15 Janeiro 2015
Tudo começou com uma carta. Johan Bonny interpelou o Vaticano para que abrisse as suas portas aos homossexuais e aos casais divorciados. Mas hoje o bispo de Antuérpia vai além, defende uma bênção às relações gays, lésbicas, bissexuais. "Existe uma diversidade de relações das quais a Igreja pode reconhecer a qualidade."
A reportagem é do jornal De Morgen, 05-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Bonny começou a sua ofensiva em 2014. O papa "da renovação", Francisco, deu-lhe asas. É por isso que Bonny escreveu a carta endereçada a Roma. No mesmo período, o bispo de Antuérpia entrou em conflito com os demônios do passado. De fato, até pouco tempo atrás, foi grande a indignação quando um padre, reconhecido no passado como culpado de abusos sexuais de um menor de idade, foi nomeado em Middelkerke. O bispo de Bruges, Jozef De Kezel, declarou mais tarde que tinha cometido um erro de julgamento.
Bonny, que atuou por muito tempo em Bruges, está muito envergonhado com essa história, mas não quer criticar De Kezel. "Não é minha tarefa julgar uma decisão de um colega. O bispo De Kezel disse que errou de julgamento em relação ao caráter delicado daquela nomeação. Ele disse que tomou a decisão certa a partir de um ponto de vista formal, mas sem levar em conta o aspecto social. É nisso que ele se encontra em dificuldades".
Eis a entrevista.
O senhor entende a indignação pública?
Naturalmente, compreendo absolutamente. Existe um trauma em relação aos abusos sexuais na Igreja, a indignação provém das camadas profundas desse trauma. A Igreja deve levar isso em conta. Ao mesmo tempo, também devemos ser justos. O nosso comportamento deve ir ao encontro das emoções das vítimas, mas também deve estar em conformidade com as regras da justiça elementar e com os direitos da defesa. A justiça também faz constantemente esse exame de "pesar os prós e os contras", buscando a solução mais justo. Por isso, acho que a Igreja deveria, ainda mais, se confiar a competências externas em relação a esses temas. Se fizermos sozinhos o exame do "pesar os prós e os contras", não obteremos o apoio e a aprovação da sociedade. Em vez disso, se somos auxiliados por juristas e psiquiatras, mostraremos claramente que não queremos agir com negligência, mas realmente interessarmo-nos no bem-estar comum. A Igreja não tem nada a ganhar com o equívoco.
Mas a ideia da impunidade diante dos padres pedófilos continua. Muitos padres suspeitos não comparecerem diante de um tribunal, diz a crítica.
Eu acho que a crítica é injusta. Como em todas as categorias, é preciso que a justiça possa fazer o seu trabalho para os casos de pedofilia. Todos os nossos dossiês vão à justiça, e são os juízes que tomam as decisões em matéria de ação judicial. Não devemos esquecer que, depois da crise de pedofilia de 2010, caíram sobre nós montanhas de dossiês prescritos. Muitas vezes, trata-se de vítimas que nunca apareceram diante da justiça e começaram a falar pela primeira vez. A partir de 2010, sistematicamente enviamos os dossiês à justiça, mesmo aqueles prescritos. Houve casos em que a justiça expressou uma prescrição, mas para os quais as vítimas foram direcionadas ao centro de arbitragem para abusos sexuais na Igreja. Elas podiam receber uma indenização por causa disso. Esse sistema funcionou muito bem nos últimos cinco anos.
Mas o que vocês fazem com os casos "moderados": dos padres que foram perseguidos, mas que querem retomar as suas funções, é possível?
Em todos os casos, aplicamos a tolerância zero. O abuso não pode se repetir. A nossa prevenção deve funcionar bem. Mas, às vezes, também podemos nos encontrar em uma situação muito difícil de julgar. O que aconteceu? Quais funções essa pessoa ainda pode desempenhar? Uma tarefa administrativa ou pastoral em que não possa estar em contato com crianças ou jovens? É nesses casos que devemos apelar para a ajuda, para o acompanhamento, para o apoio profissional externo.
Às vezes, é como se houvesse um medo na Igreja de tomar decisões sobre casos de pedofilia e de comunicá-los com clareza. Como se vocês estivessem presos em um dilema: "Qualquer que seja a decisão, ela sempre será percebida como errada".
Sim, deparamo-nos claramente com esse problema. Desde 2010, existe uma perda de confiança, e a credibilidade não é recuperada em quatro anos. Em 2010, eu estava em Roma e lá tive uma longa conversa com um bispo australiano. Ele também, alguns anos antes, teve que enfrentar escândalos de pedofilia na Igreja. "Não tenha ilusões", ele me disse. "Vocês vão precisar de ao menos dez anos para recuperar a sua credibilidade." E é verdade. Mas, em 2010, fizemos muitos trabalhos. Não conheço nenhuma instituição que tenha tomado esse problema com tanta seriedade, com tanta vontade e compromisso. Ouvimos muitas testemunhas, privilegiando a credibilidade da vítima e com pouquíssimos requisitos formais. E isso para fatos já prescritos há muito tempo e que são difíceis de verificar. Trabalhamos em colaboração com a justiça, e foi instituída uma comissão de arbitragem. Além disso, todo esse trabalho foi feito sob a supervisão de uma comissão parlamentar especial. Todos esses elementos devem contribuir para obter a aprovação e o apoio da sociedade.
Em setembro, o senhor escreveu uma carta ao Vaticano, na qual afirma que a Igreja deve mostrar mais respeito pela homossexualidade, pelas pessoas divorciadas e pelas relações modernas. Qual foi a faísca que fez com que o senhor decidisse enviar essa carta, tornando-a pública?
Ninguém me pediu para escrever essa carta, é algo que veio de mim mesmo. Foi-me confiada uma diocese com pessoas que ali vivem. Para dizer isso na linguagem bíblica: foi confiado um rebanho a um pastor, e é o meu dever me ocupar dele da melhor maneira possível. Isso significa, em particular, que eu devo expressar o que se vive dentro da comunidade dos fiéis. Quais são as suas preocupações? Quais são as suas alegrias? Naturalmente, o que é importante para mim é que o Papa Francisco mudou certos pontos de referência. Isso despertou em mim muitas coisas. Não posso ficar como um espectador neutro diante dessas mudanças, quero participar. Afinal, todos, em um certo momento da vida, se deparam com relacionamentos, amizades, relações familiares, educação dos filhos. Não devemos negar que existem traumas dentro da Igreja a esse respeito. Muitas pessoas se sentiram excluídas por muito tempo. A Igreja não pode reparar essa perda de confiança senão falando de maneira aberta e sincera sobre as questões que realmente preocupam as pessoas.
Muitos reagem com alívio e estão contentes com o fato de que o senhor fale abertamente sobre as relações e as formas familiares modernas. Mas muitas pessoas também se perguntam por que demorou tanto tempo.
Compreendo perfeitamente. Como bispos, acreditamos por muito tempo que era impossível discutir certos ensinamentos ou regras disciplinares. Para não mandar embora os nossos fiéis, agimos com pragmatismo. Assim, criou-se uma divisão cada vez maior entre o ensinamento oficial da Igreja e a prática cotidiana. Mas há outra razão pela qual essa nova abertura demorou tanto tempo. Quero formulá-lo em termos positivos. O Papa Paulo VI e principalmente o Papa João Paulo II eram personagens eminentes e grandes papas. Justamente, focaram-se no matrimônio. Havia muitos lados positivos na sua história, mas, ao mesmo tempo, isso não correspondia totalmente ao que as pessoas pensam ou sentem hoje em relação a essas temáticas. Com o Papa Francisco, houve um pouco de movimento. Na sua carta "A alegria do Evangelho", publicada no fim de 2013, realmente mudaram os pontos de referência em relação ao que podia ser discutido. Ele tornou o ensinamento da Igreja mais próximo da realidade vivida e deu mais espaço para a diversidade no debate.
O senhor teve alguma reação à sua carta?
Não, não tive nenhuma resposta oficial de Roma.
É um bom ou mau sinal?
Sempre me disseram: nada de notícias, boa notícia. Não, a sério: em novembro, eu estava em Roma para uma reunião, e, então, diversos cardeais, bispos e teólogos vieram me dizer que tinham lido a minha carta com grande interesse e me agradeceram. Ouvi que os mesmos problemas lhes preocupavam e queriam participar ativamente do debate.
No Sínodo dos bispos de outubro, não foi encontrado nenhum consenso sobre os homossexuais, lésbicas, bissexuais e divorciados. Foram especialmente os bispos da África e da Ásia que permaneceram firmes nos pontos de vista conservadores. Uma derrota?
De modo algum. Antes de Francisco, havia um status quo oficial sobre esses temas e pouquíssimas chances de discussão. Em menos de dois anos, o papa conseguiu pôr em movimento uma discussão sobre o assunto. Acredite-me: dentro de uma comunidade mundial muito diversificada como a Igreja Católica, isso não é algo evidente.
Na sua opinião, o que é possível no longo prazo? A Igreja dará a bênção aos casais gays, lésbicos e bissexuais?
Pessoalmente, acho que na Igreja deveria haver uma maior abertura para o reconhecimento da qualidade de fundo de um casal gay, lésbico ou bissexual. Essa forma de vida a dois deve responder às mesmas exigências do matrimônio religioso. Os valores de fundo são para mim mais importantes do que a forma institucional. A ética cristã defende a relação duradoura, e a exclusividade, a fidelidade e o cuidado pelo outro são centrais. Ao lado disso, ainda há a abertura para a vida nova ou ao menos a responsabilidade que os parceiros assumem para serem generosos naquilo que se dá para os filhos e os jovens. É preciso aceitar que esses critérios estejam presentes em uma diversidade de relações e é preciso tentar dar forma a essas relações.
O senhor acha que é possível que casais gays, lésbicos ou bissexuais que têm a ambição de viver de acordo com a ética da Igreja tenham a possibilidade de casar religiosamente?
Eu não quero negar que a particularidade de uma relação entre homem e mulher seja um elemento estável da nossa tradição cristã. Em um primeiro momento, privilegiaremos essa relação homem-mulher, cuja fecundidade pode dar vida a um filho. Tal relação manterá dentro da Igreja o seu caráter sacramental e a sua própria liturgia.
Mas essa particularidade não deve permanecer como exclusiva e não exclui que exista uma diversidade de relações das quais a Igreja pode reconhecer a qualidade fundamental.
Com efeito, devemos buscar um reconhecimento formal da "relacionalidade" presente em muitos casais gays, lésbicos ou bissexuais crentes. Esse deve ser um reconhecimento sacramental do matrimônio? Talvez, a Igreja deveria, em vez disso, refletir a diversidade de formas de reconhecimento. Essa discussão é a mesma para o casamento civil. Na Bélgica, existe o mesmo modelo tanto para as relações homem-mulher quanto para as relações homossexuais. Mas existem outras possibilidades, que, a meu ver, são igualmente válidas. Talvez não seja necessário colocar todas as relações em um mesmo modelo.
Para que fique claro: o senhor diz que a Igreja deve reconhecer formalmente as relações gays, lésbicas e bissexuais?
Como na nossa sociedade há uma diversidade de enquadramentos legais para os parceiros, da mesma forma, na Igreja, deveria haver uma diversidade de formas de reconhecimento. Desse modo, impedimos que se caia na engrenagem das discussões ideológicas complexas. Sou um defensor de uma diversidade de formas de reconhecimentos que partam da prática pastoral ou do pensamento pastoral, em vez das discussões de princípio. Porque estas últimas muitas vezes levam a polêmicas e muitas vezes geram a discórdia. Vários avós me explicaram que estavam felizes pelo fato de eu ter escrito aquela carta. Eles não estão interessados em uma discussão de princípio. Eles querem, acima de tudo, manter unidos os seus filhos e os seus netos, sejam gays, lésbicas, bissexuais ou não. Porque amam a todos do mesmo modo. No Natal, eles também querem convidar a sua neta que vive com uma amiga lésbica sem que isso criar tensões. A vida é concreta nesse ponto, não é verdade? Problemas tão concretos podem ser resolvidos com muita humanidade e compreensão, mas não com discussões de princípio. A mesma dinâmica é ativa na Igreja. A comunidade eclesial é uma grande família, e a minha primeira preocupação é saber como favorecer essa reflexão. Na verdade, não quero minimizar o significado das questões doutrinais, mas, como bispo, reconheço-me principalmente nos avós. Também quero manter a família unida. Quero que todos os membros da família continuem se visitando, festejando o Natal juntos e formando uma comunidade solidária.
O ano 2015, provavelmente, será um ano muito especial para o senhor. O arcebispo André Léonard completará 75 anos, o que implica que ele deve dar lugar a outra pessoa. O senhor é visto como um possível sucessor. É uma função que gostaria de exercer?
Eu continuo dizendo: há seis anos me tornei bispo de Antuérpia e já foi um grande exercício. Com muitos colaboradores, tenho trabalhado duro pelo futuro dessa diocese. Por isso, de vez em quando, tive que me opor a certas tradições. Busca-se construir alguma coisa, e isso requer muita energia. Esses esforços não podem ser refeitos todos os anos. Prefiro trabalhar em projetos de longo prazo, e é isso que eu faço por enquanto. Estou muito bem em Antuérpia. Naturalmente, mantenho em aberto a outra opção, mas, quanto a mim, prefiro continuar o que comecei em Antuérpia.
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''A Igreja deveria reconhecer a diversidade de relações existentes.'' Entrevista com Johan Bonny - Instituto Humanitas Unisinos - IHU