Por: Cesar Sanson | 14 Agosto 2015
Diante da vigilância norte-americana e manipulações do Facebook, muitos ativistas cogitam abandonar a rede. Seria precipitação: há imensa disputa a fazer. O comentário é de Thomas Swann, em artigo publicado por Outras Palavras, 13-08-2015.
Eis o artigo.
Em 2011, havia um forte sentimento de que a política radical estava mudando. A Primavera Árabe, os Indignados, o Occupy: tudo dava a impressão de que a ação direta e a democracia direta estavam saindo do gueto onde permaneceram, no movimento de altermundismo. Com assembleias massivas e uma política radical DIY (ou “Façamos nós próprios”- “Do It Ourselves”, DIO em inglês), alguma coisa parecia estar se transformando. Frente à “austeridade” e ao totalitarismo, uma alternativa real estava sendo forjada.
Ao mesmo tempo, as ferramentas usadas nesses protestos e rebeliões vieram para o centro do palco. Não somente os mecanismos de tomada de decisão democráticos, mas também as infra-estruturas digitais que, muitos argumentavam, facilitavam aquilo que era tão promissor nesses movimentos.
As mídias sociais eram cada vez mais vistas como elemento essencial para que grandes grupos pudessem organizar-se sem uma liderança centralizada. Plataformas como o Facebook e o Twitter estavam possibilitando às pessoas mobilizar-se não em estruturas hierárquicas como sindicatos e partidos políticos, mas em redes horizontais. Ativistas autônomos e subgrupos desfrutavam de autonomia tática, enquanto permaneciam sendo parte de um todo maior.
Passaram-se quase quatro anos e agora grande parte do brilho dessa narrativa se apagou. Alguns elementos das revoltas de 2011 foram consumidos pela tragédia da guerra civil e das ditaduras restauradas, enquanto outros se dispersaram.
É claro que quatro anos não significa um tempo longo no grande plano da História, e o exemplo do Podemos e do Syriza sugere que talvez esses movimentos estejam de fato evoluindo e desenvolvendo novas estratégias. Uma vez que a fase de mobilização de massa e movimentos sociais radicais de modo algum foi interrompida, o que está em disputa, talvez mais do que qualquer outra coisa nos últimos quatro anos, é a promessa contida nas ferramentas das rebeliões de 2011.
As mídias sociais, antes consideradas por alguns como a essência mesma da política radical contemporânea, são agora vistas sob uma luz mais crua e menos indulgente. Algumas experiências destacaram as desigualdades e hierarquias implícitas que eram reforçadas pelas mídias sociais.
Outras apontaram para a maneira como as mídias sociais exploram, visando lucro, nosso comportamento online. A saga de Snowden mostrou como nossa organização online é vulnerável, assim como a repressão do ativismo baseado nas mídias sociais ocorrida na Turquia e em outros lugares.
Mas, haverá, diante dessas críticas, alguma coisa que possa ser salva? Plataformas como Facebook e Twitter podem ser úteis na política radical? Se sim, como? Eles ainda facilitam o tipo de organização que era tão promissor em 2011 e que continua, de vários modos, a definir política radical de esquerda?
A promessa das mídias sociais
As plataformas de mídia social são frequentemente consideradas meios de comunicação, de auto-expressão e formação do discurso público. Da mesma forma, contudo, as plataformas de mídia social – e as práticas de comunicação em geral – atuam também como infra-estruturas que apóiam as ações que desenvolvemos. Elas nos permitem partilhar informações e recursos, assim como tomar decisões coletivas.
Nesse sentido, práticas de comunicação podem também ser entendidas como um sistema de gerenciamento da informação. Esse é um conceito emprestado do mundo dos negócios e da administração, e refere-se a qualquer sistema, normalmente eletrônico e crescentemente digital, que facilita a organização. Emails de trabalho e intranets pertencem a esse tipo. Não só possibilitam às pessoas falar umas com as outras, mas contribuem também para a realização das tarefas.
O que as mídias sociais podem oferecer, quando consideradas como sistemas de gerenciamento da informação, plataformas que facilitam certas formas de ação, é um modo para tornar organizações radicais e anarquistas mais próximas das estruturas democráticas e participativas que caracterizam os levantes de 2011 e a política radical de esquerda, pelo menos desde a rebelião zapatista, o movimento anti-globalização dos anos 1990 e, antes ainda, o feminismo radical dos anos 1960 e 1970.
As mídias sociais podem oferecer a infra-estrutura tanto para tomadas de decisão democráticas e ações autônomas, possibilitando aos ativistas acesso a recursos e informações que podem capacitá-los para agir – de tal modo que estruturas mais hierárquicas de comunicação fiquem reduzidas aos processos de comando e controle.
Embora haja críticas significativas de ativistas, assim como de acadêmicos, às mídias sociais – com foco na privacidade e vigilância, controle corporativo e estatal, a economia política de trabalho gratuito e a psicologia e comportamento encorajados pela arquitetura das plataformas mainstream – quero sugerir que ainda existe um potencial inerente às mídias sociais, dada a natureza das práticas de comunicação a que dão suporte.
Essas práticas podem ser descritas como comunicação de muitos-para-muitos. São potencialmente construídas sobre diálogos com múltiplos atores, o que expressa um dos elementos necessários à democracia participativa da política radical de esquerda. As mídias sociais podem, portanto, ser vistas como sistemas que facilitam formas de organização radicalmente democráticas e que podem dar suporte a tipos de autonomia e horizontalidade que, em parte, foram vistas nos movimentos de 2011.
Essa é a promessa das mídias sociais. Uma promessa que ainda pode ser cumprida. Se as mídias sociais apresentam oportunidade para a comunicação horizontal, de conversação, e esse tipo de comunicação é consistente com os modos como tentamos imaginar relacionamentos sociais e estruturas de tomada-de-decisão não-hierárquicos, então as mídias sociais podem ser consideradas com potencial para ser parte da política radical de esquerda.
Práticas de comunicação interna e externa
Como parte de minha pesquisa de doutorado, entrevistei muitos ativistas envolvidos na esquerda radical e na cena anarquista holandesas. As imagens que eles apresentaram sobre práticas de comunicação dos grupos com que se relacionavam podem ser usadas para trabalhar algumas ideias em torno da comunicação de muitos-para-muitos, de sua relação com a política radical e a promessa das mídias sociais.
Internamente, todos os grupos de esquerda radical em questão adaptam-se, mais ou menos, ao modelo de comunicação de muitos-para-muitos. Grande parte dessa comunicação é feita por meio de encontros presenciais, nos quais as pessoas tentam chegar ao consenso sobre temas em discussão e decisões que precisam ser tomadas.
Sobre tecnologia de redes sociais, no entanto, os ativistas falaram das listas de discussão por e-mail e dos fóruns on-line, de uso comum na política radical de esquerda desde ao menos a Batalha de Seattle, em 1999, e os primórdios do movimento altermundista.
Embora nenhum dos grupos utilizasse, em suas práticas internas de comunicação, plataformas mais novas e mainstream como o Facebook, um deles usava o site alternativo de relacionamento social Crabgrass como parte central de sua infra-estrutura de debate e tomada-de-decisão. O Crabgrass foi desenvolvido por pessoas ligadas ao coletivo RiseUp, que oferece endereços de e-mail seguros a ativistas. O objetivo é facilitar a formação de redes sociais e colaboração em grupo, com inclinação especificamente radical e de esquerda.
Externamente, a comunicação de muitos-para-muitos tornou-se muito mais rara. Embora a maioria dos grupos usem Facebook e Twitter, usam-nos principalmente como extensões de seus sites, que por sua vez atuam principalmente como extensões de seus jornais impressos.
As três exceções ressaltam as potencialidades de ambas as plataformas de mídia social, a mainstream e a alternativa, no desempenho desse papel. Um grupo, envolvido em organização comunitária, era ativo no Facebook não apenas compartilhando artigos e avisos, mas também respondendo a comentários e envolvendo-se em discussões com outros usuários. Outro, usou um mapeamento coletivo, em estilo crowdsourced de forma a refletir o escopo da comunicação de muitos-para-muitos para apoiar a ação autônoma. O terceiro exemplo de uso de mídias sociais alinhado a esse ethos participativo veio de um grupo que publicava comentários e respostas do Facebook e do Twitter em seu jornal, facilitando algum nível de conversação entre os participantes do grupo e aqueles que estavam fora dele.
Institucionalizando a autonomia
A comunicação de muitos-para-muitos facilitada pelas mídias sociais – na medida em que permite a conversa, em vez de simplesmente a transmissão de informações, ou mesmo ordens –, está intimamente ligada a uma visão de organização de esquerda radical e anarquista. Se a representação do futuro, a realização dos objetivos políticos no aqui e agora, são tidas como parte das principais preocupações dos movimentos sociais radicais, então o compromisso com a comunicação de muitos-para-muitos pode ser considerado tão importante quanto o compromisso com a democracia e a igualdade.
Ela tem o potencial de empoderar ativistas para agir com autonomia e ser um alicerce da democracia participativa. Nesse sentido, as plataformas de mídia social podem contribuir para libertar o ativismo das estruturas de cima para baixo que costumavam ser comuns em partidos políticos e dos sindicatos.
Haverá todavia outros modos de olhar para esses tipos de organização e de estrutura sugeridos pelas mídias sociais e pela comunicação de muitos-para-muitos? No início deste artigo mencionei que as mídias sociais e o exemplo das rebeliões de 2011 perderam parte daquilo que os tornava tão atrativos. Os ativistas são, parece, cada vez mais cautelosos (e talvez com razão, dadas as limitações) com as organizações de relacionamento e a comunicação em rede. Há cerca de um ano, contudo, a política radical teve uma ligeira mudança.
Em lugar de movimentos sociais que se opõem completamente aos partidos políticos e guardam autonomia com relação a eles, o ascenso do Podemos e do Syriza, e certamente a onda de apoio aos Verdes, na Inglaterra e no País de Gales, e ao Partido Nacional Escocês, na Escócia, pode apontar para um retorno do partido de massas como elemento da estratégia dos movimentos sociais radicais de esquerda.
O Podemos e o Syriza, sob muitos pontos de vista, tornaram-se articulações institucionais de movimentos sociais de massa. Não os substituíram e têm clareza de que pretendem atuar como braços parlamentares a serviço desses movimentos – embora as tensões atuais no Syriza sugiram que isso é muito mais problemático do que alguns querem fazer parecer.
No caso do Podemos, significou uma continuidade da democracia direta radical do movimento 15-M. Para tanto, o partido contou com as mídias sociais e a comunicação de muitos-para-muitos não para levar suas mensagens até os eleitores, mas na definição do próprio conteúdo dessas mensagens e de suas políticas.
As mídias sociais podem continuar a ter um papel na política radical de esquerda, afinal de contas. As práticas de comunicação de muitos-para-muitos a que dão suporte podem, na sua melhor forma, ser prefigurativas das metas da política radical, de tomadas-de-decisão participativas e democráticas. Como sistema de gerenciamento da informação, facilitam a ação concreta – os exemplos dos grupos de esquerda radical em minha pesquisa de doutorado apontam para essa conclusão.
As diversas mídias sociais mainstream (como Facebook e Twitter), e as plataformas alternativas (tais como Crabgrass e n-1), podem ser parte importante da política radical de esquerda, seja na forma de mobilização dos movimentos sociais de massa ou de articulação desses movimentos em partidos políticos mais democráticos.
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Novos movimentos: hora de deixar as redes sociais? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU