13 Junho 2015
Pessoa e dignidade pessoal tornaram-se, especialmente nas últimas décadas, uma referência essencial, à qual tanto as éticas de inspiração religiosa quanto as laicas apelam para dar fundamento aos direitos humanos.
A análise é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas. O artigo foi publicado na revista Il Gallo, de junho de 2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O debate sobre a Constituição, sobre a sua atualidade e sobre os seus limites assumiu nas últimas décadas, na Itália, tons cada vez mais acesos. O objeto da discussão foi (e é) sobretudo a segunda parte da Carta – a relativa à ordenação institucional do Estado nas suas diversas articulações e as relações entre os diversos poderes, além das funções que competem às várias entidades públicas e privadas que têm um papel socialmente relevante –, que hoje, depois de quase 70 anos, nem sempre está em sintonia com as mudanças que ocorreram nesse meio tempo no âmbito da sociedade e que, portanto, parece ser merecedora de atualizações oportunas.
No entanto, existem (e são muitos) aqueles que – constitucionalistas, cientistas políticos, expoentes de partidos e cidadãos comuns – não se contentam com exigir que se redesenhe o quadro institucional, para assegurar sobretudo mais rapidez processual e mais governabilidade, mas, mais radicalmente, também tendem a pôr sob processo os princípios da primeira parte da Constituição, considerados anacrônicos, por estarem ligados a uma época ainda fortemente ideológica como a do imediato último pós-guerra.
A gênese da Carta constitucional
Mas é realmente assim? Trata-se de uma Carta militante, que assume uma visão do mundo partidária, portanto, não objetiva nem neutra, destituída de toda possibilidade de universalidade?
Para responder a essa interrogação, acima de tudo, é necessário levar em consideração o contexto histórico em que a Constituição nasceu. De fato, estamos na presença de um momento totalmente singular. A Itália acaba de sair de um longo e atormentado período, cheio de eventos difíceis e trágicos – a ditadura fascista, a guerra, a resistência – que marcaram profundamente as consciências e que ajudaram a favorecer, para além das diferenças ideológicas, a convergência em torno de valores comuns.
A Carta constitucional, portanto, é como que o fruto de um debate intenso entre posições políticas inspiradas em visões diferentes do mundo e da sociedade, que, no entanto, têm como denominador comum a proteção da liberdade e a busca da justiça; e que, por isso, reagem contra toda tentação autoritária e antidemocrática, e se comprometem em lançar as bases para a superação de todas as desigualdades.
Daí deriva, como consequência imediata, o abandono tanto de uma concepção rigidamente individualista do homem, que acaba por ocultar a sua dimensão relacional constitutiva e, portanto, social, quanto de uma concepção coletivista, que leva à rejeição da singularidade do sujeito humano, ou seja, ao não reconhecimento da sua unicidade e irrepetibilidade.
A pessoa e a sua dignidade no centro
A visão antropológica à qual a Constituição se refere, por isso, tem o seu epicentro na atribuição do primado à pessoa e na ênfase da sua dignidade, que não pode ser espezinhada por nenhuma razão. A ênfase posta na pessoa, em que a dimensão individual se entrelaça com a relacional e social, permite mediar corretamente o respeito das exigências subjetivas – a pessoa é, acima de tudo, indivíduo, isto é, sujeito autônomo e independente – que exigem a criação de garantias pelas quais seja assegurada a cada um a possibilidade de se realizar em resposta à própria vocação – com o respeito pelas exigências de caráter social –, a pessoa é ser de e em relação, que, por isso, só se compreende e se realiza na relação com o outro e com os outros – que reivindicam a presença de ordenamentos inspirados na justiça e na solidariedade, capazes de salvaguardar a dignidade de todos.
O conceito personalista adotada pela Carta, depois, é desenvolvido com coerência ao longo de todo o caminho em que se articula a proposta de valor – porque se trata de valores, em última análise – que é o conteúdo fundamental da primeira parte do texto constitucional.
É significativo, a esse respeito, o perfeito equilíbrio com que são integrados entre si os direitos individuais e os direitos sociais, a atenção à proteção da liberdade de expressão de cada um – liberdade de pensamento, de opinião, de religião etc. – e o reconhecimento de que existem instâncias fundamentais que devem ser absolutamente satisfeitas, porque representam o pressuposto irrenunciável para o exercício efetivo da cidadania.
Dois exemplos de confirmação
A essa última instância refere-se o artigo 3 do texto constitucional, em que, depois de afirmar a igual dignidade e a igualdade de todos perante a lei, salienta-se que cabe à República remover os obstáculos de ordem econômica e social, que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país". Isso lanças as bases do nascimento do Estado social, que dá pleno cumprimento ao Estado de direito, pois confere, nos fatos, a todos, a faculdade de exercer plenamente a liberdade.
Mas a aplicação do paradigma personalista não para aqui. Ela encontra mais uma (importante) confirmação no equilíbrio das exigências derivantes do princípio de solidariedade com aquelas ligadas ao princípio da subsidiariedade.
A arquitetura que sustenta as relações entre as diversas instituições que fazem parte do Estado prevê uma ampla descentralização dos poderes, voltado a favorecer a participação a partir de baixo. Tradução operacional do princípio assinalado é a forte valorização da sociedade, em todas as suas articulações: a Carta deixa espaço às agregações que vão se construindo espontaneamente a partir da livre iniciativa dos indivíduos e dos grupos sociais, sem negar, por isso, a função do Estado ou reduzi-la a um simples fator residual.
A solidariedade, que representa o objetivo ao qual é preciso tender finalmente, portanto, não deve ser perseguida através de um processo de cima, que só pode ser impositivo e autoritário, mas através da solicitação e do envolvimento de todos, canalizando as energias de cada um na prossecução de objetivos comuns.
As possíveis mudanças
Pessoa e dignidade pessoal tornaram-se, especialmente nas últimas décadas, uma referência essencial, à qual tanto as éticas de inspiração religiosa quanto as laicas apelam para dar fundamento aos direitos humanos.
Isso dá razão do valor não totalmente contingente da Constituição, que, no entanto, embora documento de autoridade, não deve ser sacralizada, permanecendo, em todo o caso, também na primeira parte, coo um texto histórico, nascido em um contexto sociocultural específico e, portanto, condicionado pelas exigências daquele contexto particular.
A necessidade de se ater a critérios de prudência e de discrição ao empreender todo ato de reforma – e isso especialmente hoje, dada a perda de evidências éticas comuns – não pode ignorar a existência de limites devidos à situação diferente que foi surgindo enquanto isso.
Basta recordar aqui, por exemplo, três âmbitos que merecem ser integrados com dispositivos mais amplos e mais detalhados: o dos direitos dos imigrantes, que devem ser especificados com maior pontualidade – a Itália, na época, era um país de emigração! – ao dos direitos ambientais – a crise ecológica, naquele tempo, ainda era pouco percebida – até o (não último em ordem de importância) da informação, a propósito do qual estávamos naqueles anos bem distantes da atual situação de multimedialidade, existindo como instrumentos de comunicação social apenas a imprensa e o rádio.
Certamente não faltam na Carta as diretrizes de fundo para enfrentar tais questões, mas não se pode negar que a diversidade das situações impõe a introdução de regras mais capazes de interpretar os processos em curso e, consequentemente, mais eficazes.
O que deve ser decisivamente rejeitada, em todo o caso, é a introdução de modificações radicais que acabem traindo o seu espírito, que conserva, ainda hoje, uma atualidade plena e, portanto, deve ser conservado como um tesouro precioso, se pretendermos contribuir para o desenvolvimento de uma convivência civil livre e solidária.
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Por uma convivência solidária. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU