14 Agosto 2007
“Quem quiser fazer a minha biografia vai ter que trabalhar muito depois que eu morrer”, disse certa vez Herbert de Souza, o Betinho. Em "Betinho - sertanejo, mineiro, brasileiro" (Editora Planeta, 2007), a jornalista Carla Rodrigues aceita o desafio lançado e traça a história de homem frágil, fisicamente, mas forte e destemido na luta social brasileira. Nascido no semi-árido mineiro, hemofílico, foi militante da Juventude Estudantil Católica - JEC, e, mais tarde, da Juventude Universitária Católica - JUC, e protagonizou uma das mais importantes campanhas pela redemocratização do país. Portador do vírus HIV, Betinho lutou por mais de dez anos contra a doença.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Carla Rodrigues fala do processo de pesquisa sobre a vida de Betinho e que resultou no seu mais recente livro. Assim, Carla nos conta as contradições da vida do sociólogo, da forma como a solidariedade caracterizou a sua vida e, ainda, da luta contra o HIV e a importância do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), do qual foi um dos principais criadores.
Carla Rodrigues concluiu o curso de Comunicação Social em 1986, Já trabalhou em diversas redações, tais como as da revista IstoÉ, do Jornal do Brasil. Mais recentemente, escreveu na revista eletrônica NoMínimo. Em 1983, trabalhou como Assessora de Imprensa para Betinho na Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida. Atualmente, é professora do Curso de Comunicação Social da PUC – Rio, onde também concluiu especialização em Arte e Filosofia e, hoje, faz pós-graduação em Filosofia. É autora de diversas obras, dentre elas Ética e cidadania (Moderna Editora, 1994), que escreveu junto com Betinho, e Brasileiras guerreiras da paz (Editora Contexto, 2006), organizado por Clara Charf.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Betinho dizia que quem quisesse escrever sua biografia teria de trabalhar muito depois que ele morresse. Mesmo com a convivência que vocês tiveram, você pesquisou, trabalhou bastante para escrever "Betinho - sertanejo, mineiro, brasileiro". Pode nos contar como foi seu trabalho de pesquisa, desde a sua convivência até as leituras e entrevistas que fez para chegar ao resultado final deste trabalho?
Carla Rodrigues - Foram quatro anos de pesquisa em sete cidades com mais de 60 entrevistas e cerca de 200 livros consultados. Trabalhei com ele durante três anos, mas ele viveu 61 anos. Não poderia pretender escrever um livro sobre ele apenas baseado neste curto período de convivência. Nem queria que o livro se resumisse apenas ao meu olhar sobre ele. Para isso, as entrevistas foram fundamentais para montar um mosaico de um personagem que foi múltiplo, multifacetado e que viveu intensamente sua curta vida. O que me parece o melhor do resultado é justamente o fato de que o livro mostra o personagem Betinho como um ser humano único, contraditório, marcado por uma profunda necessidade de dar sentido à própria vida.
IHU On-Line - Como descrever os diversos Betinhos que você pesquisou e conheceu (o Betinho sertanejo do semi-árido de Minas Gerais, o Betinho da ação política, a vida privada de Betinho, o Betinho sociólogo, o Betinho professor, etc) até chegar ao Betinho solidário e democrático que o Brasil conheceu?
Carla Rodrigues - Há uma espécie de fio condutor nestes Betinhos que é o da solidariedade, elemento que está sempre presente. O que me parece ser uma questão difícil é como descrever o homem público Betinho - solidário, democrata, generoso - com uma vida privada marcada por atos que contradiziam esta postura, como egoísmo, autoritarismo e necessidade de ter suas demandas sempre atendidas. Por isso, trabalho com a visão de um personagem que é um mosaico, que é contraditório como todos nós somos, que é marcado por sua condição humana. Esta foi uma decisão política que eu tomei: mostrar o Betinho como qualquer um de nós é uma forma de mostrar que suas ações políticas também estão ao nosso alcance.
IHU On-Line - Betinho, na década de 1970, passou um longo tempo no exílio, passando por muitos países na clandestinidade. Além disso, ele foi militante da Juventude Estudantil Católica. Como você relaciona esse momento político com todas as limitações de saúde que Betinho sempre teve?
Carla Rodrigues - Dos 15 anos aos 18 anos, ele ficou trancado no quarto dos fundos da casa em que vivia, em Belo Horizonte, vítima de uma tuberculose. Neste período, ele leu autores ligados ao humanismo cristão, defensores de uma nova visão do que significava ser católico no mundo. Betinho leu Teilhard de Chardin, Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, George Bernanos. Quando ficou curado da tuberculose, estava disposto a recuperar o tempo perdido e a viver intensamente a partir daí e isso incluía superar suas limitações físicas. Esta intensidade marcou sua vida justamente porque ele sempre procurou encontrar motivos que justificassem sua sobrevivência.
IHU On-Line - Qual é a importância hoje de Betinho, dez anos depois de sua morte, para o Brasil em relação às ações de cidadania, como as campanhas contra a fome?
Carla Rodrigues - No livro, eu cito uma expressão cunhada pela jornalista Miriam Leitão, em que ela chama todos os movimentos de solidariedade atuais de "atitude Betinho". Acho que este é o principal resultado da sua atuação: ter deixado no país uma cultura de ética, solidariedade e responsabilidade social que tem se multiplicado em projetos sociais e trabalho voluntário. Todas as empresas que atuam na área da responsabilidade social, por exemplo, começaram a fazer isso a partir da década de 1990, quando Betinho estava interpelando a sociedade brasileira a fazer alguma coisa.
IHU On-Line - E a importância dele na luta pela prevenção ao HIV?
Carla Rodrigues - Betinho não separava vida privada de vida pública. Ele transformava tudo que lhe acontecia em causa política. Foi assim, também, com o vírus da Aids, que contaminou os "três irmãos de sangue". Quando ele, Henfil e Chico Mário descobriram que estavam contaminados com o vírus da Aids, depois de cuidar dos dois irmãos e de enterrá-los num espaço de tempo de 40 dias, Betinho passou a lutar pelo direito dos pacientes HIV positivos de receber medicamentos gratuitos. Lutou também para mudar a lei de testagem de sangue, que hoje leva seu nome. Fundou uma ONG, a ABIA, e hoje grande parte da política de distribuição de remédios a pacientes HIV positivos é tributária da sua luta.
IHU On-Line - Quais são as contradições que você encontrou na vida de Betinho e que relatou neste livro?
Carla Rodrigues - Quando eu estava quase no final da pesquisa, assisti a uma palestra na PUC-Rio em que o professor Leandro Konder dizia que a única possibilidade de encontrar a verdade era na contradição. A partir dali, virei o enfoque do livro e, ao invés de tentar fazer como a maioria dos autores de biografias e traçar uma história linear do biografado, passei a valorizar as contradições, que são de todos nós. Betinho tinha ambigüidades em relação à fé, à generosidade, à necessidade de sobrevivência, ao desejo de superação das suas próprias limitações. Foi absolutamente atravessado pelo acaso, de tal forma que começo o livro citando a expressão do sociólogo Pierre Bourdieu, que fala em "ilusão biográfica". É uma ilusão achar que podemos, nós, biógrafos, dar coerência a trajetórias de vida que estão sempre marcadas pelo acaso. Foi o que tentei valorizar no livro.
IHU On-Line - Betinho disse, quando recebeu a doação de um bicheiro à Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids , que já era hora de tirarem dele a auréola. Para você, com todas as contradições que encontrou na vida de Betinho, ele era um ser humano merecedor da auréola que lhe atribuem ainda hoje?
Carla Rodrigues - Betinho foi bem-sucedido numa série de ações políticas e fracassou em outras. O episódio do jogo do bicho é um dos seus fracassos, não tanto pelo dinheiro que recebeu, mas pela forma como lidou com isso. Nenhum ser humano pode carregar auréolas, e Betinho também não podia. Cometeu erros, equívocos e injustiças, como todos nós.
IHU On-Line - O Ibase hoje é o que Betinho sonhou quando o fundou, em 1979?
Carla Rodrigues - Não me sinto em condições de pensar pela cabeça de Betinho, mas o que vejo da atuação pública do Ibase é, sim, totalmente coerente com os ideais de um dos seus mais importantes fundadores. No entanto, isso não quer dizer que Betinho faria igual. Quer dizer apenas que os profissionais que tocam o Ibase trabalham norteados pelos mesmos princípios de autonomia, democracia e igualdade que sempre orientaram a ação de Betinho.
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Betinho: do homem solidário ao homem contraditório. Entrevista especial com Carla Rodrigues - Instituto Humanitas Unisinos - IHU