17 Março 2015
A notícia da convocação de um "Ano Santo da misericórdia" tem no cardeal Walter Kasper um interlocutor privilegiado, por mais de uma razão.
A reportagem é de Stefania Falasca, publicada no jornal Avvenire, 14-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Eminência, como o senhor acolheu o anúncio do papa?
É um anúncio importante. "É um caminho – disse-nos o papa – em que devemos ir." Significa, também, um ano para reconsiderar o sacramento da reconciliação, e isso é importante, porque hoje está um pouco esquecido, enquanto é o sacramento que nos recoloca de pé para caminhar, para começar sempre de novo. "Começamos, finalmente", disse São Francisco antes de morrer. Com a misericórdia, há há inícios que nunca têm fim. O Ano Santo também é importante para abrir as pessoas ao desejo da misericórdia. O inferno é não precisar de Deus.
No seu primeiro Ângelus, no dia 17 de março de dois anos atrás, o papa citou justamente o seu livro sobre a misericórdia. O que ele lhe disse?
Para ele, a misericórdia já era um tema muito importante. Como bispo, ele tinha escolhido para o seu brasão episcopal o lema "Miserando atque eligendo". Quando eu lhe dei a tradução em espanhol do livro, ele leu o título – Misericórdia – e me disse: "Ah, eis o nome do nosso Deus!". Para o Papa Francisco, a mensagem de misericórdia está no centro do Evangelho, é um tema que se tornou a palavra-chave do pontificado. E ele o foi retomando continuamente, desde o primeiro dia. Ele nos disse repetidamente: a misericórdia de Deus é infinita, Deus nunca se cansa de ser misericordioso para com cada um, contanto que nós não nos cansemos de implorar a sua misericórdia. Repetindo essa palavra-chave, ele tocou inúmeras pessoas no coração, dentro e fora da Igreja.
O senhor tratou extensivamente disso como de um tema bíblico central...
Sim, no Novo Testamento, ele é fundamental. A misericórdia de Deus está na mensagem de Jesus, desde a parábola do samaritano ao discurso de Jesus sobre o Juízo universal, quando vão contar apenas as obras de misericórdia.
O senhor escreveu que a teologia ignorou esse tema. Por quê?
Por que o reduziu a simples subtema da justiça. Tomás de Aquino diz que Deus não está vinculado às nossas regras de justiça. Deus é soberano, é justo em relação a Si mesmo, sendo amor. Como Deus é amor, e nisso ele é fiel a si mesmo, ele também é misericordioso. A misericórdia, portanto, é fidelidade de Deus a Si mesmo e expressão da Sua absoluta soberania no amor. A misericórdia é a fidelidade de Deus à sua aliança e a sua inabalável paciência com as pessoas.
Na Sua misericórdia, Deus não abandona ninguém: dá a cada um uma nova oportunidade e um novo início, se estiver disposto a mudar de vida. O mandamento da misericórdia, portanto, quer que a Igreja não torne difícil a vida para os fiéis e não faça com que a religião se torne uma forma de escravidão. A misericórdia, como defende Tomás, reconectando-se com Agostinho, quer que nós sejamos livres dos ônus que nos tornam escravos: "É o fundamento da alegria que o Evangelho nos dá", afirma o papa na Evangelii gaudium.
Com essa mensagem, em que relação o papa se coloca com os seus antecessores?
Francisco está em continuidade com os papas que o precederam, com a tradição e com muitos santos. Também para João XXIII a misericórdia é a mais bela das propriedades de Deus: no seu famoso discurso de abertura do Concílio Vaticano II, ele exortou a Igreja a não usar mais as armas da severidade, mas o remédio da misericórdia. Desse modo, Roncalli indicou a tonalidade de fundo da nova orientação pastoral conciliar e pós-conciliar.
Em João Paulo II, a mensagem da misericórdia nasceu da sua experiência do horror diante da Segunda Guerra Mundial, por isso, dedicou a esse tema a sua segunda encíclica, Dives in misericordia. Depois, acolhendo o impulso da mensagem da Ir. Faustina Kowalska, estabeleceu que o primeiro domingo depois da Páscoa fosse celebrado como Festa da Divina Misericórdia.
Bento XVI continuou a desenvolver o tema, aprofundando-o teologicamente na sua primeira encíclica, Deus caritas est. O Papa Francisco, como os seus antecessores, liga novidade e continuidade, considerando a misericórdia como uma realidade em caminho, um programa pastoral concreto.
Ela falou do fundamento na Escritura e na Tradição, mas o discurso do papa sobre a misericórdia pareceu suspeito para alguns quando se trata da aplicação pastoral concreta...
Porque se confunde misericórdia com um laissez-faire superficial, com uma pseudomisericórdia, e há quem, ao ouvir falar de misericórdia, sente o perigo de que, desse modo, se favoreça um rendimento pastoral e um cristianismo light, um ser cristão com desconto. Vê-se, assim, na misericórdia, uma espécie de amaciante que corrói os dogmas e os mandamentos e desvaloriza o significado central e fundamental das verdades. Essa é uma crítica que, no Novo Testamento, os fariseus faziam também a Jesus, mas a Sua misericórdia os levou a um tal nível de incandescência que eles decidiram matá-lo. No entanto, estamos diante de um grosseiro mal-entendido do sentido bíblico profundo da misericórdia, porque ela é, ao mesmo tempo, uma fundamental verdade revelada e um mandamento de Jesus exigente e provocante.
Mas a verdade pode estar em contraposição com a misericórdia?
A misericórdia está em íntima relação com todas as outras virtudes reveladas e os mandamentos. Não se pode, por isso, se retamente compreendida, pôr em discussão a verdade e os mandamentos. Ela também não elimina a justiça, mas a supera: é a maior justiça, sem a qual ninguém pode entrar no reino dos céus (Mateus 5, 20). Colocar a misericórdia contra a verdade e contra os mandamentos, colocá-los em oposição entre si, por isso, é um absurdo teológico. Na hierarquia das verdades, ao contrário, é correto entender a misericórdia – a propriedade fundamental de Deus e a maior das virtudes – como princípio hermenêutico, não para substituir ou minar a doutrina e os mandamentos, mas para compreendê-los e realizá-los do modo justo, segundo o Evangelho.
O que o senhor quer dizer ao falar de misericórdia como "princípio hermenêutico"?
Que ela não altera os conteúdos válidos, mas muda a perspectiva e o horizonte dentro do qual eles são vistos e compreendidos. É a isso que se referia Paulo VI quando, no discurso durante a última sessão do Concílio Vaticano II, indicou o exemplo do samaritano misericordioso como modelo da espiritualidade do Concílio. Com essa parábola, Jesus queria responder à pergunta sobre quem é o meu próximo. E a sua resposta parte da situação humana real: o próximo é aquele com quem você se encontra, que, em uma situação concreta, precisa da sua ajuda e da sua misericórdia, sobre o qual você deve se inclinar e cujas feridas deve enfaixar. É ele que se torna, para você, o critério para interpretar a vontade concreta de Deus.
Quais são as consequências desse princípio para a vida cristã?
A misericórdia de Deus não é um discurso retórico tão belo quanto inócuo, não serve para nos ninar dentro da tranquilidade e da segurança, mas é um desafio que nos coloca em movimento. Ela quer que as nossas mãos e, sobretudo, os nossos corações se abram. Se Jesus diz: "Sejam misericordiosos como o Pai de vocês é misericordioso", isso tem consequências importantes para a formação da vida cristã através de obras de misericórdia corporal e espiritual. Isso significa, por exemplo, ter um coração pelos pobres – entendidos no sentido mais amplo –, fato que tem consequências sobre a ética cristã e, especialmente, sobre a social. Se, depois, devemos ser misericordiosos como o nosso Pai celeste é misericordioso, então isso vale não só para o fiel individual, mas também para a Igreja. As consequências, portanto, dizem respeito, em primeiro lugar, à compreensão e à práxis da Igreja.
Justamente: o que faz isso envolve, concretamente, para a Igreja?
Implica que ela é e deve ser o sacramento, isto é, o sinal e o instrumento da misericórdia de Deus. A Igreja está sob o primado da graça: "O Senhor nos precede sempre com o seu amor e a sua iniciativa" – como afirma Francisco na Evangelii gaudium – e através do "Seu Espírito nos atrai para si, não como indivíduos isolados, mas como o seu povo". A Igreja deve ser, portanto, o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam se sentir encorajados a viver segundo a vida boa do Evangelho.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Misericórdia: uma viagem ao centro da Igreja. Entrevista com Walter Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU