30 Março 2015
A cultura, a incessante obra de construção social que é a característica do viver humano, tornou-se mais reflexiva também sobre esse fundamental aspecto da humanidade, a diferença sexual, como unívoco e imutável destino. Uma conquista, não um "erro da mente humana".
A análise é da socióloga italiana Chiara Saraceno, membro honorária do Collegio Carlo Alberto de Turim, e professora emérita do Wissenschaftszentrum für Sozialforschung de Berlim e da Universidade de Turim. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 26-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Mais uma vez, pela voz do chefe dos episcopado italiano, o cardeal [Angelo] Bagnasco, a Igreja Católica lançou o seu anátema contra a "teoria de gênero", porque promoveria a confusão entre masculino e feminino, dando origem, por isso mesmo, a um "trans-humano", a uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, "desprovido de meta e de identidade".
É fácil demais pensar que, por trás dessas palavras, esconda-se acima de tudo a condenação de qualquer tentativa de normalizar a homossexualidade como um dos modos pelos quais homens e mulheres experimentam a própria sexualidade. No entanto, elas representam uma visão da humanidade que nos diz respeito, mulheres e homens, independentemente da orientação sexual.
Trata-se de uma visão em que a diferença sexual se torna totalizante, absorve e muitas vezes impede qualquer outra diferença, uma forma de naturalização desprovida de história e reflexividade, que, de fato, hipostasia não tanto as diferenças sexuais, mas sim o modo pelo qual, a partir delas, construíram-se relações e identidades sociais e modelos organizativos e culturais inteiros.
Justamente contra essa visão, com base em estudos antropológicos, históricos, sociológicos e filosóficos, algumas estudiosas feministas propuseram o conceito de gênero, para indicar o quanto de construção social – principalmente dentro de relações de poder assimétricas – havia e ainda há naquilo que é definido como masculino e feminino: nas características, capacidades e possibilidades atribuídas a um e a outro sexo e nas regras que deveriam governar as relações entre os dois.
São construções sociais tão poderosas a ponto de se tornarem, como diria Durkheim, "fatos sociais", dados por adquiridos e utilizados seja como modelos organizativos na sociedade e na família, seja como mapas mentais que guiam as escolhas subjetivas e dão forma até mesmo aos desejos.
Por isso, pode parecer "inatural" que uma mulher não deseje ter filhos ou que queira ter tanto filhos quanto uma carreira profissional, ou que um homem se dedique mais ao cuidado dos filhos do que à própria carreira, que homens e mulheres queiram escolher as próprias metas e ter identidades menos rígidas e polarizadas ao longo da crista da diferença sexual.
É por causa da potência dessa visão pseudonatural que, em algumas sociedades, as mulheres são consideradas seres "naturalmente" inferiores aos homens, que estes podem usar e controlar à vontade.
Se, nas sociedades democráticas, alcançou-se alguma medida de igualdade entre homens e mulheres, é porque se permitiu que homens e mulheres desenvolvessem as próprias capacidades e interesses sem serem confinados na própria, embora importante, diferença sexual recíproca e, ao mesmo tempo, serem mais livres para viver essa diferença.
A cultura, a incessante obra de construção social que é a característica do viver humano, tornou-se mais reflexiva também sobre esse fundamental aspecto da humanidade, a diferença sexual, como unívoco e imutável destino. Uma conquista, não um "erro da mente humana", segundo as palavras do Papa Bergoglio retomadas por Bagnasco.
Até mesmo o horror pela homossexualidade e a assimilação desta à rejeição da diferença sexual nascem daquela visão de uma humanidade estereotipadamente dicotomizada. Àqueles que reduzem a identidade das pessoas, principalmente, se não exclusivamente, ao seu corpo sexuado, a homossexualidade não parece ser apenas um desvio sexual que rompe a norma da heterossexualidade complementar. Parece ser também um "inatural" híbrido humano, em que se confundem masculino e feminino.
No fim das contas, é a velha concepção da homossexualidade como inversão sexual, como o ser homem em um corpo de mulher, e vice-versa.
Para aqueles que achatam as potencialidades e as variedades dos seres humanos na dicotomia da diferença dos órgãos sexuais e do aparato genital, a homossexualidade parece ser monstruosa, literalmente, tanto no plano da natureza, quanto no social, como um hipogrifo, ou um homem-cavalo .
Mas, igualmente, se não monstruoso, parece ser perigoso cada comportamento de homens e mulheres que desmente a obviedade dos estereótipos. Enquanto agitam o fantasma da "colonização por parte de uma teoria de gênero que visa à criação de um trans-humano", as palavras de Bagnasco testemunham a persistência de teorias e práticas que, em nome da natureza, querem constranger homens e mulheres na couraça de papéis e destinos rígidos e assimétricos, redutivos da riqueza, variedade e potencialidade dos seres humanos.
Não é isso que queremos para nós mesmas e para os nossos filhos e filhas.
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O anátema contra a teoria de gênero. Artigo de Chiara Saraceno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU