09 Junho 2015
O padre Paolo, o estrangeiro totalmente em casa na Síria, por causa da sua fé cristã, aprendeu a doçura infinita de Jesus de Nazaré, que sempre se definiu como filho do homem.
A opinião é do médico e padre Antoine Courban, professor da Universidade São José de Beirute, no Líbano, em artigo publicado no jornal Avvenire, 06-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Eu venho do coração do Levante árabe. As nossas sociedades não estão secularizadas como as suas. Depois de 14 séculos, apesar das dificuldades, o viver juntos multirreligioso e multicultural operou uma espécie de osmose inconsciente, que permite afirmar hoje que "eu não seria o cristão que sou sem a parte de Islã que está em mim", mas também "não seria o muçulmano que sou sem a parte de cristianismo que está em mim".
Isso se tornou possível porque os cristãos de diferentes tradições litúrgicas se apropriaram, depois de muito tempo, da língua árabe e a protegeram. No Levante árabe, não é só a língua do Alcorão, mas também a de todas as liturgias cristãs. Rezar e louvar a Deus na mesma língua é um autêntico sucesso cultural, testemunho, para os cristãos, do gênio da Encarnação.
Rezando pelo rápido retorno do padre Paolo Dall'Oglio para os seus entes queridos, na Síria e não só, exprimo o desejo de que essa osmose possa ser compartilhada e vivida pelas futuras gerações.
Não vou falar de política. Sou um cidadão libanês. A situação síria diz respeito a mim, em primeiro lugar, no plano humanitário e no do viver juntos, entre cidadãos de religiões e culturas diferentes. O meu país, o Líbano, acolhe atualmente um milhão e meio de refugiados sírios diante de uma população total libanesa de quatro milhões.
A violência mais extrema tem limites. O mal sempre terá fronteiras. Só o bem permanece infinito. Hoje, nós podemos ir até as fronteiras do mal, usar toda violência, destruir tudo. Mas, amanhã, o que faremos?
Amanhã, só poderemos recomeçar a viver juntos: porque somos homens, portanto, trazemos em nós, como sinal do divino, "o gosto inato do bem, do verdadeiro e do belo", como disse o Papa Bento XVI no Palácio Presidencial de Beirute, em setembro de 2012.
Para falar deste Oriente, que é o do padre Paolo Dall'Oglio, quero prestar homenagem à sua obra como testemunho em favor do humanismo integral, nem teocêntrico, nem antropocêntrico. Um humanismo em que o homem não é escravo de Deus nem o seu rival. O humanismo integral, na fidelidade à Encarnação, reconcilia no homem o céu e a terra, e é a pedra angular da ordem política de amanhã em um mundo abalado pela espiral do ódio.
Hoje, é o ódio que parece dominar. A maioria das ideologias contemporâneas são utopias negativas, inspiradas pelo ódio. Todos os antropólogos e os psicólogos conhecem o caráter inicial do ódio sob a forma de "narcisismo primário", fase inicial e indispensável do desenvolvimento do indivíduo. Portanto, hoje, a longa aprendizagem da alteridade e a sua humanização parecem se atenuar. O ódio não se envergonha mais de se esconder atrás de belos discursos, parece quase ter se tornado o princípio de uma moral nova: "Odeio, logo existo".
A primeira vez que ouvi falar do padre Paolo foi no ano 2000, em Aleppo. Eu me encontrava com um amigo aleppino, uma pessoa de grande cultura, um muçulmano piedoso e sincero. Tomávamos uma xícara de chá no Portão de Antioquia, quando, conversando, ele me falou da sua visita ao mosteiro de Mar Musa e do seu encontro com o padre Dall'Oglio.
Ele me disse: "Fiquei surpreso ao me sentir à vontade com ele, assim como com você. Não havia nenhum sinal nele daquela barreira que eu percebo quando encontro um cristão não oriental". O que surpreendeu mais o meu amigo foi que Paolo conseguiu se impregnar do espírito do Levante, instalando-se no deserto, em um mosteiro profanado que ele tinha transformando em uma fortaleza do diálogo, da tolerância, da reconciliação e do amor pelo outro.
Esse meu amigo muçulmano não conhecia o "Livro da Consolação" de Isaías: "Uma voz grita: 'Abram no deserto um caminho para o Senhor; na região da terra seca, aplainem uma estrada para o nosso Deus. Que todo vale seja aterrado, e todo monte e colina sejam nivelados; que o terreno acidentado se transforme em planície, e as elevações em lugar plano. Então se revelará a glória do Senhor, e todo o mundo junto a verá, pois assim falou a boca do Senhor" (Is 40, 3-5).
Deserto, boca e carne estão aqui associados. O deserto, o midbar das antigas línguas semíticas, como o hebraico, é o espaço árido ou o do caos primitivo, mas também a boca como lugar da palavra. No midbar/deserto/boca, a Palavra transforma o caos da natureza em um cosmos articulado.
Tendo que enraizar a obra do padre Paolo Dall'Oglio em uma tradição, está será, então, a que se origina de um dos textos mais belos do cristianismo, a Carta a Diogneto, escrita a esse amigo pagão por um cristão anônimo da Síria de dois mil anos atrás. para lhe falar daquele cristianismo que este definia como "superstição".
Os cristãos, naquele tempo, eram muito poucos, viviam em um contexto hostil que os perseguia. O cristianismo que essa carta revela é, acima de tudo, uma disposição aberta ao Outro, a todos os outros. O grupo cristão, naqueles tempos distantes, não era uma minoria alucinada com a obsessão identitária e preocupada com as migalhas de poder que a maioria podia lhes conceder: "A alma é nos corpos aquilo que os cristãos são no mundo". A única preocupação é manter a coesão dos corpos, fazer de tudo para que todos, compondo-o harmoniosamente, empenhem-no pelo bem comum.
É aquilo que o padre Paolo chamava de "viver pessoal e individualmente o próprio batismo". Os cristãos da Carta a Diogneto não reivindicam para si mesmos qualquer distinção específica: "Não se distinguem do resto dos homens nem pelo seu país, nem pela sua língua, nem pelas suas formas específicas de viver: eles não têm outras cidades que as suas, não têm outra língua que a sua, nem hábitos singulares": onde eles vivem, "eles se conformam com os usos que encontram estabelecidos, mas põem diante dos olhos de todos o surpreendente espetáculo da sua vida difícil de acreditar".
Assim era para o padre Paolo, o estrangeiro totalmente em casa na Síria, por causa da sua fé cristã, que fez com que ele aprendesse a doçura infinita de Jesus de Nazaré, que sempre se definiu como filho do homem.
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Dall'Oglio, a fé do deserto. Artigo de Antoine Courban - Instituto Humanitas Unisinos - IHU