18 Mai 2015
“Como se pode esperar um bom resultado desse processo socioeducativo tão deficiente? É claro que não virá”. A frase do promotor de justiça Tiago de Toledo Rodrigues resume a situação nas unidades da Fundação Casa, responsável pela ressocialização de menores infratores de São Paulo. O diagnóstico do promotor da Infância e Juventude da capital paulista é feito com base em uma investigação de oito meses do MP, que mostra um cenário de superlotação, internações curtas e alto índice de reincidência entre os menores.
A reportagem é de Renan Truffi, publicada por CartaCapital, 14-05-2015.
O relatório, ao qual CartaCapital teve acesso, vem a público em meio ao avanço da pauta da redução da maioridade penal no Congresso e ajuda a fazer um retrato da situação brasileira. Mesmo sendo considerado o melhor estado do País pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na aplicação de medidas para adolescente, São Paulo tem uma situação precária na Fundação Casa, segundo avaliação do Ministério Público.
Para Rodrigues, este cenário dificulta o debate a respeito da eficácia dos mecanismos que cuidam dos adolescentes infratores, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). “Nós não podemos dizer que essas ferramentas à disposição da sociedade para o controle de criminalidade, de violência, manutenção da segurança e da paz não são eficientes", afirma. "Nós só podemos questionar os mecanismos que o ECA e o Sinase nos fornecem quando eles forem, de fato, postos a prova”, afirma.
Os dados mostram uma situação ruim. De acordo com o relatório do Ministério Público, das 38 unidades da Fundação Casa na capital paulista, 27 estavam, em março, com número de menores superior à capacidade original. A instituição, sob controle do governo Geraldo Alckmin (PSDB), alega que uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) permite a acomodação de 15% a mais de adolescentes em cada uma das unidades. Ainda assim, mesmo se desconsideras as unidades que estão dentro da margem estabelecida pela Justiça, o número de unidades superlotadas chega a 20 na cidade.
Por conta disso, muitos menores são obrigados a dormir em colchões no chão, um encostado no outro, para que todos caibam nos dormitórios. “Será que é possível garantir a segurança, a integridade física e a dignidade sexual de adolescentes num ambiente em que deveriam ter 170 menores e estão 259?”, questiona o promotor ao citar a situação na “Casa Topázio”, localizada na região do Brás, centro de São Paulo.
A superlotação explica, segundo os promotores, outra situação diagnosticada nos oito meses de análise. O alto número de menores na instituição tem feito com que os adolescentes fiquem internados por períodos mais curtos. Dos 1232 casos de internação contabilizados nas unidades da capital, entre agosto de 2014 e março deste ano, 89,6% (1.104) não passaram mais de 12 meses na Fundação Casa. E apenas cinco adolescentes passaram mais do que dois anos em processo de ressocialização.
Para a Promotoria da Infância e Juventude da Capital, a Fundação Casa pode estar recomendando a liberação de menores infratores mais cedo para evitar o colapso do sistema. “A superlotação inquestionavelmente gera necessidade de abertura de vagas. É preciso abrir vagas para demanda crescente e existente. Isso pode estar influenciando e essa é uma das linhas investigativas do Ministério Público”, diz o promotor de justiça Tiago de Toledo Rodrigues.
Reincidência e semiliberdade
O Ministério Público ainda produziu uma lista com os atos infracionais mais praticados pelos menores na capital paulista no período entre agora de 2014 e março deste ano. O roubo circunstanciado, ou roubo qualificado, é o ato que aparece em primeiro, por representar 53,2% (1.793) do total de atos infracionais. Em seguida, vem o tráfico, que corresponde a 23,1% (779) dos casos. Juntos, crimes de estupro, latrocínio e homicídio representam 3,1% dos atos.
A superlotação e consequente “liberação” dos menores antes de um trabalho de ressocialização completo também tem feito o Ministério Público desconfiar do índice de reincidência apresentado pela Fundação Casa. Atualmente, a instituição diz que aproximadamente 15% dos menores que já foram internados na Fundação Casa alguma vez voltam ao sistema. Por isso, o MP também monitorou a reincidência dentre os casos registrados em unidades da cidade de São Paulo no período da investigação.
Para isso, o órgão contabilizou não apenas os internados, como faz a Fundação Casa. E sim qualquer caso de menor que foi autuado, mais de uma vez, cometendo atos infracionais. Assim, os promotores constataram que, no período analisado, 34% dos menores já foram flagrados mais de uma vez cometendo atos como roubo, tráfico ou furto, entre outras possibilidades. Agora, especificamente entre os menores que acabaram sendo internados pela Justiça, 50,5% voltaram a cometer algum ato infracional.
“Aquilo que a Fundação Casa vem divulgando com o nome de reincidência não é reincidência. Aquilo é única e exclusivamente uma suposta reiteração de medida socioeducativa de internação", afirma o promotor. "Isso significa que um adolescente foi internado e, depois de solto, cometeu outro ato infracional que levou à internação”, critica Rodrigues. “Esse índice do MP é verdadeiramente um índice de reincidência. Significa o quê? Que são adolescentes que praticaram um ato infracional após o trânsito em julgado pela prática de um ato infracional anterior”, complementa.
A presidente da Fundação Casa, Berenice Gianella, questiona a cientificidade metodológica do material produzido pelos promotores e explica que o índice de reincidência da instituição leva em conta apenas os internados porque o órgão não é responsável pela aplicação de outros tipos de medida socioeducativa, como liberdade assistida ou prestação de serviços comunitários.
Reduzir a maioridade penal?
Para Tiago de Toledo Rodrigues, o alto índice de reincidência verificado pelo MP não deve ser justificativa para reduzir a maioridade penal, justamente porque o número revelaria a ineficiência do sistema na prática. “Nós temos um retrato claro, uma fotografia clara, de que o trabalho socioeducativo deixa muito a desejar”, diz. “Com um serviço socioeducativo que atendas aquelas regras e qualificações e que seja de fato qualitativo, aí sim vamos fazer um diagnóstico dos resultados e avaliar com critério, com fundamento, a necessidade de mudança [da idade penal]”, conclui.
Outro aspecto que reforça a tese do MP é o pequeno número de menores encaminhados, nos oitos meses de investigação, para semiliberdade, quando o adolescente tem que pernoitar na Fundação Casa. Enquanto foram registrados 1.232 casos de internação e 899 de liberdade assistida (no qual um orientador voluntário monitora e auxilia atividades do jovem), apenas 271 processos passaram pela semiliberdade. O que quer dizer que boa parte dos menores internados são beneficiados, na maioria dos casos, com liberdade assistida, em vez de semiliberdade para um melhor acompanhamento da ressocialização. De acordo com o MP, essa é uma ferramenta que o Estado deixa de fomentar e utilizar por conta do investimento necessário em unidades específicas para isso.
Gianella, da Fundação Casa, rebate o argumento. Ela afirma que o ECA e o Sinase não trabalham com o conceito de progressão de medida socioeducativa, como acontece no sistema prisional adulto. A presidenta da Fundação Casa diz ainda que várias casas de semiliberdade foram fechadas no Estado recentemente porque o Poder Judiciário não encaminha menores para esse tipo de medida.
Além de Tiago de Toledo Rodrigues, participam da investigação do MP os promotores Pedro Eduardo de Camargo Elias, Fábio José Bueno, Daniela Hashimoto, Santiago Miguel Nakano Perez e Fabíola Aparecida Cezarini.
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O que os dados da Fundação Casa dizem sobre a maioridade penal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU