Por: Jonas | 29 Abril 2015
“Não sei se um cristão tem o direito de matar. Tem, sim, a obrigação de morrer por seus irmãos. Sentimos medo da violência por uma atitude individualista. Ficamos escandalizados porque colocam uma bomba em um oligarca e não porque todos os dias uma criança morre de fome.” (Padre Mugica)
Onze de janeiro de 1970, revista Siete Días: as palavras do padre Carlos Mugica Echagüe martelavam contra a elite militar e econômica que governava o país. Ruivo, alto, olhos azuis, de família conservadora, casaco preto, camisa de gola alta, jeans desgastados, Mugica era um filho do sistema, um garoto privilegiado da Rua Arroyo, com viagens de juventude à Europa, que havia decidido mudar de lugar. Agora, aos 39 anos, professor de Teologia da Universidade jesuíta del Salvador e membro da Pastoral das Villas de Emergência, na Villa 31 de Retiro. No mandato de “amar ao próximo”, sem se desprender do Evangelho, denunciava a violência institucionalizada, “a violência da fome”.
Fonte: http://goo.gl/1cOfOF |
A reportagem é de Marcelo Larraquy, publicada pelo jornal Clarín, 26-04-2015. A tradução é do Cepat.
“Nós - dizia -, sacerdotes de Jesus Cristo, compreendemos que nosso lugar é junto aos pobres”.
Naquele momento, há quatro anos, governava o geral Onganía.
Perón estava proscrito. Havia sido derrotado em 1995 e vivia em Madri. Faltavam seis meses para que sequestrassem e matassem o general Aramburu, que havia comandado a conspiração e ordenado o fuzilamento de um grupo de civis e militares peronistas rebelados.
Mugica já conhecia alguns dos que participariam das mortes de Aramburu: Mario Firmenich, Fernando Abal Medina e Gustavo Ramus. Foi seu assessor espiritual no Colégio Nacional de Buenos Aires e haviam atuado juntos para atender aos madeireiros no norte de Santa Fé. Porém, na gestação da organização Montoneros, seus discípulos abandonariam Mugica, que não estava disposto a promover a luta armada.
Sim, estava disposto a morrer, “mas não a matar”, como expressaria. A organização Montoneros migraria para o grupo “Cristianismo e Revolução”, do ex-seminarista Juan García Elorrio.
No entanto, a afinidade pessoal seria mantida. Quando a polícia matou o executor de Aramburu, Fernando Abal Medina, em uma pizzaria de William Morris, Mugica, em seu funeral, definiu-lhe como “um mártir cristão”.
O bispado de Buenos suspendeu suas licenças administrativas por trinta dias. Mugica já fazia parte do Movimento Sacerdotes para o Terceiro Mundo (MSTM). A criação do MSTM o surpreendeu em Paris, no ano de 1968, onde foi estudar e também tomar distância. Durante esta viagem, participou das manifestações de rua do Maio francês, conheceu Perón, em Puerta de Hierro, e também viajou até a Escócia para assistir o Racing na memorável partida contra o Celtic.
“Dentro do MSTM, Carlitos era mais um. Não era o que mais falava, nem o que determinava, porque tomávamos decisões orgânicas por consenso. E havia muitíssimas personalidades com compromisso social e capacidades intelectuais, mas sua figura se destacava. Não era filho de um operador de telefone, era filho de um chanceler...”, disse ao jornal Clarín o padre Domingo Bresci, ex-membro do MSTM, que o conheceu no seminário de Villa Devoto, em 1956.
Em 1972, o MSTM debatia seu rumo entre o peronismo ou o “socialismo latino-americano”, e quando no marco dessa discussão interna se reuniram com Perón, no dia 6 de dezembro de 1972, e um padre lhe perguntou como se implementaria o socialismo em seu retorno ao poder, o General esclareceu que voltaria para conciliar as classes.
O país era um caos. As pessoas precisavam entrar em acordo ao invés de se radicalizar. Essa foi sua mensagem (de Perón). Entre todos os padres, em sua primeira viagem para Argentina, após 17 anos de exílio, Perón escolheu o mais carismático, o que mais e melhor chegava aos pobres das villas, aquele que havia dado visibilidade a sua causa, o que fascinava os meios de comunicação com sua palavra fulminante, crítica, irreverente. E também aquele que parecia não temer nada e ninguém. Já haviam colocado uma bomba na frente do local onde ele morava, em Gelly e Obes 2230, em meados de 1971. Sua família lhe pediu para que deixasse o país. Mugica preferiu ficar.
Desde então, as ameaças foram recorrentes. E respondia com uma frase que hoje já se tornou uma legenda. “Nada, nem ninguém, me impedirá de servir Jesus Cristo e sua Igreja, lutando junto aos pobres por sua Libertação. Se o Senhor me concede o privilégio, que não mereço, de perder a vida nesta tarefa, estou à sua disposição”. Por intermédio dele, Perón percorreu a Villa 31, de Retiro, e visitou a capela Cristo Operário.
A organização Montoneros também não queria perder o seu potencial político. Propôs que Mugica encabeçasse a lista de deputados para as eleições de março de 1973. Essa possibilidade também seduzia ao FREJULI, de Héctor J. Cámpora, candidato a Presidente. Mugica repassou a questão ao MSTM.
Organicamente, os padres terceiro-mundistas decidiram que não aceitariam cargos políticos. Perón, então, decidiu incorporá-lo no Ministério do Bem-estar Social, junto a José López Rega, para trabalhar como assessor – sem custo algum – nas villas. Mugica aceitou. Nesse dia, começou a morrer um pouco.
Sua relação com López Rega foi curta e terminou mal. Eram dois projetos, duas personalidades distintas. Só o peronismo conseguiu uni-las.
Inicialmente, Mugica preferiu trabalhar sobre a urbanização, com a construção de melhores moradias no bairro, e se opôs à mudança dos moradores para os complexos de moradia no subúrbio de Buenos Aires, que o ministério começava a construir por meio do “Plano Alvorada”.
Depois, Mugica aceitou a ideia de que se mudassem sempre e quando os moradores se organizassem em cooperativas e participassem da construção de moradias. López Rega preferiu a contratação de empresas privadas.
Em 28 de agosto de 1973, em uma assembleia do Movimento Villero Peronista (MVP), e a pedido deste, Mugica comunica sua renúncia ao cargo de assessor por discordâncias com López Rega, ao qual acusa de negar aos villeros “toda a participação criadora na solução de seus problemas”, mas aceitando incondicionalmente a liderança de Perón. No áudio da assembleia, que pode ser acessada pelo YouTube, ouve-se o grito “Mugica e Perón, um só coração”.
Posteriormente, López Rega semeou suspeitas sobre o padre pelo destino de 34 milhões previstos para o auxílio à Villa 31. Mugica foi ao Ministério repreendê-lo. Esse encontro lhe deixou a sensação de que López Rega poderia mandar a matá-lo. Foi o que comentou aos seus na paróquia.
Já em agosto de 1973, a relação entre os padres terceiro-mundistas e a organização Montoneros estava partida.
Se antes os padres, frente ao sequestro e crime de Aramburu, eram simpáticos a uma explicação política e não a uma condenação (ainda que sem avaliar a operação), agora, com o retorno de Perón e a vontade popular expressada, eram favoráveis a baixar as armas. Ao contrário, para a organização Montoneros o retorno de Perón ao poder não era o fim último de sua luta, mas, sim, a tentativa de estabelecer um plano próprio. “Se abandonarmos as armas, retrocederemos em posições políticas. O poder político brota da boca de um fuzil”, sustentava Firmenich.
Em consequência dessa diferença, “de aproximadamente quatrocentos padres do MSTM, quase todos ficaram com Perón. Entre quinze ou vinte, com a organização Montoneros e em apoio à continuidade da luta armada”, calcula o padre Bresci.
Mugica manifestaria sua posição em uma missa de celebração do aniversário da morte de Fernando Abal Medina, com uma citação da Bíblia. “É preciso deixar as armas e empunhar os arados”.
O crime do líder da CGT, José Rucci, três semanas depois, faria com que se separasse ainda mais de seus ex-discípulos do Colégio Nacional. “Não são os padres que se distanciam da Tendência (Peronista), mas, sim, a Tendência que se distancia de nós, como se distanciou do povo e do General Perón”, diria Mugica mais tarde, e criticaria os “falsos revolucionários” por não ser mais do que “uma expressão do liberalismo europeu”.
Então, essa ironia irreverente que agora se torna crítica às armas, zumbia nos ouvidos da organização Montoneros e de outros setores da esquerda peronista. Era um barulho incômodo. Em um artigo da revista “Militancia”, de Rodolfo Ortega Peña e Eduardo Luis Duhalde, com sua também afiada ironia, colocou-se Mugica no “cárcere do povo”, o mesmo lugar no qual se colocava os membros do establishment.
Descreveu Mugica como uma mistura do oportunismo, uma “rolha, sempre flutuando, mesmo que mude a corrente”.
Essa briga interna com seus ex-companheiros de caminho, e a persistência das ameaças, cada vez mais ensurdecedoras, golpearam o padre.
“Sentia pelas rupturas pessoais. Possuía boas relações com Ortega Peña, havia apoiado sua luta nas villas, juntos fizeram um jejum na Villa Lugano. É verdade que Carlitos, às vezes, ia um pouco para a disputa verbal, mas foi uma distorção ideológica colocá-lo como um inimigo do campo popular”, diz, hoje, o padre Bresci.
No dia 1º de maio de 1974, a organização Montoneros abandonou a Praça de Maio após seu duelo verbal com Perón. Mugica discutiu com dirigentes da Tendência na tentativa de não aprofundar mais a colisão. Manteve-se leal ao General. E ficou.
No entanto, em termos pessoais, nada lhe era gratuito. Na semana seguinte, em uma visita ao jornal La Opinión, confiou ao seu diretor, Jacobo Timerman, o quanto lhe era difícil suportar o enfrentamento político com Firmenich. “Produzia-lhe ansiedade, dor, angústia”, escreveu Timerman. Queria voltar a escrever no jornal, como havia feito desde sua fundação, para promover um debate no peronismo que evitasse a violência.
Porém, a violência política, em maio de 1974, ainda nas portas de uma espiral ingovernável, já o havia elegido como alvo. E o devoraria.
No sábado, dia 11, ao anoitecer, um homem o abordou após uma homilia, na saída da Igreja São Francisco Solano, na rua Zelada, Mataderos. Disse-lhe “padre Carlos...”, assim como era chamado por todos, e disparou sobre ele quinze balas, com uma metralhadora, fugindo em um carro que o esperava. Antes das 10 da noite, padre Carlos Mugica já estava morto na cama de um hospital.
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Padre Mugica: o legado de sua vida e as dúvidas que a sua morte ainda desperta na Argentina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU