Por: André | 08 Junho 2015
“Estou plenamente convencido de que por motivo algum do mundo o Papa Francisco o teria nomeado para uma missão que seria impossível cumprir e que precisaria fazê-lo sofrer muito. Isso seria torturante. Algo totalmente contrário à ternura do Papa. Penso que no dia em que o Papa se der conta disso ele vai sofrer e, de uma forma ou de outra, vai sentir a necessidade de tirá-lo de Osorno e pedir a sua renúncia. Como penso isso, acho que seria muito melhor apresentar a renúncia antes que chegue a pedir-lhe para que a apresente.”
O pedido de renúncia é do bispo emérito do Chile, Juan Luis Ysern de Arce, em carta aberta ao bispo de Osorno, Juan Barros de Madrid, publicada por Reflexión y Liberación, 31-05-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a carta.
Santiago, 31 de maio de 2015.
Dom Juan Barros Madrid
Bispo de Osorno.
Querido Irmão Juan:
Decidi escrever-lhe esta carta que, embora seja pessoal, quero também torná-la pública, porque, tendo-me referido a você em algumas entrevistas concedidas aos meios de comunicação social, discordando eu do seu modo de pensar, não quero, de modo algum, que alguém pense que tenho alguma coisa contra você. Nada seria mais falso do que isso. Além disso, devo agradecer-lhe a deferência e a amabilidade com que sempre me tratou. Tenho que reconhecê-lo e manifestar-lhe a minha gratidão.
Produz em mim grande dor pensar que está sofrendo muito e que minhas expressões tenham contribuído para aumentar o seu sofrimento. Deste modo, sofremos os dois. Sinto-me unido a você na angústia que, com certeza, está vivendo. O contrário seria pensar que não é uma pessoa humana.
Mais, quando disse certa vez que eu, caso estivesse na sua situação, apresentaria a renúncia ao ministério pastoral que o Papa lhe recomendou, não o disse pensando somente no sentido de evitar a confusão das pessoas, mas também pensando em você mais do que pode imaginar, isto é, pensando na maneira de evitar a angústia que a situação lhe produz. É algo desumano que Deus não quer nem para você nem para as fiéis.
Vou lhe contar algo que muito poucos sabem. Houve um momento da minha vida, pouco tempo depois de ser nomeado bispo, estando em Calama, em que renunciei, não a Calama, mas, mais radicalmente, ao próprio episcopado. Sim, pedi ao núncio, dom Sotero Sanz, e ao presidente da Conferência Episcopal, o cardeal Silva, para que me livrassem do Episcopado. Teria ficado como emérito de imediato para continuar exercendo o mau trabalho como sacerdote. Nunca me disseram por que não me fizeram emérito.
Cheguei a Calama um ano antes do golpe militar. Pouco tempo antes, começou uma experiência de padres operários em Chuquicamata. Estes padres operários formavam uma equipe na qual se encontravam alguns destacados teólogos. Trabalhavam na mina e, ao mesmo tempo, realizavam um processo de reflexão teológica que me parecia seguido com muita profundidade, inclusive em consulta a Karl Rahner, que era um teólogo muito querido e admirado por mim e que, como é do conhecimento de todos, teve uma grande participação no Concílio. Mas, o padre ideólogo desta experiência tinha uma psicologia muito difícil e complicada, de modo que se tornou insuportável para os outros padres da pastoral ordinária.
Os padres da pastoral ordinária vieram da Espanha, assim como eu, e eram muito queridos pela população, dada a grande entrega com que exerciam o seu ministério. Mas a divisão entre os dois grupos de padres era muito grande. Asseguro-lhe que a minha maior preocupação era encontrar caminhos para a superação dos conflitos, mas não fui capaz disso e os padres da pastoral ordinária me propunham a seguinte questão: como era impossível continuar em Calama com este padre ao qual me referi como ideólogo da experiência, me disseram que, se não expulsasse esse padre, eles tomariam a decisão de deixar a diocese. Respondi dizendo que não podia expulsar um padre por pressão de outros. Diante disso, eles se foram. Você pode imaginar a situação que se produziu. As pessoas viam o problema como uma situação na qual eu tinha que escolher entre alguns padres em detrimento de outros, e neste contexto não era compreensível que eu tivesse preferido ficar com os padres operários, cujo trabalho não era compreendido e que não atendiam a pastoral ordinária.
A reação das pessoas contra mim foi grande. Por outro lado, eram grandes os esforços que eu tinha que fazer para atender tanto batizados como casamentos e funerais procurando ao mesmo tempo visitar os fiéis e participar das reuniões nas quais me reprovavam continuamente pelo fato de que tivesse permitido a saída dos padres que eles conheciam e queriam.
A situação era tão complicada que me vi obrigado a pedir aos padres operários que suspendessem por alguns meses a experiência que estavam realizando. Alguns dias depois aconteceu o golpe militar. O panorama mudou radicalmente, mas a tensão que vivia era muito pior, porque se tratava da vida das pessoas e de imediato chegou a caravana da morte. Terrível. Muito terrível. Minha angústia era muito grande.
É impossível contar aqui a história, mas o que tenho muito claro é que apesar da situação que estava vivendo tive uma possibilidade real de diálogo com as comunidades e pouco tempo depois via que tínhamos uma confiança mútua e éramos amigos sinceros. De tal forma que quando, alguns meses depois, se tornou pública a minha nomeação como bispo de Chiloé as pessoas não podiam acreditar que eu fosse embora dali. De imediato eu me escondi e não apareci até o dia em que fiz a entrega do cargo ao meu sucessor, dom Oviedo, que sendo arcebispo de Antofagasta, encarregou-se também de Calama como Administrador Apostólico.
Na mesma longuíssima missa, porque na oração dos fiéis houve mil intervenções e cada uma era um discurso pedindo-me perdão publicamente porque pensavam que me transferiam porque eles tornaram a minha vida insuportável com a saída dos padres da pastoral ordinária. Foi uma missa de muitas lágrimas e calorosos abraços no final, na porta. A noite estava avançando e no dia seguinte, de madrugada, saí de forma definitiva. Estive em Calama dois anos, um ano antes do golpe e outro depois. Anos muito intensos nos quais vivi os maiores sofrimentos da minha vida.
E quando disse que “eu, na sua situação, renunciaria” não o disse com o desejo de molestá-lo, pelo contrário. Foi o que eu fiz em outro tempo e penso que é o meio para evitar o sofrimento das pessoas e o seu sofrimento, querido Juan, que, eu sei, é um sofrimento muito grande.
Não vejo que em Osorno se tenham aberto canais de diálogo e, sendo assim, o sofrimento das pessoas continua e o seu também. Repito, eu renunciaria. Não o digo para atacá-lo, mas porque o sofrimento que vive não o desejo a ninguém.
É bonito o raciocínio que faz quando diz que seu dever é cumprir com o encargo que o Papa lhe encomendou. Mas, considero que, segundo o que entendi, o Papa se manteve firme no sentido de ter examinado com sinceridade seus antecedentes e não ter encontrado fundamento para não nomeá-lo bispo de Osorno. O Papa foi muito corajoso. Eu o admiro muito. Mas considero que o Papa não se pôde dar conta de que no Chile há diversos tipos de vítimas de Karadima. Você pertence a um desses tipos e a própria Igreja no Chile é uma vítima de Karadima. Isto faz sofrer a todos e você não pode desconhecer que pertence a um dos tipos de vítimas. Essa marca você a tem e ela o acompanhará para onde for.
Sabemos que o Papa é um grande sinal que torna presente no mundo a ternura de Deus. Estou plenamente convencido de que por motivo algum do mundo o teria nomeado para uma missão que seria impossível cumprir e que precisaria fazê-lo sofrer muito. Isso seria torturante. Algo totalmente contrário à ternura do Papa. Penso que no dia em que o Papa se der conta disso ele vai sofrer e, de uma forma ou de outra, vai sentir a necessidade de tirá-lo de Osorno e pedir a sua renúncia. Como penso isso, acho que seria muito melhor apresentar a renúncia antes que chegue a pedir-lhe para que a apresente. Repito mais uma vez. Este é o meu modo de pensar, de acordo com o que vivi e fiz.
Ao lhe dizer essas coisas, querido Juan, não me tome como adversário, por favor, mas como um irmão que, com sinceridade, lhe diz as coisas buscando o seu bem e o de todos, o que creio que é a vontade de Deus.
Finalmente, outra coisa que me parece importante. Em situações como essa que está vivendo, os mecanismos interiores levam a pessoa a considerar que quem é a favor são os bons e os que são contra são os maus. Isso é falso. Em todos os lugares o trigo está misturado com o joio. Se descobrir pessoas boas de um lado e de outro poderá encontrar caminhos muito interessantes para cada passo.
Posso contar-lhe que quando coube a mim viver o problema da profunda divisão entre os padres operários e os padres da pastoral ordinária eu via que em cada um dos lados havia padres que considerava muito bons, a quem eu queria e sigo querendo muito. Inclusive via que havia pessoas que ficavam desconcertadas, porque não entendiam que eu pudesse entender e defender atitudes de pessoas que elas consideravam estar contra mim. Mas, com isso, outros começaram a entender que eu não estava contra ninguém.
Juan, renunciando à potestade, adquirirá autoridade e paz. Da minha parte, posso dizer-lhe que a renúncia que apresentei no começo do meu ministério episcopal, voltei a apresentar novamente ao completar os 75 anos, já há 10 anos. Mas, dessa vez, a minha renúncia foi aceita. Com alegria continuo realizando o trabalho pastoral e me sinto muito próximo das pessoas que, nesse cuidado pastoral, Deus coloca no meu caminho. Asseguro-lhe: ser emérito não impede de ser feliz. De verdade. Sou feliz.
Me alonguei muito. Não me alongo mais. Não sei qual será a sequência dos acontecimentos, mas seja como for, conta com a minha oração e afeto.
Um abraço muito grande, querido Juan. Hoje, na festa da Santíssima Trindade. Deus é Comunhão de Pessoas. Deus é Amor.
+ Juan Luis Ysern de Arce
Bispo emérito de Ancud
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Carta ao bispo Juan Barros Madrid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU