentes da Al Qaeda e do ISIS (como Arábia Saudita e Qatar), então tudo não passa de um faz de conta, onde há a repressão contra as redes terroristas, mas nunca secam as fontes e suas origens societárias", alerta Bruno Lima Rocha, professor de ciência política e de relações internacionais.
Eis o artigo.
Na 6ª feira 13 de novembro ocorre o segundo atentado na França no ano de 2015. Muitos se perguntam do porque o país haver se tornado um alvo? Embora já seja um tema reiterado, entendo que há relevância em retomar este ponto. A França é um alvo permanente por ao menos três razões. O primeiro é mais relevante e se dá pelo fato da França ter uma população de árabe-descendentes na ordem de milhões (mais de cinco milhões) e uma proporção ainda maior de imigrantes se incluídos os afro-descendentes, sendo uma parte razoável destes islamizados. Logo, qualquer atentado na França pode semear em solo “fértil”, considerando a discriminação e linha de pobreza dos subúrbios quentes das grandes cidades e a presença de discurso jihadista entre os jovens desempregados destas localidades.
Outra razão é o impacto simbólico que um atentado em Paris traz; em sendo a “cidade luz”, Paris tem uma condição de repercutir o que lá ocorre em escala mundo, radicalizando as versões de “choque civilizatório”, argumento que interessa tanto aos jihadistas sunitas como aos chauvinistas dos países ocidentais. Diria que o terceiro fator se dá pelo passado colonial e sua presença atual. O ataque contra o hotel Radisson na capital do Mali – uma semana após o ocorrido em Paris, na 6ª dia 20 de novembro -, na África Ocidental reforça este ponto de vista. No passado pós 1ª Guerra, a França é a potência que organiza a Grande Síria, primeiro como protetorado e na sequência no arranjo do confessionalismo político da distribuição de poder. Ao voltar a intervir na região, talvez como o fizera no Mali em 2012, a França atrai a possibilidade de atentados, ainda mais se considerarmos que o maior contingente jihadista fora do Oriente Médio vem justamente do Estado francês. A France Afrique, como é conhecida a péssima política externa francesa no continente africano retroalimenta a sanha integrista contra a presença da Legião Estrangeira na defesa de perímetros e instalações petrolíferas assim como no comércio de armas para os governos locais.
Outro fator relevante é entender a espetacularização do confronto e do terror societário. Os ataques da sexta-feira 13 foram todos em locais de lazer e diversão - uma tradicional casa de shows, um estádio de futebol, um restaurante, um bar. Logo, podemos arriscar a existência de uma razão simbólica na motivação destas ações e escolha dos alvos. Esta simbologia tem relação com o segundo fator que listei acima. Ao demarcar a diversão “profana” como alvo militar, o jihadismo integrista consegue emitir um sinal de que nada nem ninguém seriam inocentes e menos ainda estaria a salvo. O discurso é pragmático: se o Ocidente mata crianças em aldeias no meio do deserto, o jihadismo mata todo e qualquer cidadão que por tabela seja cúmplice do Estado “agressor”. Este argumento absurdo é bastante compreensível pelas populações tribais do Oriente Médio e Magreb (norte da África) que estão sendo organizadas pelos jihadistas do ISIS e da Al Qaeda (o ataque do Mali se deu através de uma filial da rede comandada pelo sheik Al Zawahiri, herdeiro de Bin Laden no comando da Al Qaeda). Em larga escala é a guerra de 4ª geração em sua máxima potência, sem regras e apoiada na barbárie do cálculo político escuso por meios militares.
Logo, a conseqüência direta da expansão do conceito de guerra total, de guerra de 4ª geração, é colocar toda uma população sob suspeita. Muitos analistas – eu me incluo e assim venho afirmando em redes abertas – prevêem que o período que segue será muito parecido com o pós-11 de Setembro, com o pânico anti-terrorismo e o crescimento da islamofobia. Agora a presença de milhões de islamizados na Europa, somado ao fato da leva de refugiados e imigrantes recentes advindos do Oriente Médio vai aumentar a rejeição aos novos imigrantes e servir de base para a extrema direita como forma de pressionar seus governos. As esquerdas europeias devem se mobilizar imediatamente para fazer um cordão solidário ao redor das populações árabes e islamizadas, isto porque a islamofobia vai massificar ainda mais, seguindo na trilha dos atentados contra a redação do jornal Charlie Hebdo.
A xenofobia é um “presente” em tempos de crise econômica e ataques frontais ao Estado de Direitos consolidado na Europa de pós-guerra e hoje sendo questionado. A bolha imobiliária de 2008 e a criminosa especulação financeira que quebrara países como a Grécia traz “saídas” indefensáveis, conhecidas como austeridade, ou na versão crítica, “austericídio”. No sentido de “dividir para reinar”, os poderes de fato da União Europeia (a Troika, da Comissão Econômica, Banco Central Europeu e FMI) e os partidos hegemônicos dos países europeus, vão se utilizar da xenofobia para jogar trabalhadores contra imigrantes e refugiados e apontar os “males da Europa” atual aos setores de credo islâmico.
Assim, a securitização amplia o tensionamento instalado na Europa com as ondas migratórias dos últimos meses. O primeiro impacto é o fechamento de fronteiras e o acirramento de rivalidades históricas, em especial no Leste europeu. Nós não dimensionamos até porque nossa formação histórica gira em torno da era das navegações e o Tratado de Tordesilhas, mas a disputa territorial entre a cristandade e o islã se manteve após as cruzadas por mais 700 anos. A mesma presença dos mouros na Península Ibérica foi tão ou mais intensa no leste da Europa e na região de maioria eslava. Basta ver os Estados onde a Igreja Ortodoxa se tornara religião de Estado –a começar pela própria Rússia - e os embates na Ásia Central, passando pela Batalha de Viena em 1683, epicentro de um conflito de 300 anos.
A direita xenófoba e os governos destes países pós-soviétivos sabem aproveitar esta memória histórica para fechar fronteiras e radicalizar na política contra os refugiados. Isto sobrecarrega os países líderes da União Europeia, como a Alemanha e a própria França, levando-as ou a assumir responsabilidades no limite de seus orçamentos, ou a fazer coro com a xenofobia, ainda que com o discurso da securitização. Os efeitos - em sendo confirmados estas medidas (e creio que serão até como resposta ao eleitorado) - serão nefastos.
A Guerra ao Terror é uma estratégia derrotada e limitada a caça dos integristas e não seus financiadores
O conjunto de intervenções imperiais no Oriente Próximo, iniciado com o novo ciclo de unilateralismo quase absoluto com a 2ª invasão ao Iraque abriu uma caixa de Pandora dentro da qual se confrontam relações étnico-tribais e étnico-religiosas dentro da guerra fria do mundo islâmico, sucedânea da guerra fria do mundo árabe, vencida pelos aliados dos EUA na região. Os ataques da Rússia contra as ações do Daesh (ISIS) no Levante e a perda de territórios por parte dos integristas (sendo seguidamente derrotados em armas pela esquerda do Curdistão) acuaram – em parte – os seguidores do sheik Al-Baghdadi em sua demência concorrencial com a Al Qaeda. Mas, está visível que as ações bélicas contra o Daesh só são vitoriosas no chão, no terreno de operações, através do guarda-chuva do PKK. Após a sexta-feira 13 de novembro, a aproximação da França com a Rússia demonstra o fracasso e a derrota da política dos EUA para o Oriente Médio e o anúncio de uma nova etapa do acionar do Ocidente – Rússia incluída – no cenário deflagrado do Levante e da Mesopotâmia.
A única forma de compreender o rearranjo entre França e Rússia é partir de uma premissa. Se nós assumirmos a hipótese de que as potências ocidentais, encabeçadas pelos EUA, queriam realmente fazer a Guerra ao Terror (GWOT na sigla em inglês, uma política de Estado aprovada pelo Ato Patriótico de Bush JR), então houve um fracasso rotundo. Mas, como qualquer analista internacional sabe, se não forem combatidas as fontes de financiamento vindas das monarquias do Golfo, Estados com governos totalitários e que compartilham do credo dos dirigentes da Al Qaeda e do ISIS (como Arábia Saudita e Qatar), então tudo não passa de um faz de conta, onde há a repressão contra as redes terroristas, mas nunca secam as fontes e suas origens societárias.
Para frear esta sandice seria preciso um amplo rastreamento nas contas das entidades beneficiadoras – e o Departamento do Tesouro dos EUA tem essa lista – e o congelamento destas contas, assim como das pessoas físicas que doam para estas entidades e também das empresas controladas por estes doadores. Este modo de operação era realizado por Bin Laden sob treinamento da CIA para o combate a ocupação da URSS ao Afeganistão. Logo, é de amplo conhecimento e pode ser pego. Isto assustaria os sheiks doadores e secaria em parte as fontes de financiamento indiretas. Já ajudaria bastante, passando também pelo constrangimento das monarquias árabes, a começar pela criminosa monarquia saudita, e, por tabela, nos seus sócios ocidentais e globais (empresas de petróleo operando na região; só no Iraque são mais de 150 contratos em todos os níveis e escalas).
Se algo assim não for feito, quem vai combater militarmente o ISIS serão as forças conjuntas da Rússia-Irã-governo Assad-Hizballah por um lado (alimentando a guerra entre xiitas e sunitas) e por outro, derrotando no chão e modificando a estrutura societária, as forças da esquerda do Curdistão coordenadas pelo PKK. No meu entendimento, somente o modelo político do PKK, o Confederalismo Democrático, consegue propor uma política inclusiva de todas as comunidades étnico-culturais e étnico-religiosas e ainda libertar a mulher de seu papel secundário, invertendo a dominação patriarcal e quebrando com a hierarquia do clã-tribo, base de sustentação dos integristas.
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Uma análise de profundidade após os atentados de sexta-feira 13 de novembro em Paris - Instituto Humanitas Unisinos - IHU