02 Junho 2007
Jalāl al-Dīn Rūmī (1207-1273), que este ano completaria 800 anos, é um dos maiores místicos da tradição sufi e de todos os tempos. Seus sucessores o reconhecem como um grande mestre (Mevlānā ou Mawlawī ). A força de sua presença mística e amorosa fez com que sua influência ultrapassasse as fronteiras do mundo muçulmano, para além do mundo iraniano e turco. Hoje, é reconhecido e cantado em todos os continentes, pois sua poesia fala ao fundo do coração.
Faustino Teixeira, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais (PPCIR-UFJF), concedeu a entrevista que segue, por e-mail, sobre a poesia e a mística de Rûmî (1) Para ele, Rûmî é atual porque “aciona nos corações traços que são imprescindíveis para uma realização humana autêntica. É um místico que nos desperta para os pequenos sinais do cotidiano, que aciona o imperativo de uma mente alerta para cada detalhe da vida. E provoca mudanças profundas”.
Faustino Teixeira é doutor e pós-doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. Ele é autor de vários livros sobre a teologia do diálogo inter-religioso. Ele é um dos grandes parceiros do IHU. Entre suas obras citamos os livros, por ele organizados, Nas teias da delicadeza (São Paulo: Paulinas, 2006) e As religiões no Brasil: continuidades e rupturas (Petrópolis: Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes. Pierre Sanchis fez uma resenha deste livro que foi publicada na revista IHU On-Line, número 195, de 11-09-2006. Confira, também, uma entrevista com Faustino na edição 209 da IHU On-Line com o tema Por que ainda ser cristão?; uma resenha feita por ele sobre o filme O grande silêncio, publicada na edição de número 212 da revista IHU On-Line, de 19/03/2007; e uma entrevista sobre a Teologia da Libertação, publicada edição número 214 da IHU On-Line de 2 de abril de 2007.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como podemos situar Rûmî na tradição do sufismo e da poética persa?
Faustino Teixeira - Jalāl al-Dīn Rūmī (1207-1273), que este ano completaria 800 anos, é um dos maiores místicos da tradição sufi e, acrescentaria, de todos os tempos. Seus sucessores o reconhecem como um grande mestre (Mevlānā ou Mawlawī ). A força de sua presença mística e amorosa fez com que sua influência ultrapassasse as fronteiras do mundo muçulmano, para além do mundo iraniano e turco. Hoje, é reconhecido e cantado em todos os continentes, pois sua poesia fala ao fundo do coração. Entre seus títulos honoríficos está a imagem do “esplendor da fé” (Jalāl al-Dīn), e também do “mestre dos mestres”. Os ocidentais privilegiaram designá-lo com o nome de Rûmî, um topônimo que se refere à Anatólia, parte do império bizantino, onde viveu o místico, e que os muçulmanos medievais chamavam de “Roma”. O século XIII representa o grande florescimento do sufismo, com a presença de místicos de grande envergadura como Farīd al-Dīn Attār (1140-1230) e Ibn´Arabi (1165-1240). Uma singularidade do mundo persa – atual Irã – é a rica conjugação da mística com a poesia. E Rûmî é um dos exemplos mais frutuosos. Não há como traduzir a força da experiência espiritual senão mediante a poesia, que representa uma porta de abertura ao Real inominado. A linguagem poética constitui um barzakh – istmo ou mundo intermediário –, que liga o nosso mundo ao mundo que se encontra além das palavras. Num de seus belos poemas, Mevlānā fala do “outro mundo impermeável às palavras” que habita este mundo. E faz um convite que é essencial: “Lava tuas mãos e teu rosto nas águas deste lugar”.
A poética de Rûmî guarda uma musicalidade especial. Na visão deste místico, os verdadeiros amorosos são amantes da dança e da música: “Quando as asas das mariposas abrem-se ao brilho do sol, todos caem na dança”; “todo coração que arde nesta noite é amigo da música”. Sua rica poética jorra em obras preciosas como o grande poema espiritual, Mathnawī (em seis volumes), o Dīwān-i Shams-i Tabrīzī e os rubā´i . No Brasil foram publicados dois livros contendo uma breve seleção de poemas de Rûmî, tomados do Dīwān-i Shams-i Tabrīzī (Marco Lucchesi. A sombra do amado. Rio de Janeiro: Fisus, 2000 e Poemas místicos. São Paulo: Attar, 1996).
IHU On-Line - Quais são os principais traços de sua reflexão mística?
Faustino Teixeira - Se tomamos como referência o Mathnawī místico de Rûmî, que começou a ser escrito em 1262, esses traços aparecem com muita nitidez. Há que se sublinhar a complexidade que acompanha a reflexão. Só a partir de várias leituras, e num processo de amadurecimento espiritual, é que o significado começa a emergir para o leitor. A interação com o autor implica um processo de despojamento interior. Não há como fazer uma leitura passiva de sua obra místico-poética. A leitura exige participação, envolvimento pessoal, mas, sobretudo, desapego: há que se deixar penetrar e transformar pela Palavra do poeta. Há que sair da “casa de argila” para poder captar o perfume seleto do artista em seu fulgor: “Se queres mergulhar, prende a respiração”.
A busca da Unidade e a flama do amor
Os temas recorrentes na obra de Rûmî são a busca da Unidade e a flama do amor. O segredo de sua produção mais singela, o Mathnawī, encontra-se nos seus primeiros dezoito versos. No prólogo desta obra, Mevlānā fala sobre o lamento da flauta de bambu (ney), que se queixa de seu desterro. Desde que foi arrancada de sua raiz, suas notas melodiosas expressam a saudade de seu lugar, onde habita o Amado. Assim também o ser humano, como a flauta, busca ardentemente unir-se ao Amado, e a força dessa busca encontra-se no amor. O amor é a “doce loucura” que cura todas enfermidades. É o amor que purifica o coração, e nele desperta o “perfume do Sedutor”. O coração habitado pelo amor é capaz de reconhecer a beleza da diversidade, já que se torna capaz de acolher inúmeras formas. O coração purificado capta a dinâmica da generosidade divina, o abraço universal do Amado. Como outros místicos muçulmanos, Rûmî abordou, de forma admirável, a dimensão misericordiosa de Deus, que está sempre à disposição do sedento: “Não busque a água, mas mostre-se sedento, para que a água possa jorrar de alto a baixo”.
IHU On-Line - Em que medida o amor humano e a Unidade entre o ser humano e Deus aparecem na obra poética de Rûmî?
Faustino Teixeira - Rûmî é o poeta da dança da unidade. Todos os seus poemas celebram a dinâmica da unidade. É um místico que não tem domicílio definido; o seu lar é o “não-lugar”. Como aponta num de seus poemas, não se reconhece como cristão, judeu ou muçulmano; nem do Ocidente ou Oriente; de qualquer lugar deste mundo ou do paraíso: o seu verdadeiro lugar é o Amado, a união com o Amado. E revela: “O mundo é apenas Um, venci o Dois. Sigo a cantar e a buscar sempre o Um”. Mas adverte, curiosamente, que o Amado está bem próximo, pois habita o íntimo do coração: “De casa em casa buscastes resposta. Mas não ousaste subir ao telhado”. O Amado é o sempre-já-aí. Nós é que estamos dele distantes… Aliás, estamos distantes de nós mesmos, somos estrangeiros de nossa própria profundidade. Há, em seus poemas, um convite implícito: o de voltar-se para si mesmo, para o exercício de despojamento radical, de purificação do coração: “Se desejais chegar à casa da alma, buscai no espelho o rosto mais singelo”. Seria um equívoco imaginar que esta busca do Um na perspectiva da reflexão de Rûmî, levaria ao desprezo do mundo ou das coisas criadas. Na verdade, ao defender a “unidade do Real”, Rûmî está assinalando que o domínio do múltiplo encontra sua razão de ser na união com o Todo. Em nenhum momento alude que a multiplicidade do cosmos é uma ilusão ou embaraço. Na verdade, esta multiplicidade encontra suas raízes em Deus. Como outros místicos da tradição sufi, Rûmî defende uma “teoria do conhecimento inspirada”, ou seja, um conhecimento humano sempre referendado ao divino mistério. O que ele questiona é a possibilidade de um conhecimento desgarrado do sentido espiritual. O amor humano tem um lugar de destaque na reflexão de Rûmî. A seu ver, a única companhia que os fiéis partilham na travessia da existência é a “excelência das ações”. Nem os amigos nem as riquezas acompanham o ser humano para além da tumba. O que permanece é o dom das virtudes impresso nas ações.
IHU On-Line - Por que Rûmî ainda é tão atual?
Faustino Teixeira - É atual porque aciona nos corações traços que são imprescindíveis para uma realização humana autêntica. É um místico que nos desperta para os pequenos sinais do cotidiano, que aciona o imperativo de uma mente alerta para cada detalhe da vida. E provoca mudanças profundas. Suas reflexões traduzem a exigência de um trabalho interior paciente, de construção de sentimentos com o toque da delicadeza e da cortesia universais, que propiciam o alargamento das paisagens. Rûmî nos faz enxergar para além das formas limitadas, nos faz reconhecer que há luminosidade mais intensa sob o véu das nuvens, que há a força das águas para além da espuma que acompanha as ondas. Em seus relatos e histórias, apresenta-nos personagens que apontam novos caminhos. Como o santo Daqûqî, que vivia em contínua peregrinação e evitava manter vínculos que o aprisionassem a um único lugar. Era um santo que não podia se contentar com apegos e domicílios e evitava os enclausuramentos. E também o exemplo de Ayâz, o favorito do rei Mahmud, que manteve guardados seus velhos sapatos e sua roupa rasgada para manter viva a recordação de sua origem humilde: “A semente de onde provéns é a tua sandália, teu sangue e tua manta de carneiro; todo o resto, ó meu mestre, é seu dom”. Rûmî é atual porque desperta valores milenares que estão hoje abafados na lógica da sociedade de mercado. São valores como a hospitalidade, a generosidade, a cortesia, a delicadeza, a gratuidade. Há, em nosso tempo, um cansaço que tende a generalizar-se, uma rotina de banalidade, marcada por uma dinâmica que é necrófila. Como construir a vida e a felicidade numa sociedade onde os “valores” são outros: a concorrência, a competitividade, a produtividade, o individualismo, a busca de sucesso a todo custo etc. A mística de Rûmî vai noutra direção, naquela que conta verdadeiramente.
IHU On-Line - Como a reflexão poética de Rûmî pode contribuir em uma sociedade secularizada, tão marcada pela descrença no místico, no mágico e no divino, tão centrada nos objetos e na fruição pessoal, individualista?
Faustino Teixeira - Um dos importantes pensadores atuais, Muhammad Khatami - ex-presidente da República Islâmica do Irã - é um grande entusiasta do diálogo entre as civilizações. Reconhecedor das conquistas positivas realizadas pelo mundo ocidental, manifesta-se igualmente atento aos limites que acompanharam sua dinâmica, entre os quais sublinha o traço da secularização. Trata-se da grande diferença que marca o caminho ocidental do mundo islâmico, onde o toque do divino está presente em toda parte. E o líder iraniano assinala que, no campo espiritual, o ocidente dispõe de menores recursos. Ele enfatiza como uma urgência no tempo presente a retomada da “via do coração”, tão sinalizada pelos grandes místicos. A seu ver, o intelecto não consegue alcançar senão as “cercanias do transcendente”. Ou, como diz Rûmî, “o absoluto há de fugir sempre do que é incerto”. O modo de condução da razão no ocidente gerou o secularismo e suas demais vertentes, abafando dimensões que também são essenciais para a afirmação do humano, como a dinâmica do coração. A razão sozinha não consegue desvelar a realidade, que é mais sutil e complexa. Ela necessita do aporte essencial da “fé no coração”. Na tradição mística islâmica, o coração constitui o órgão sutil por excelência da percepção mística. Segundo Rûmî, aqueles que “poliram” o coração transcendem o mundo das formas e das cores, podendo contemplar “sem cessar a Beleza a cada instante” (MI, 3492). A reflexão místico-poética de Mevlānā tem muito a contribuir para o “reencantamento do mundo”, para a afirmação de um outro olhar e para a retomada de outras dimensões, substantivas, para o crescimento da pessoa. É alguém muito especial que nos acorda para dimensões adormecidas do ser, que nos faz despertar para a sublime atenção aos segredos de Deus. Rûmî é portador de uma notícia especial que corresponde a uma sede que é universal, da água da generosidade divina, da “caravana de açúcar”. Mas há que estar atento para perceber esta presença novidadeira: “Limpa bem teus ouvidos e recebe nítida essa voz – o som do céu chega como um sussurro”.
IHU On-Line - Em que medida as grandes correntes místicas do islamismo contribuem para a pesquisa na área do diálogo inter-religioso e da mística comparada? Rûmî pode ajudar a relacionar o cristianismo e o islamismo?
Faustino Teixeira - Num livro que causou muita resistência entre alguns teólogos católicos – Carta a um religioso (1942) -, Simone Weil dizia que “os místicos de quase todas as tradições religiosas coincidem quase até à identidade”. No horizonte de toda tradição religiosa autêntica há um “ponto luminoso”, que é o centro nevrálgico da esfera da unidade, que simboliza a teofania suprema. É o ponto que habita na intimidade de cada tradição, na sua profundidade. Na medida em que nos aproximamos deste ponto (nuqta), crescemos em liberdade, superando os vínculos e “nós” que geram todos os exclusivismos. Podemos observar na tradição mística sufi esta impressionante abertura inter-religiosa. A encontramos em Hallaj, em Ibn´Arabi e também em Rûmî. O segredo desta abertura está na lógica do coração. Como bem sublinhou Simone Weil, somente “aquele que conhece o segredo dos corações” é capaz de alcançar o “segredo das diferentes formas de fé”. Para Mevlānā, o segredo do Mistério ultrapassa as formas religiosas que são sempre fragmentárias. A substância da “árvore da vida” está para além das formas superficiais: “Ela tem milhares de nomes, mas é Uma, - corresponde a todas as suas descrições, mas é indescritível” (MII, 3641-3679). A “árvore da vida” frustra todos aqueles que buscam simplesmente nomes, pois ela diz respeito a qualidades. Na visão de Rûmî, a religião mais autêntica e a oração mais sublime são aquelas que brotam de um coração ardente, como na clássica história de Moisés e o pastor, relatada no Mathnawī (MII, 1720-1785). A presença graciosa de Deus age de forma diversificada nos corações, provocando expressões distintas e particulares de acolhimento, para além das rígidas fronteiras traçadas pelas ortodoxias, muitas vezes frias e insensíveis. Na visão de Rûmî, “o desacordo entre os homens é provocado pelos nomes, a paz advém quando eles alcançam a realidade” (MII, 3680).
Nota
1.- Rûmî nasceu em 30 de setembro de 1207 na região de Balkh, atual Afeganistão. Herdou de seu pai, um conhecido teólogo e mestre espiritual - Baha´uddin Walad -, o interesse pelas questões teológicas e místicas. Entre 1210 e 1212, sua família se estabeleceu em Samarcanda, então sob o controle mongol. A partir de 1216, a família faria uma série de viagens, passando por Bagdá, Meca e Damasco, até se instalar em Konya (Anatólia) no ano de 1229. Na ocasião, esta cidade era espaço de refúgio de inúmeros literatos, artistas e místicos do mundo islâmico oriental. Rûmî casou-se duas vezes e teve 4 filhos. Decisivo na sua vida foi o encontro com o dervixe errante, Shams al-Dîn Tabrîzî, no ano de 1244. Foi o encontro de dois oceanos espirituais. Trata-se de uma das mais espetaculares e ricas histórias de união mística. Shams foi para Rûmî uma real “manifestação teofânica”, inspirando profundamente toda a sua produção poética e mística posterior. Rûmî faleceu no dia 17 de dezembro de 1273, em Konya, onde se encontra o seu mausoléu, que é ainda hoje lugar de intensa peregrinação. Dentre suas produções, encontra-se o grandioso Mathnawî, em seis volumes, mas também o tratado em prosa Fihi-ma-fihi (o livro do interior), as cartas (Makâteb), além da significativa produção poética: as odes místicas, conhecidas como Dîwân-i Shams, e as quadras de amor, Rubâ´iyât.
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"Rûmî é o poeta da dança da unidade". Entrevista especial com Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU