27 Julho 2015
O debate sobre os papas e o comunismo não é apenas uma querela obscura entre estudiosos. Ele tem um impacto direto sobre a nossa percepção da política papal em um mundo que está mais interligado do que nunca, mas em que as narrativas na Igreja ainda são muito nacionais.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo e diretor do Instituto para o Catolicismo e Cidadania da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio Global Pulse, 21-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Não sabemos o que o presidente Barack Obama vai dar ao Papa Francisco quando este visitar a Casa Branca em setembro próximo. Mas podemos ter certeza de que não será um crucifixo de foice e martelo como o que o presidente boliviano Evo Morales deu ao papa durante a sua recente viagem à América Latina.
Previsivelmente, esse peculiar presente enfureceu aqueles católicos que veem a sua Igreja alinhada com uma certa agenda geopolítica. Mas não a Francisco. Ele disse aos jornalistas no voo de volta para Roma que não se ofendeu com o presente e o estava levando para o Vaticano.
As várias reações a esse episódio – à luz da próxima visita do papa aos Estados Unidos – dizem muito sobre as mudanças ao paradigma cultural e político sob o Papa Francisco.
É um dramática afastamento do "paradigma João Paulo II", ou de um certo "paradigma da Guerra Fria". E isso está causando profundas preocupações entre os apologistas do falecido papa, especialmente George Weigel, o artífice mais influente da narrativa de João Paulo II nos Estados Unidos.
Em um agudo artigo no sítio National Review sobre a recente visita papal à América Latina, Weigel não fez nada menos do que acusar a comitiva do Papa Francisco de ser mantido em cativeiro pela falecida cultura política e diplomática forjada pelo falecido secretário de Estado vaticano, o cardeal Agostino Casaroli (1914-1998).
Mas ninguém foi enganado. O verdadeiro alvo da crítica de Weigel era o próprio papa argentino.
"A se julgar pela recém-concluída visita papal ao Equador, Bolívia e Paraguai, um Casaroli 2.0 parece estar informando a abordagem do Vaticano aos novos autoritarismos da América Latina continental", escreveu.
Aqui estão as linhas mais contundentes desse artigo: "Aqueles que guiam a interface da Santa Sé com a política hoje nasceram e foram criados na Escola Casaroli. E eles estão ocupados em replicar a fórmula acomodacionista (ou, se preferir, menos conflituosa) de Casaroli […] Assim, os diplomatas do papa poderiam querer passar o Ferragosto, o período de verão quando o Vaticano essencialmente fica fechado, informando-se sobre o fracasso do Projeto Casaroli e estudando os ensinamentos de João Paulo II sobre a sociedade livre e virtuosa do século XXI, como uma preparação essencial para a visita pastoral do Papa Francisco a Cuba em setembro e aos Estados Unidos depois disso".
Agora, deixando de lado as palavras paternalistas de Weigel relativas aos altos diplomatas do Vaticano (especialmente o seu atual secretário de Estado, o cardeal Pietro Parolin, e o equivalente ao seu ministro das Relações Exteriores, o arcebispo Paul Gallagher), assim como aos seus mais importantes diplomatas dos últimos 50 anos, esse tipo de reação do guardião do "wojtylianismo" nos Estados Unidos indica o que o pontificado de Francisco significa para o catolicismo mundial às vésperas da sua visita de setembro.
Ele nos diz duas coisas em particular.
Em primeiro lugar, indica que há várias dimensões de uma divisão cultural e política entre o Papa Francisco e o mundo católico de fala inglesa. A percepção de comunismo é apenas uma delas.
O comunismo e o catolicismo forneceram identidades sociais e políticas diferentes, mas sobrepostas, ao longo da história política do século XX na Europa e na América Latina. Onde os católicos norte-americanos veriam como blasfemo um crucifixo de foice e martelo, esse não seria o caso para muitos europeus. Isso porque, no último século, muitos católicos na Europa também eram comunistas ou socialistas. (Por essa razão, um decreto do Santo Ofício de 1949 que excomungou os católicos que cooperavam com o comunismo teve quase impacto algum no nível pastoral.)
Assim como isso parece impensável para católicos norte-americanos como George Weigel, simplesmente não faz sentido para católicos europeus rotular milhões de membros de esquerda da sua Igreja como traidores ou conciliadores do stalinismo.
O comunismo na Europa e na América Latina eram muito diversos e diferentes do tipo de comunismo stalinista que Pio XII condenou a partir do Vaticano e que o arcebispo Fulton Sheen rotineiramente denunciou no horário nobre da televisão norte-americana.
É essencial destacar isso, especialmente porque a percepção do Papa Francisco do comunismo é muito mais parecida com a visão europeia generalizada do que a norte-americana típica. Mas, mais concretamente, também é importante olhar para o estado atual dos estudos e da compreensão da Ostpolitik do cardeal Casaroli em relação ao comunismo na Europa Oriental.
A narrativa de Weigel é de que João Paulo II rapidamente substituiu a fórmula acomodacionista do cardeal, que havia sido iniciada sob João XXIII e Paulo VI, por um estilo e uma agenda mais assertivos. Essa é a narrativa que tem sido mais lida amplamente no mundo ocidental.
Mas, recentemente, historiadores católicos como Andrea Riccardi, o fundador da Comunidade de Santo Egídio de Roma, começaram a contestar essa narrativa. Riccardi faz isso na sua biografia de 2011 de João Paulo II.
E Massimiliano Signifredi também oferece uma imagem mais nuançada do que a pintada por Weigel em um livro seu de 2013 sobre o falecido papa polonês e o fim do comunismo (Giovanni Paolo II e la fine del comunismo. La transizione in Polonia 1978-1989).
Infelizmente, essas importantes obras e muitos outros estudos recentes sobre a diplomacia vaticana frente ao comunismo não foram traduzidos para o inglês. E, assim, a narrativa do paradigma João Paulo II, que é mais ideológico do que baseado em fatos, continua se perpetuando no mundo de fala inglesa.
O debate sobre os papas e o comunismo não é apenas uma querela obscura entre estudiosos. Ele tem um impacto direto sobre a nossa percepção da política papal em um mundo que está mais interligado do que nunca, mas em que as narrativas na Igreja ainda são muito nacionais.
Por exemplo, a ideia de que a cultura católica europeia e latino-americana do século XX estava imbuída de um caráter antiamericano se baseia mais na suposição generalizada do que em um fato pesquisado.
O Papa Francisco claramente tem uma percepção diferente do comunismo do que o católico estadunidense típico. E isso complica a fórmula padrão "liberal versus conservador" para categorizar os católicos que gostam do papa e aqueles que não gostam.
O anticomunismo era uma força poderosa, especialmente na segunda metade do século XX, que ajudou os católicos a entrar na corrente ideológica principal dos Estados Unidos. Era uma força que ajudou a criar uma união teológica e ideológica perfeita entre João Paulo II e certos católicos estadunidenses durante os anos em que Ronald Reagan era presidente.
Esses católicos continuam se agarrando ao paradigma João Paulo II e encontram os seus ideais sociopolíticos no reaganismo.
Mas o paradigma político-social do Papa Francisco e do presidente Obama é muito diferente. E isso criou um grande abismo entre o Vaticano e muitos católicos estadunidenses – especialmente os bispos.
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América, comunismo e o fim do ''paradigma João Paulo II''. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU