23 Junho 2015
Elas são imensas majestades. Visões do passado. E representam esperança para o futuro. Sobreviventes da Floresta Atlântica original em todo o luxo, poder e glória, as grandes árvores se destacam em meio à multidão de vizinhas de dimensões acanhadas, típica das matas secundárias, replantadas. As gigantes estão logo ali nas urbanas florestas da Tijuca e da Pedra Branca, assim como nas demais remanescentes do bioma. Acessíveis a qualquer um que queira vê-las, tocá-las, apreciá-las.
A reportagem é de Ana Lúcia Azevedo, publicada pelo portal O Globo, 20-06-2015.
Estudos recentes sobre a Mata Atlântica traçam um cenário de céu e inferno. Descobriu-se que, uma vez destruída, a mata leva até dois mil impossíveis anos em escala de vida humana para recuperar a biodiversidade. Porém, a plenitude de algumas dessas gigantes aponta caminhos para restaurar aquele que é considerado um dos mais ricos biomas do mundo, essencial para a existência da água que abastece Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e outros tantos estados do Brasil. Uma floresta que integra o sistema de controle do clima regional e, mesmo reduzida a menos de 8% do tamanho pré-Descobrimento, fornece ativos com aplicação farmacêutica e biotecnológica.
A sobrevivência das gigantes das florestas cariocas resulta da peculiar combinação de tradições religiosas, superstição e, no fim das contas, uma mistura de pragmatismo com certa dose de preguiça. Estudo do grupo de Rogério Ribeiro, pesquisador do Departamento de Geografia da PUC-Rio, revela a mão do acaso na salvação de figueiras, jequitibás, jatobás que ainda vivem em lugares como as matas junto à Vista Chinesa e ao Cristo Redentor. Árvores com fôlego para superar os 30 metros de altura e séculos de frondosa resistência.
UM CASO EXEMPLAR
O caso da Floresta da Tijuca é exemplar. Notoriamente replantada no trabalho do major Manoel Gomes Archer que beirou o heroísmo, ela também abriga gigantes nascidas antes de o major vir ao mundo e D. Pedro II mandar a recuperar a floresta para salvar o Rio da falta d’água nos anos 1860. De fato, pelos cálculos de Ribeiro, Archer e os escravos que trabalharam com ele plantaram 105 hectares — o que não é pouco. Mas a natureza fez a maior parte do restante, mesmo se forem levados em conta os esforços de sucessores de Archer, como o Barão d’Escragnolle. E a natureza pôde cobrir suas cicatrizes, em parte, porque árvores nativas como as figueiras ainda estavam lá.
A salvação das figueiras é obra do Divino. As figueiras estão na tradição religiosa cristã e africana, explica Rogério Ribeiro. Daí que cortá-las era um passo para a danação.
— No Evangelho de São Marcos há um trecho que menciona o fato de Jesus ter secado as figueiras que não davam frutos — diz ele. — Por muito tempo, se considerou péssima ideia tocar em figueiras; na verdade, tocá-las era um passo para a maldição. Fazendeiros e carvoeiros derrubavam vastas áreas, mas muitas vezes poupavam as figueiras.
Já na tradição religiosa trazida pelos africanos, a figueira não é temida, mas querida. É associada a Iroko, um orixá muito antigo no candomblé ketu. Segundo algumas tradições, seria a primeira árvore a ter sido plantada. Em outras, ele habitaria a árvore que no Brasil seria a gameleira ou figueira-branca. Há várias concepções. Em todas, a presença do sagrado.
As árvores de origem de todas essas crenças são de espécies africanas ou do Oriente Médio e Europa. Mas isso não fez muita diferença por aqui.
— Claro que se tratam de figueiras de espécies distintas das que existem aqui. Mas essa diversidade botânica nunca interessou aos colonos e fazendeiros de origem portuguesa e tampouco aos escravos africanos. Figueira era figueira e ponto. A maioria é muito parecida — explica Ribeiro.
Os escravos africanos foram ainda os responsáveis pela proliferação de plantas bem menores, mas muito conhecidas, como as espadas-de-São-Jorge (e de Iansã), comigo-ninguém-pode e bastões-de-Xangô. Todas plantas africanas com mudas trazidas da África pelos escravos.
— Eram vistas como sagradas e se adaptaram muito bem à Floresta Atlântica. Hoje, são tão comuns que muita gente as imagina como nativas. Na verdade, são estrangeiras que se sentem em casa. E é errado tratá-las como invasoras, porque não fazem mal algum à mata e estão em equilíbrio — observa Ribeiro.
TAMANHO PROTEGEU JATOBÁS E JEQUITIBÁS
Outras árvores de grande porte, como jequitibás e jatobás centenários, foram salvas pelo próprio tamanho.
— Muito do desmatamento não foi feito apenas para a lavoura. A fabricação de carvão vegetal, que fornecia considerável parte da energia do Rio, dependia do abate das árvores das florestas dos maciços da Tijuca e da Pedra Branca. Porém, para queimar a lenha e fazer carvão era melhor usar árvores menores, fáceis de abater, em vez de uma gigante, principalmente se esta ficasse nas partes mais elevadas das encostas — explica o pesquisador.
Derrubar um jequitibá de 20, 30 metros implicava em cortar as toras e trazer tudo para as partes mais baixas, onde ficavam as carvoarias. Estas eram estruturas rudimentares, arredondadas e insalubres, cujos vestígios são encontrados em triste profusão logo abaixo do subsolo das florestas do Rio. Estão por toda parte. Uma carvoaria descoberta recentemente fica na trilha que leva o nome de um jequitibá milenar e morto há alguns de velhice, a cerca de um quilômetro da estrada para a Vista Chinesa.
— Havia muitas carvoarias. Foram essenciais para a cidade por séculos. Descobrir seus restos, porém, não é nada fácil. Os carvoeiros que trabalharam nessas florestas até mais ou menos a reforma de Pereira Passos (na primeira década do século XX) tinham uma vida miserável e deixaram poucos vestígios — conta Ribeiro.
A análise do carvão encontrado nesses sítios arqueológicos, todavia, tem contribuído para reconstituir a paisagem da floresta do passado e descobrir que árvores menores, hoje desaparecidas, foram torradas para fornecer energia à cidade.
Nem todas as gigantes são sobreviventes da velha floresta. Algumas são pioneiras dos primeiros tempos da restauração e hoje exibem copas quase tão frondosas quanto suas vizinhas mais antigas. Dentre essas espécies estão o jacatirão e a carrapeta, importantes para o estabelecimento do que a ciência chama de floresta secundária, uma mata sem a riqueza biológica da antecessora, mas já capaz prestar serviços ambientais essenciais, como a manutenção de mananciais.
— Todas têm um papel relevante. O papel das figueiras para a fauna é imenso. Mas as pioneiras criam condições para a volta de outras espécies — frisa Ribeiro.
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Estudo revela que árvores gigantes cariocas foram preservadas por razões religiosas e práticas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU