20 Outubro 2015
O atual encontro mundial de bispos católicos deveria adotar uma leitura "menos negativa" da realidade, que reconheça e incentive os aspectos bons das sociedades modernas, disse um arcebispo australiano que participa da reunião.
A reportagem é de Joshua J. McElwee, publicada no sítio National Catholic Reporter, 14-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O arcebispo Mark Coleridge, que lidera um dos grupos de trabalho do Sínodo dos bispos, que ocorre entre os dias 4 e 25 de outubro, disse que "leituras cruas e sombrias" da sociedade moderna "não são aquilo que o médico receitou".
"É sempre a linguagem da crise", disse Coleridge, falando sobre como a Igreja fala sobre o casamento e a vida familiar.
"Eu entendo qual é a crise, mas às vezes eu acho que, quando falamos que o casamento e a família estão em crise, em parte, o que queremos dizer é que a nossa compreensão do casamento e da família estão em crise", disse o arcebispo, que dirige a arquidiocese de Brisbane, na Austrália.
"Você não pode ficar o tempo tempo todo dizendo: 'É lá fora, lá está o problema'", disse. "O problema muitas vezes está dentro de nós e dentro da Igreja. E nós temos que ter a honestidade e a clareza de visão para dizer isso."
Durante o encontro com o NCR, que durou cerca de 45 minutos, o arcebispo tocou um número incrível de temas. Aqui, o prelado australiano apresenta os seus pensamentos sobre como a Igreja pode modular a sua linguagem para com as pessoas gays, pede dos bispos sinodais que certas questões pastorais abordadas no Vaticano possam ser transferidas para as Conferências Episcopais regionais ou nacionais, e fala sobre como os bispos estão sendo chamados a agir com destemor no seu trabalho.
Coleridge começa falando das discussões no Sínodo sobre a Igreja usando uma linguagem mais inclusiva ao falar com as pessoas gays.
"Eu acho que não podemos mais dizer que condenamos o pecado, mas não o pecador", afirma o arcebispo. "A pessoa vai dizer que, nas culturas das quais você e eu viemos, a minha sexualidade não é apenas parte de mim, é parte de todo o meu ser", afirma.
"Portanto, você não pode isolar a minha sexualidade, identificando-a com este ato que você chama de 'intrinsecamente desordenado', que de alguma forma é distinto ou separado de mim, o pecador."
Depois, Coleridge fala sobre o que os bispos sinodais estão sendo chamados a fazer. Ele reflete sobre leitura do Evangelho de segunda-feira, quando Jesus diz para a multidão: "Aqui está algo maior do que Salomão".
"Ao ouvir isso, eu pensei que essa é a palavra que está sendo dita para nós no Sínodo: 'Aqui está algo maior do que Salomão'", disse o arcebispo. "E se não há algo maior do que Salomão, então todos nós devemos fazer as malas e voltar para casa."
"Há um turbilhão, não há dúvida", disse Coleridge. "E todos estão sentindo isso. Mas isso pode muito bem ser o que acontece quando você entra no meio do processo turbulento e, no fim, incontrolável do discernimento. Uma vez que você está nesse turbilhão do discernimento, você realmente deve fazer um ato de fé de que há algo maior do que Salomão."
Eis a entrevista.
Você deu alguns exemplos da linguagem que pode ser mudada pelo Sínodo. Ouvimos que alguns bispos conversaram sobre uma linguagem mais inclusiva, em particular para com as pessoas gays. Essa é uma área em que você identificaria que a linguagem da Igreja talvez esteja mudando?
Isso é certo. A linguagem sobre 'intrinsecamente desordenado', esse tipo de coisas. Se você é alguém de dentro, você sabe o que isso significa. Mas eu disse que simplesmente devemos revisitar uma parte dessa linguagem, porque ela não se comunica mais da forma que nós pensamos. Por exemplo: A distinção entre pecado e pecador se rompe, particularmente na área da sexualidade. Eu acho que nós não podemos mais dizer que condenamos o pecado, mas não o pecador. Porque, veja, uma pessoa vai dizer que, nas culturas das quais você e eu viemos, a minha sexualidade não é apenas parte de mim, é parte de todo o meu ser. Portanto, você não pode isolar a minha sexualidade, identificando-a com este ato que você chama de "intrinsecamente desordenado", que de alguma forma é distinto ou separado de mim, o pecador. Então, dizer que esse ato é intrinsecamente desordenado é obviamente entendido como "eu sou intrinsecamente desordenado".
Outra distinção que foi rompida é a distinção que invocamos por um tempo muito longo entre o público e o privado. Nós fazemos a verdade em público e a misericórdia em privado. Em outras palavras, a compaixão do confessionário temperou a clareza do púlpito. Isso não funciona mais. Eu acho que se pode ver no Papa Francisco – e essa é uma das coisas mais poderosas do seu pontificado – a concretização pública da misericórdia. E eu acho que essa é uma das direções em que temos que nos mover. Eu não estou dizendo que devemos deixar de ministrar a misericórdia em privado. Claro que devemos. Mas também devemos pôr em prática a misericórdia publicamente.
Agora, o papa, ao ser questionado sobre a homossexualidade, diz "Quem sou eu para julgar?", não está mudando o ensinamento da Igreja, mas, de forma muito pública, está pondo em prática algo a mais. Quando ele lava os pés de uma jovem muçulmana em um centro de detenção, novamente, é uma concretização pública da misericórdia. E quando ele diz que a absolvição e a misericórdia estarão mais livremente disponíveis para as mulheres que fizeram aborto durante o ano do Jubileu, é o mesmo tipo de coisa. Uma das questões-chave, a meu ver, para explorar esse vasto campo intermediário, é o que pode significar para nós pôr em prática a misericórdia publicamente? E também como podemos falar de forma diferente do pecado e do pecador, de uma forma que se comunique com as pessoas hoje? Porque, de maneiras que mal conseguimos imaginar, a linguagem que nós, bispos, tomamos como óbvia, e talvez até mesmo achamos maravilhosa, é absolutamente incompreensível e alheia para a maioria das pessoas, inclusive para os católicos – imagine para aqueles que não são católicos.
Também há a linguagem dos gestos, e eu acho que o Papa Francisco é um exemplo muito bom disso. Ele está modelando algo sobre o qual devemos ponderar com muito cuidado. E a questão se torna a seguinte: na área do casamento e da família, como vamos pôr em prática a misericórdia publicamente e não apenas privadamente? E essa pode ser uma questão difícil para se fazer aos católicos, que, por muito tempo, foram usados para uma compreensão e disposição particulares do público e do privado. Não é fácil para nós imaginar o que seria essa concretização pública da misericórdia. Mas eu espero que o Ano do Jubileu nos leve a fazer isso. Eu também gostaria de ver que o Sínodo nos leve a fazer isso.
Em outra entrevista, você falou sobre os casais divorciados e recasados e sobre os casais do mesmo sexo dizendo: "Pessoalmente, eu acho que simplesmente não tem contato com a realidade dizer que não não há nada de bom nesses relacionamentos".
Generalizar é extremamente arriscado, porque há todos os tipos de segundos casamentos. Eu conheço pessoas que se divorciaram e voltaram a se casar civilmente e que ainda são pessoas de uma fé muito impressionante, que têm uma relação estável, duradoura e frutífera, que tem todos os sinais da graça. Mas eu também conheço segundos casamentos que são brutais e desumanos. Eu não estou preparado para fazer generalizações sobre os segundos casamentos, assim como não estou preparado para fazer generalizações sobre as uniões do mesmo sexo. Eu acho que, nessas situações extremamente complexas, nós, como Sínodo, devemos ter muito cuidado com as generalizações amplas.
Ao mesmo tempo, devemos manter um olho firmemente sobre os princípios essenciais, mas modulando a forma pela qual esses princípios são aplicados, olhando para situações particulares. Isso é o que a Igreja Católica sempre fez. Eu sou padre há mais de 40 anos, e, no confessionário, em uma situação de aconselhamento, você tem que negociar os detalhes da situação desta pessoa ou da relação daquelas pessoas. É por isso que eu digo que generalizações amplas simplesmente não são suficientes.
Neste Sínodo, o que ficou claro também foram as grandes modulações culturais do casamento e da família. E é por isso que, no nosso grupo, e eu acho que em outros grupos, às vezes, houve uma tendência de dizer que algumas dessas questões devem ser abordadas localmente. Agora, isso alarmou um ou dois bispos. Eles veem isso como uma fragmentação da Igreja. Eu não vejo isso nesses termos. Eu simplesmente acho que o casamento e a família são modulados de forma tão diferente de continente para continente, de modo que certas questões ou argumentos deveriam ser abordados local ou regionalmente.
Mas, ao mesmo tempo, existem algumas verdades fundamentais sobre o casamento em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as culturas. E a Igreja Católica precisa articular essas verdades. Mas, ao mesmo tempo, essas verdades são moduladas de tempo para tempo, de lugar para lugar, de cultura para cultura. Eu não vejo isso como "ou um ou outro". A unidade na diversidade da Igreja Católica sempre foi um arranjo muito complexo. Algumas pessoas me dizem que a Igreja Católica é monolítica. Meu Deus, esta é a instituição menos monolítica que eu conheço. É como pastorear gatos! Embora tenha havido vozes que expressaram ansiedade sobre o fato de remeter certas questões para o nível local e regional, eu não compartilho dessa ansiedade. E eu acho que um certo grau de descentralização saudável é quase essencial se realmente quisermos ir ao encontro da realidade do casamento e da vida familiar em todo o mundo.
Houve alguma discussão sobre que coisas poderiam ser descentralizadas?
Não. Não chegamos a esse ponto. Poderá surgir. Eu gostaria de pensar que o Sínodo, de fato, poderia propor uma resposta para esse tipo de questão. Em outras palavras, não "enrolar". Quais são as coisas que poderiam ser remetidas ao nível local e regional? E também: quais são as coisas que poderiam ser feitas para nos ajudar a falar e a agir de forma diferente? Deem-me, ou deem ao papa, sugestões concretas. Porque o Sínodo do ano passado supostamente devia fazer um balanço das situações e da realidade das famílias e dos casamentos ao redor do mundo. Este Sínodo, pelo que eu entendo, supostamente deve dizer: "Ok, aqui é onde estamos. O que vamos fazer a respeito disso?". Este é um Sínodo essencialmente prático. E é isso que eu acho que significa chamá-lo de "pastoral". Se tudo a que chegarmos for nada ou for "enrolação", eu não acho que o Sínodo terá sucedido. E simplesmente vamos ter que continuar nos movendo ao longo da estrada da jornada do Sínodo até que cheguemos a algo que seja fiel, criativo, prático, realista, misericordioso. Isso é tudo o que estamos procurando.
Há muito barulho, especialmente nos EUA, por parte de pessoas que não querem que nada mude.
Há pessoas que estão apaixonadamente comprometidas com a imutabilidade, uma espécie de imobilismo. Pessoalmente, eu acho isso muito irrealista. E é um caminho para lugar algum.
Se, por outro lado, o Sínodo for em frente, mas não muito – talvez emitindo um documento muito "enrolado" –, o que você acha que vai acontecer? O que você acha que isso vai significar para a Igreja daqui para a frente?
Bem, eu acho que haverá um enorme sentimento de frustração e de decepção, e por parte de muitas, muitas pessoas. E talvez a sensação de uma oportunidade perdida. Mas isso certamente vai significar que nós simplesmente temos que continuar caminhando por essa estrada. Nós ainda não chegamos a um ponto em que podemos trazer a paz para a Igreja e encontrar aquela convergência da verdade e da misericórdia que todos querem. De fato, entre os bispos aqui, independentemente das diferenças de opinião sobre as questões candentes, cada bispo diz: "Sim, eu estou apaixonadamente comprometido para encontrar o ponto onde a verdade e a misericórdia se abraçam".
Nessas coisas profundas, não há nenhuma diferença. É uma questão de saber o que significa, então. E muitas das diferenças têm a ver com a compreensão da relação entre a Igreja e a história, o Evangelho e a cultura. Essas foram as grandes questões subjacentes ao Vaticano II. Elas ainda são as grandes questões. Se você apenas suspirar a frase "desenvolvimento da doutrina" para alguns dos Padres sinodais, eles acham que você está a caminho da fogueira. Mas John Courtney Murray disse que a grande questão subjacente ao Vaticano II era o desenvolvimento da doutrina. Em certo sentido – e isso precisa ser cuidadosamente analisado –, isso continua sendo verdade agora. Pessoalmente, eu não acho que seja uma opção realista pensar que podemos habitar essa bolha de imutabilidade que prescinde da história e da cultura. A Igreja está imersa em ambas. Mas, de novo, o que isso significa na prática, in loco? Essa é a questão.
Você postou no seu blog sobre a sua visita à Basílica de São Paulo Fora dos Muros, dizendo ver um modelo de liderança como bispo em Paulo, chamando-o de "fiel ao passado, capaz de ler um presente confuso, sem medo do futuro". Para mim, esse é um modelo com o qual, a meu ver, alguns bispos não se sentiriam confortáveis.
Possivelmente não. Esse é Paulo. Eu sou biblista de formação, lecionei Escritura por anos. Uma das coisas inspiradoras sobre a literatura paulina é a forma como ela apresenta Paulo como uma espécie de modelo transcendente de liderança. Ele se torna a mensagem. Eu fiquei muito consciente disso ontem [na visita à basílica]. Fiel ao passado: um bispo não tem nenhuma opção, temos que salvaguardar e promover a tradição apostólica. Esse é o núcleo do ministério episcopal. Mas você deve ser capaz de ler o agora, e você não é fiel ao passado se não fizer isso. É por isso que somos fiéis ao passado, a fim de termos os olhos para ler a confusão do agora. Ele é sempre uma bagunça, foi assim para Paulo; é assim para nós. Mas sem medo do futuro.
E às vezes eu ouço vozes no Sínodo que me parecem ser as vozes do medo. E uma das coisas que me impressiona no Papa Francisco é que há um grande destemor nele. E talvez essa seja a sabedoria da velhice – aquela sensação de não ter nada a perder. Mas também é um legado da fé, não apenas dos anos, no sentido de que, nesse turbilhão, o Espírito Santo está presente. A leitura do Evangelho de hoje dizia: "Aqui há algo maior do que Salomão". Enquanto eu ouvia isso, eu pensava que essa é a palavra que está sendo falada para nós no Sínodo: "Aqui há algo maior do que Salomão". E, se não há algo maior do que Salomão, então todos nós devemos fazer as malas e voltar para casa. Há um turbilhão, não há dúvida. E todos estão sentindo isso.
Mas isso pode muito bem ser o que acontece quando você entra no meio do processo turbulento e, no fim, incontrolável do discernimento. Uma vez que você está nesse turbilhão do discernimento, você realmente deve fazer um ato de fé de que há algo maior do que Salomão. E o único sinal que nos será dado é o sinal do profeta Jonas – então estamos no ventre da baleia. Não por três dias, mas por três semanas. Eu também estava pensando, no outro dia, na "sala de cima" [do relato de Pentecostes]. A Aula do Sínodo é uma sala de cima. E de portas trancadas. E eu pensava comigo mesmo no Pentecostes: por que eles estavam encolhidos atrás de portas fechadas? Porque eles tinham medo. Em um processo como esse, o medo é o inimigo. Talvez a qualidade de que mais precisemos é uma espécie de destemor, e o outro lado dessa mesma moeda é a confiança.
O seu pequeno grupo sugeriu uma leitura "menos negativa" da realidade.
A leitura da história... essa espécie de "tudo vai para o inferno em um mesmo cesto". Não podemos nos dar ao luxo de ser Pollyanna, mas nem tudo é desgraça e melancolia. Eu acho que toda essa leitura católica da modernidade, contra a qual o Vaticano II se levanta como o antídoto duradouro, simplesmente deve ser ser questionada. Da mesma forma, a leitura das culturas contemporâneas: é claro que existem forças destrutivas agindo nas culturas contemporâneas. Mas há outras forças que são luminosas e emocionantes. Eu acho que essas leituras cruas e sombrias sobre a história e a cultura contemporâneas não são aquilo que o médico receitou. E uma boa parte da nossa linguagem que flui desses pontos de vista da história e da cultura também é negativa. É sempre a linguagem da crise.
E eu entendo qual é a crise, mas às vezes eu acho que, quando falamos que o casamento e a família estão em crise, em parte, o que queremos dizer é que a nossa compreensão do casamento e da família estão em crise. Como vai aumentar a clivagem entre a nossa compreensão e o rumo que a sociedade está tomando, uma das coisas que devemos fazer é considerar ou revisitar a nossa própria compreensão do casamento e da família, ampliá-la e aprofundá-la. E encontrar outra linguagem para falar dessa compreensão mais ampla e profunda do casamento e da família. Você não pode ficar o tempo todo dizendo: "É lá fora; lá está o problema". O problema muitas vezes está dentro de nós e dentro da Igreja. E nós temos que ter a honestidade e a clareza de visão para dizer isso.
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Sínodo deveria propor uma leitura "menos negativa" da realidade. Entrevista com Mark Coleridge - Instituto Humanitas Unisinos - IHU