Por: André | 28 Abril 2015
Baseando-se nas ideias de Ernesto Laclau (foto), o autor afirma que “a hegemonia é a lógica constitutiva da política”, ao passo que “o discurso capitalista tenta apropriar-se de todo o espaço simbólico”.
Fonte: http://bit.ly/1A80805 |
O artigo é do psicanalista Jorge Alemán e publicado por Página/12, 27-04-2015. A tradução é de André Langer.
A Ernesto Laclau, no primeiro ano
de sua morte em Sevilha.
A hegemonia é a lógica constitutiva da política e não simplesmente uma ferramenta da mesma. Mas para desentranhar esta afirmação devemos fazer alguns rodeios que nos permitem acercar-nos ao assunto. A hegemonia não é uma vontade de poder, nem um desejo de se apropriar do espaço da representação política. É sempre muito chamativo que cada vez que emerge uma força política transformadora, com vocação de ruptura e com um horizonte emancipatório, se reprove sua “pretensão hegemônica”. Quando isto é proferido pelos meios corporativos da direita, vê-se claramente a jogada; o poder neoliberal é uma dominação dissimulada como consenso, uma dominação que se apresenta mais como uma dependência de uma série de dispositivos que moldam a subjetividade do que como uma submissão imposta. Também se apresenta como uma dependência inerte a determinados mandatos que nem sequer são explícitos; no entanto, são eficazes. É o que chamamos ordinariamente de “naturalização” do poder neoliberal – disfarçar sua ideologia sob a forma de “fim da ideologia”.
Mas, o que é a hegemonia? Qual é a lógica política que a sustenta segundo Ernesto Laclau? De saída, devemos admitir uma complexidade intrínseca a este conceito, a partir dessa radicalização do programa gramasciano que Laclau encarna com seu pensamento. Partamos dos momentos básicos de sua constituição como conceito fundamental de uma “ontologia política”.
Primeiro: a realidade é constitutivamente construída por discursos; os afetos, os corpos, as pulsões, estão atravessados pelo discurso, marcados por seus significantes, determinados por uma retórica e uma gramática que suspende toda ideia de uma “força original e imanente” que se possa representar diretamente.
Segundo: estes discursos que constituem a realidade fazem-no de tal maneira que nunca podem representá-la em sua totalidade. O discurso constitui a realidade, não pode representá-la de modo exaustivo, e, no entanto, precisa se encarregar de tentar representá-la de um modo frustrado. Esta brecha “ontológica” entre discurso e realidade é irredutível e impossível de ser suturada. A representação veiculada pelo discurso é estruturalmente frustrada, existirá sempre uma “heterogeneidade” que impede que a representação se produza como totalidade.
Por último, nesse limite do discurso ao representar a realidade, frente a esta heterogeneidade irredutível, frente a esta “diferença” impossível de anular, articula-se o momento político que chamamos hegemônico. Não pode haver política sem passar pelo dilema hegemônico.
Encarregar-se de representar aquilo que se subtrai à representação, mostra-nos que o político não é um subsistema da realidade, mas o modo privilegiado como a mesma se constitui. O momento hegemônico resolve-se de forma sempre frustrada através de um termo limite, quer seja o denominado significante vazio em Laclau, “objeto a” em Lacan, classe hegemônica em Gramsci. A brecha insolúvel entre o discurso e aquilo que não pode esquivar representar é o que a hegemonia, insistimos em seu caráter frustrado, tenta resolver.
Emancipação
Uma vez formulado este rodeio teórico e, já entrando nas minhas próprias considerações, devo dizer, e este é o viés do que chamo de “esquerda lacaniana”, que não considero o poder neoliberal uma hegemonia, ao menos neste sentido estrito que tentamos delimitar. As lógicas de dominação repudiam e são fundamentalmente refratárias à construção de experiências políticas hegemônicas.
O discurso capitalista, suportado pelo poder neoliberal não admite nenhuma brecha, nenhuma heterogeneidade inicial, apresenta-se com a potência de representar tudo e levar todas as singularidades e diferenças à totalidade do circuito circular da mercadoria. A hegemonia nunca é circular, está sempre furada em seus fundamentos, ao passo que o discurso capitalista é um funcionamento “contradiscursivo”, poderíamos dizer, que procura inclusive apropriar-se de todo o espaço simbólico.
A própria produção biopolítica da subjetividade é um claro exemplo desta questão. Por isso, o ódio à política hegemônica por parte da direita é, ao final das contas, um ódio ao simbólico e ao sujeito que pode emergir neste campo. Um sujeito diferente dos projetos uniformizantes da biopolítica neoliberal.
A emancipação só pode existir, que é um duelo e uma despedida da “metafísica” da revolução e suas “leis históricas”, caso se passar pela aposta hegemônica como articulação de diferenças que nunca serão anuladas. A emancipação nunca conseguirá realizar uma sociedade reconciliada consigo mesma, como esperava o marxismo canônico. O momento hegemônico é insuperável, não há sociedade que não seja em sua própria existência uma resposta à brecha que a constitui.
O “saber fazer”, com essas brechas, essas diferenças, essas heterogeneidades, na construção de uma vontade coletiva, é a arte do político.
Por tudo isso, e esta é uma questão crucial, de saída devemos assinalar que líderes, eleições, participação nas instituições políticas, meios de comunicação etc., não expressam a hegemonia nem a representam, embora façam parte da mesma, joguem em seu interior, naquilo que Ernesto Laclau denomina em sua lógica hegemônica de “extensão equivalencial das diferentes demandas”.
Estas deveriam se articular com u um significante vazio que represente a totalidade impossível, para permitir a emergência de uma vontade coletiva, que nunca é algo dado de antemão por nenhuma identidade ou pela chamada “Psicologia de Massas”. Aqui devemos fazer uma aposta sem garantias: ou o crime é perfeito e o discurso capitalista se apropriou da realidade e seu sujeito, de tal maneira que já está definitivamente localizado e chamado para ser apenas material disponível para a forma mercadoria, ou existem diferentes superfícies de inscrição onde o político-hegemônico, de modo contingente, pode fazer advir um sujeito popular e soberano. Um sujeito interpelado por aqueles legados simbólicos que o precedem e pelas demandas de diferentes setores explorados pelas oligarquias financeiras.
Estas demandas singulares caracterizam-se porque não podem ser absorvidas pela arquitetura institucional dominante. As demandas não satisfeitas institucionalmente são o ponto de partida, mas apenas ponto de partida, para que as diferenças entrem numa lógica equivalencial. Tendo em conta que já não podemos imaginar uma fórmula de desconexão do capitalismo, fundamentada supostamente a partir de “leis objetivas e científicas”, a ruptura populista é a resposta a esse “essencialismo” de tradição marxista.
O populismo não é uma renúncia à radicalidade da transformação revolucionária, é ainda mais radical, porque de um modo materialista admite os impasses e as impossibilidades que se apresentam quando a parte excluída e não representada pelo sistema tenta construir-se como uma hegemonia alternativa ao poder dominante.
Quanto aos meios de comunicação e aos diversos debates que acompanham o assunto, parece que não se pode ser otimista com respeito aos mesmos. Como aqueles que veem nos meios e, particularmente, nas redes uma possível forma de “capital variável” cindido que contribuiria, no longo prazo, para uma nova emergência de uma multidão transformadora. Mas também não como a realização do crime perfeito onde o sujeito desaparece na enunciação dos meios de comunicação para tornar-se parte da “gente”.
O povo começa quando “a gente” se revela como pura construção biopolítica. Neste, o povo é tão raro e singular como o próprio sujeito é seu devir mortal, sexuado e falante. O povo é uma equivalência instável, constituído por diferenças que nunca se unificam nem representam totalmente. No entanto, sua fragilidade e contingência de origem é a única coisa que o salva da televisão, dos expertos, dos programadores, da contabilidade etc. Mas apenas nas dobras mais íntimas dos dispositivos de dominação neoliberal é que o sujeito popular pode advir, o resto é sonhar com a miragem de uma realidade exterior pura e sem contaminação, que por sua própria força imanente acabaria por desconectar a maquinaria e seus dispositivos.
“Só no perigo”
É verdade que a partir de perspectivas anteriores mais próprias do que poderíamos chamar de “ortodoxia lacaniana” se poderia pensar que o político fica, com efeito, na superfície das coisas e que nunca consegue transformar radicalmente nada, e que a “repetição do mesmo” destrói a partir de dentro qualquer projeto. Mas, agora, já não se trata do exercício lúcido do ceticismo, nem da razão cínica, posturas, por outro lado, anacrônicas e patéticas.
Entramos em um tempo histórico em que vemos consumar-se o que Lacan precisamente chama de “discurso capitalista” e Heidegger de “estruturas de localização técnica”, que constituem ao mesmo tempo radicalizações teóricas e práticas daquilo que Marx chamava de “subsunção real” do capital em sua dominação abstrata. Por isso, é inevitável pensar na política como o único lugar possível onde se pode travar um combate com respeito ao projeto de deshistorização e desimbolização que o neoliberalismo comporta. O neoliberalismo é a primeira força histórica que se propõe a tocar, alterar e produzir novamente o sujeito, tentando eliminar assim sua própria constituição simbólica. Parafraseando o filósofo, “só no perigo da política pode crescer o que nos salva”.
Sem correr o risco de ficar preso àquilo que queremos ao mesmo tempo destituir, não há atualmente possibilidade de assumir um projeto populista de esquerda de vocação emancipadora. Estamos sempre a ponto de naufragar, e devemos entender que a partir de agora sempre será assim, porque já não voltará a nós aquela miragem ideal de estar cumprindo com os passos revolucionários que supostamente expressavam o fundamento de uma lei histórica. Não apenas nunca foi assim, embora a fantasia metafísica fosse tragicamente potente, mas que agora seria absolutamente funcional à dominação neoliberal jogar o jogo de um hipotético radicalismo revolucionário.
Conectar a política à vida real implica em que a mesma é travessia, construção, articulação, de uma heterogeneidade que nem sempre toma a direção que mais desejamos, mas que sem ela não haveria nada a opor como hegemonia ao regime do capital.
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Hegemonia e poder neoliberal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU