09 Abril 2015
Foto: en.tracesofwar.com
"Bonhoeffer não era uma mentira ambulante, nem um pensador confinado em seu escritório. A coerência entre a teoria e a prática era fundamental para ele", escreve Pedro Lucas Dulci, mestre em filosofia pela UFG e graduando em teologia pelo SPBC, ao lembrar os 70 anos do martírio do pastor luterano e teólogo Dietrich Bonhoeffer.
Segundo o teólogo, "Bonhoeffer nos ajuda a problematizar o contemporâneo sob as lentes da confissão cristã radical"
"Sendo assim, - continua - a primeira característica do conjunto de sua obra é sua tentativa de iluminar o contemporâneo – pois já nos foi ensinado um dia que ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão de uma época faz a cada um de nós".
Eis o artigo.
No dia nove de abril de 2015 completa 70 anos desde o que pastor luterano, teólogo e mártir alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) foi sentenciado e executado pela Gestapo a pedido pessoal de Adolf Hitler. Nesses dias, portanto, seria muito adequado nos ocuparmos com a exemplaridade do pensamento e testemunho de Dietrich. Aqui a distinção entre vida e obra não é retórica. Primeiro porque, como em todo processo de formação de si, Bonhoeffer teve sua teologia moldada pelas experiências que Deus concedeu à sua vida. Mais definitivo que isso, entretanto, foi o fato de que Dietrich não se permitiu escapar da coerência com aquilo que escreveu, pregou e ensinou durante todos os anos de sua vida. Mesmo que não possamos subscrever totalmente o conteúdo da sua teologia, não podemos dizer, em hipótese nenhuma, que ela não é consististe e coerente com cada escolha que ele fez. Desde sua decepção com o ambiente acadêmico do Union Theological Seminary, até sua opção por retornar à Alemanha mesmo a custo de sua vida. Bonhoeffer não era uma mentira ambulante, nem um pensador confinado em seu escritório. A coerência entre a teoria e a prática era fundamental para ele.
Tudo isso fez com que uma particularidade se destacasse como distintiva de todo o seu esforço teórico e ministerial – particularidade essa que justifica a tentativa pouco provável de reler os acontecimentos sociopolíticos contemporâneos com raciocínios teológicos do século passado. Bonhoeffer almejava que seus pensamentos sobre Jesus Cristo se mostrassem eticamente frutífero para a sua época. A preocupação com a atualidade da confissão de fé em Cristo marca a obra de Bonhoeffer e nos desafia, ainda hoje, a fazer o mesmo: pensar os acontecimentos contemporâneos através de uma mediação cristocêntrica relevante à nossa geração.
Em outras palavras, Bonhoeffer nos ajuda a problematizar o contemporâneo sob as lentes da confissão cristã radical. Os fatos que desencadearam a escrita de cada uma das linhas de sua obra, de alguma forma, dizem do nosso tempo e ajudam a enxergar os acontecimentos recentes que ainda precisam ser digeridos antes de serem totalmente assimilados. Sendo assim, a primeira característica do conjunto de sua obra é sua tentativa de iluminar o contemporâneo – pois já nos foi ensinado um dia que ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão de uma época faz a cada um de nós (1).
Conforme ele mesmo escreve ao final de sua vida para seu melhor amigo Eberhard Bethge, por ocasião de suas conversas sobre como ultrapassar o modo meramente religioso de pensar:
Na minha opinião, [a forma meramente religiosa] significa falar por um lado de forma metafísica e, por outro lado, de forma individualista. Ambas as formas não atinam nem com a mensagem bíblica nem com o ser humano atual. A pergunta individualista pela salvação pessoal da alma não desapareceu quase completamente de nossa visão? Não temos realmente a impressão de que existem coisas mais importantes do que essa pergunta ( – talvez não mais do que esse assunto, mas sim mais do que essa pergunta?!)? Sei que dizer isso parece bastante monstruoso. Mas no fundo, não seria até mesmo bíblico? A questão da salvação da alma ocorre em algum lugar do Antigo Testamento? O centro de tudo não são a justiça e o reino de Deus na terra?... (2)
O que está em pauta não é o além, mas este mundo e como ele é criado, conservado, estruturado em leis, reconciliado e renovado. O que está além deste mundo quer está aí para este mundo no evangelho; não digo isso no sentido antropocêntrico da teologia liberal, mística, pietista e ética, mas no sentido bíblico da criação e da encarnação, da crucificação e ressurreição de Jesus Cristo.
Extremamente cansado do contexto religioso em que cresceu e viveu – uma educação teológica liberal, uma igreja luterana inerte em razão de sua institucionalização total e uma sociedade cada vez mais secularizada – Bonhoeffer procurou trabalhar a renovação da igreja através de uma redescoberta das Escrituras que tivesse condições de responder as perguntas: o que Jesus quis nos dizer? O que ele requer de nós hoje? De que modo ele pode nos ajudar a ser discípulos fieis hoje? Em suas próprias palavras, “continua a preocupar-nos o problema do que poderia significar, na atualidade, o chamado ao discipulado de Jesus para o operário, a pessoa de negócios, o agricultor, o soldado – a pergunta se não está sendo levado um conflito insuportável para dentro da existência da pessoa e do cristão que trabalham no mundo” (3).
Acreditamos que em razão de tudo isso, nossa tentativa de relacionar as questões que o mundo contemporâneo nos apresenta com a postura teológica de Bonhoeffer pode mostrar-se muito adequada.
Assim como o jovem pastor, a preocupação com os desdobramentos socioculturais do discipulado cristão nos desafia e nos faz pensar maneiras adequadas de mediar os clamores do mundo com as respostas do evangelho. Mais do que a teologia de Bonhoeffer, o que precisamos repetir é o seu gesto, sua postura de amor, comprometimento e responsabilidade pelo mundo em que habitava. Pensamos que somente assim conseguiremos dar conta do desafio que ele mesmo deixou a nós: “a pregação evangélica correta deve ser como uma bela maçã oferecida a uma criança ou um copo de água fresca oferecida a um sedento, com a pergunta: Você quer?... Então, as pessoas deveriam correr e não sossegar quando se falasse do Evangelho, assim como os doentes corriam ao encontro de Jesus” (4)
Em poucas palavras, precisamos de Bonhoeffer. Isso não significa que precisamos do Bonhoeffer herói ou do Bonhoeffer ídolo da cristandade. Talvez isso seja o mais difícil, a saber, honrar o testemunho e repetir o gesto de Bonhoeffer sem permitir que ele se torne um mito. Facilmente nos textos que articulam as ideias, ou mesmo a vida do jovem pastor, logo sua figura é transformada em um caminho a ser seguido. Se algo dessa natureza acontecer estamos nos tornando idólatras. Bonhoeffer não é o caminho – o Cristo que transpareceu em cada palavra e gesto de Dietrich deve ser a mais cativante característica dele que precisa ser destacada.
Bonhoeffer era um cristão ordinário. Por mais estranho que possa parecer, ele não eram alguém especial.
Segundo a melhor definição fornecida pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, Bonhoeffer não era um gênio, e sim um apóstolo. Enquanto o primeiro é tudo o que é por mérito e para si mesmo, o apóstolo foi chamado por Deus e deriva tudo aquilo que ele é da missão divina que herdou (5). Da mesma forma, toda a autoridade e exemplaridade de Bonhoeffer não deriva dele mesmo nem da genialidade de seus raciocínios, mas de sua alegre e criativa submissão à vontade de Deus em cada aspecto de sua trajetória. Ele viveu cada uma das tarefas que lhe foram atribuídas sem reservas, entregando-se integralmente aos desígnios de Deus. Estaríamos pecando contra o Senhor se, depois de Bonhoeffer ter feito tudo aquilo que lhe era dever, não lhe déssemos o título de servo inútil (Lc 17.9-10).
Precisamos da ajuda de Bonhoeffer para voltarmos a encarar os nossos próprios feitos como ordinários, principalmente em tempos que a Geração Y é idolatrada – nome dado aos indivíduos nascidos entre 1978 e 1990, concebidos na era digital, democrática e de ruptura com a forma cultural tradicional; são folgados, distraídos, superficiais, mas encaram tudo o que fazem como genial e capaz de mudar o mundo (6).
Melhor do que qualquer outro intérprete da fé cristã moderna, Bonhoeffer tem a capacidade de gerar em seus leitores a coragem de comunicar às próximas gerações as verdades mais dolorosas da condição humana caída sem levá-las ao pessimismo cético. Bonhoeffer foi um sinal do Reino de Deus em meio à guerra, à corrupção política, ao abuso de poder, à secularização cultural, à frieza religiosa institucionalizada e à irrelevância teológica liberal. Manter os olhos bem abertos à corrupção do mundo sem perder a capacidade de comunicar esperança às pessoas por meio de Cristo é um verdadeiro dom da graça comum de Deus para seu povo. Mais do que nunca, sua postura se faz urgente em nosso meio.
Notas:
1.- AGAMBEN, Giorgio. O pensamento é a coragem de desesperança: uma entrevista com o filósofo Giorgio Agamben concedida à Juliette Cerf. Trad. Pedro Lucas Dulci. Disponível em: http://outraspalavras.net. Acessado em: 30 de junho de 2014.
2.- BONHOEFFER, Dietrich. Carta a Eberhard Bethge 05 de maio de 1944. In: Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 380.
3.- BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. Trad. Ilson Kayser. 8ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 7.
4.- BONHOEFFER, Dietrich. A boa-nova. In: A resposta às nossas perguntas. Reflexões sobre a Bíblia. Trad. A. J. Keller. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 33.
5.- KIERKEGAARD, Søren. Sobre a diferença entre um Génio e um Apóstolo. In: Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor. Lisboa: Ed. 70, 1988, p. 162.
6.- LOIOLA, Rita. Geração Y. Disponível em: http://revistagalileu.globo.com. Acessado em: 08 de março de 2015.
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O que significa pensar o cristianismo hoje? 70 anos sem Bonhoeffer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU