26 Março 2016
“No último século, o sucesso da ciência levou à sua perdição. Diluiu-se o encantamento cósmico que ela herdara daqueles astrônomos, os pais fundadores do caminhar da ciência, graças à sua subserviência ao capitalismo globalizante", analisa o físico.
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Além dessa recente experiência dos pesquisadores do Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferômetro Laser (LIGO, na sigla em inglês), ao longo da entrevista o físico também aborda o papel da Cosmologia no campo científico e debate o caráter da ciência e suas relações com o contexto econômico social ao longo dos tempos.
Para Novello, “no último século, o sucesso da ciência levou à sua perdição. Diluiu-se o encantamento cósmico que ela herdara daqueles astrônomos, os pais fundadores do caminhar da ciência, graças à sua subserviência ao capitalismo globalizante. Ao renegar suas origens metafísicas, colocou seu saber a serviço da técnica e abdicou de sua função mais nobre: produzir uma visão de mundo centrada no homem, não no ‘sistema’”.
Mario Novello é graduado em Física pela Universidade de Brasília - UnB, mestre em Física pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas - CBPF e doutor na mesma área pela Université de Genève, Suíça, com pós-doutorado pela University of Oxford, Inglaterra. Criou em 1976 o grupo de Cosmologia e Gravitação no CBPF, inaugurando no Brasil o estudo sistemático da Cosmologia. Em 2003 criou o Instituto de Cosmologia Relatividade e Astrofísica – ICRA, que foi alocado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia sob o guarda-chuva institucional do CBPF, instituição onde atua hoje. Entre os diversos prêmios que recebeu, destaca-se o título de Doutor Honoris Causa, em 2004, concedido pela Universidade de Lyon, França, por seus estudos sobre modelos cosmológicos sem singularidade. É autor de centenas de artigos e livros, como Os jogos da natureza (Rio de Janeiro: Campus, 2004), Máquina do tempo – Um Olhar Científico (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005) e Do Big Bang ao universo eterno (Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor observa a comprovação da existência de ondas gravitacionais? Qual a questão de fundo nessa comprovação?
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Mario Novello - Vamos por partes. Em primeiro lugar, a teoria da Relatividade Especial feita por Poincaré [1], Lorentz [2], Einstein [3] e outros requer que toda propagação de energia seja feita com velocidade inferior ou igual à da luz. Isso significa que as duas formas fundamentais de interação do mundo clássico (isto é, não quântico), os campos eletromagnético e gravitacional, devem se propagar sob a forma de ondas. Isso é consequência da moderna descrição dessas duas forças clássicas, o eletromagnetismo e a gravitação. A observação das ondas eletromagnéticas foi realizada há mais de um século e o formidável avanço tecnológico do século XX muito deveu à existência e controle dessas ondas.
A dificuldade em medir ondas gravitacionais se deve a várias propriedades da força gravitacional: ela é extremamente fraca (a interação eletromagnética entre dois corpos materiais é da ordem de 10 elevado a potência 39 maior do que a força gravitacional existente entre esses mesmos dois corpos); ademais, contrariamente à interação eletromagnética, a força gravitacional é somente atrativa. Isso significa que não podemos controlar, em laboratório terrestre ou em qualquer outro lugar, a interação gravitacional dos corpos e, consequentemente, não podemos artificialmente produzir uma onda gravitacional.
Ou seja, podemos observar a onda, mas não manipulá-la. Ora, foi precisamente a propriedade de controle das ondas eletromagnéticas que a tornou tão importante para a sociedade ao longo do século XX.
Em resumo, se não existisse onda gravitacional, não somente a teoria da Relatividade Geral (que nada mais é do que uma teoria da interação gravitacional), mas toda teoria de campo de interação deveria ser revista, pois a gravitação não se enquadraria em suas propriedades formais. Essa é a questão de fundo envolvendo a existência das ondas gravitacionais. A observação dessas ondas não altera em nada as modernas teorias de campo da física. Por outro lado, caso não fossem observadas, uma verdadeira revolução deveria ocorrer, pois isso entraria em choque com ideias básicas da física moderna, independentemente da teoria da Relatividade Geral ou de outra teoria da gravitação.
“Há uma riqueza conceitual muito mais ampla e muito mais criativa que não está associada ao legado do Einstein” |
IHU On-Line - No que a comprovação da existência das ondas gravitacionais influencia na compreensão do cosmos?
Mario Novello - Nesse momento, somente com essa observação anunciada, muito pouco, pois ela está associada a um processo local de astrofísica. Somente quando (e se) observações detectarem ondas que possam ter vindo de processos não localizados em uma região compacta, mas sim globais, eventualmente vindos de regiões onde o universo inteiro estava muito mais concentrado, aí sim, teríamos informações que permitiriam fazer ilações sobre as propriedades globais do universo, isto é, aquilo de que trata a Cosmologia.
IHU On-Line - Como a comprovação da Teoria da Relatividade pode contribuir para a compreensão do Universo em termos existenciais?
Mario Novello - Entendo de sua pergunta que você está aceitando que a observação anunciada das ondas gravitacionais tenha sido uma confirmação da teoria da Relatividade Geral - RG. Não é bem assim. Ela mostra somente que a RG, como outras teorias de campo da gravitação, não está em contradição com as observações. Essa descoberta não singulariza a RG, embora os dados sejam compatíveis com ela. Outras teorias da gravitação também podem ser colocadas em acordo com esses dados observacionais.
A Relatividade Geral possui, por outro lado, questões às quais ela não responde convenientemente. A singularidade cósmica inicial presente no modelo padrão, por exemplo, é uma delas.
IHU On-Line - De que forma a comprovação da existência de ondas gravitacionais atualiza o legado de Albert Einstein? Em que medida sua metodologia científica, suas formas de ver o mundo, deve influenciar outros campos da ciência, numa perspectiva interdisciplinar?
Mario Novello - Há uma riqueza conceitual muito mais ampla e muito mais criativa que não está associada ao legado do Einstein. Deixe-me somente dar um pequeno exemplo para esclarecer o que estou dizendo referente ao conceito “liberdade”. Sabemos que nas relações sociais a caracterização de liberdade tem um caráter relativo. Posso estar caminhando por uma rua em uma cidade, do modo como eu queira, e, no entanto, não me considerar livre. Os existencialistas foram os responsáveis, no século XX, por produzir uma profunda crítica da liberdade individual, enfatizando sua relatividade. Nas ciências da natureza, tem-se a impressão de que esse conceito poderia ter um valor absoluto. E, no entanto, não é assim. Vejamos como isso é possível, ou seja, por que e como somos levados a relativizar, na física, a condição de um corpo estar livre de qualquer ação externa.
Uma das consequências mais notáveis da teoria da Relatividade Especial foi a substituição de um único tempo comum a todos os corpos por uma infinidade de tempos próprios, um para cada corpo ou observador. Como consequência, a tradicional geometria euclidiana usada na física foi substituída pela geometria de Minkowski [4], uma estrutura formal particular das geometrias possíveis construídas por Riemann [5]. Cada observador possui assim o seu tempo próprio, e a noção de simultaneidade passou a depender de seu estado de movimento. Essa passagem de um só tempo para uma miríade de tempos relativos a cada observador retirou de cena o tempo absoluto newtoniano.
Em um momento posterior, na segunda década do século XX, o aparecimento da teoria da Relatividade Geral, uma nova teoria da gravitação associada à modificação da geometria riemanniana pela matéria e energia, retirou o caráter imutável, rígido, da estrutura minkowskiana, passando a considerar o espaço-tempo como possuindo uma geometria variável, dependente da quantidade de matéria e energia existente em uma dada região.
A universalidade da gravitação foi então responsável pela modificação da geometria do mundo, ao afirmar que toda matéria, tudo que existe, cada observador, está imerso em uma única e global estrutura geométrica, variável, possuindo uma dinâmica controlada pela distribuição de energia e matéria. A característica importante a reter é precisamente a preservação da univocidade, ou seja, existe somente uma geometria no mundo. O caráter universal da interação gravitacional fixa a geometria onde tudo-que-existe está mergulhado, ou seja, a totalidade espaço-tempo.
Depois da grande revolução einsteiniana da Relatividade Geral e do reconhecimento de que a universalidade dos processos gravitacionais implica em modificação da geometria do mundo, concluiu-se que a física havia consagrado uma nova descrição absoluta, posto que qualquer outra força de caráter não gravitacional exerce uma ação sobre o corpo que o desvia da geodésica, a curva que um corpo livre de qualquer força seguiria.
Ou seja, um corpo é livre se sobre ele atuam somente forças gravitacionais (pois estas atuam como se os corpos sob sua ação seguissem caminhos livres, as geodésicas, em um espaço-tempo de geometria variável). Por outro lado, um corpo atuado por qualquer outra força não é livre. Tal descrição permitiria caracterizar de um modo absoluto o que chamaríamos “liberdade na física”.
A liberdade é relativa
Pois bem, muito recentemente descobriu-se que esse não é o caso e que a noção de “corpo livre” depende da estrutura métrica do espaço onde esse corpo é descrito. Dito de outro modo: um corpo submetido a uma força em um dado espaço-tempo pode ser descrito, de modo equivalente, como se estivesse livre de qualquer força desde que essa descrição considere esse corpo como se estivesse mergulhado em uma outra geometria específica. Isso significa que cada corpo possui uma “sua” geometria na qual o efeito da força externa que sobre ele atua é substituído pelas propriedades da geometria onde o corpo é descrito.
Embora à primeira vista se trata do mesmo procedimento realizado na teoria da Relatividade Geral, há uma diferença notável: no caso gravitacional essa mudança da geometria é universal, ou seja, independe de qualquer característica do corpo em questão; enquanto nos demais casos, envolvendo outras forças, a alteração das distâncias espaço-temporais dependem das características do corpo e da força que sobre ele atua.
Mesmo não tendo um caráter universal, devemos reconhecer que esse procedimento produz um resultado notável: a substituição dos efeitos da aceleração de qualquer corpo por um caminho geodésico em um espaço-tempo curvo. Ou seja, o corpo, ao ser descrito pela alteração da geometria onde ele está mergulhado e consequentemente desprovido de aceleração nessa geometria efetiva, deve ser considerado como um corpo livre.
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“A liberdade dos corpos na física depende da representação escolhida” |
Evolução da estrutura da geometria do espaço-tempo
Recentemente, esse mecanismo de transformar a descrição de processos dinâmicos exercido por forças de qualquer natureza por alterações na geometria por onde o corpo se movimenta mostrou ser bastante geral e pode ser aplicado a todo tipo de força. Isso leva a firmar um modo novo de descrever processos dinâmicos e que consiste naquilo que eu chamo de Relatividade Métrica. Assim, a evolução da estrutura da geometria do espaço-tempo desde o começo do século XX até os dias de hoje pode ser sintetizada da seguinte forma:
A Relatividade Especial, no começo do século XX, se fundamentou sobre o princípio de que cada observador possui um tempo próprio e se movimenta em um espaço-tempo único possuindo uma geometria comum. A Relatividade Geral na segunda década daquele século alterou essa geometria tornando-a variável e universal.
A Relatividade Métrica se baseia no princípio de que cada observador, sobre o qual atuam diferentes forças, institui sua própria geometria onde as forças que atuam sobre ele são formalmente eliminadas. Como a geometria resultante (aquela onde o corpo está livre de qualquer ação e se movimenta ao longo de uma geodésica nessa geometria associada) depende do movimento, concluímos que cada corpo instaura uma sua geometria particular na qual ele é um corpo livre, isento de qualquer ação externa. Essa eliminação da força pela caracterização de uma geometria específica para cada corpo resulta ser uma simples questão de escolha de representação. Adquire-se assim uma novidade inesperada: a liberdade dos corpos na física depende da representação escolhida.
Essa descrição pode ser transportada de modo análogo para outros saberes e constituir uma representação de situações cotidianas na sociedade humana.
IHU On-Line - O que faz com que se leve 100 anos para aceitar as formas de ver o mundo de Einstein? O que esse processo revela acerca do pensamento científico moderno e pós-moderno?
Mario Novello - Einstein foi um excelente físico e um muito bom técnico do fazer ciência. No entanto, sua interpretação das teorias da física, dele e de outros, não está à altura do que ele conseguiu no desenvolvimento do conhecimento científico. Vários exemplos podem ser apontados, mas para não cansar o leitor, vou apresentar somente um e talvez o mais simbólico: sua tentativa fracassada de erigir uma cosmologia a partir de sua teoria da gravitação.
E por que ele pode fazer isso? Porque das quatro forças que os físicos descobriram e que até hoje são suficientes para produzir explicações convincentes sobre todos os processos físicos conhecidos, na descrição do universo somente importa a gravitação. Isso se deve ao fato de sua universalidade (tudo que existe interage gravitacionalmente) e o fato de que ela é sempre atrativa. As outras três concorrentes não produzem uma cosmologia. As duas forças nucleares (chamadas fraca e forte) possuem alcance muito limitado, da ordem das dimensões atômicas. Ou seja, não têm um papel relevante na caracterização das imensidões de espaço e tempo que constituem o universo. Quanto às forças eletromagnéticas, embora elas também sejam, como a gravitação, de longo alcance, possuem uma propriedade crítica: nem sempre são atrativas e, ademais, não são universais. Por exemplo, os neutrinos não possuem carga elétrica e consequentemente não interagem pelo canal eletromagnético. Costumo descrever essa universalidade da gravitação com uma frase típica: Caio, logo existo! Querendo significar que tudo que existe interage gravitacionalmente.
É por isso que toda nova teoria da gravitação fundamenta uma cosmologia. Pois bem, Einstein constrói sua cosmologia a partir de quatro hipóteses:
1- Existe um tempo cósmico global;
2 - A geometria do mundo é estática;
3 - A topologia do mundo é fechada;
4 - A fonte da gravitação é a totalidade da matéria e energia existente no mundo. Além disso, existe uma força universal de repulsão gravitacional, caracterizada por uma constante de caráter exclusivamente cosmológico e que pode ser desprezada em processos gravitacionais locais.
Aqui, é suficiente que nos concentremos no segundo item dessa série de hipóteses que Einstein usou para produzir sua cosmologia. A ideia de um universo estático tendo somente matéria incoerente como fonte resultou ser incompatível com as equações que ele assumiu ao elaborar sua teoria da Relatividade Geral. Ou seja, não é possível compatibilizar a hipótese de que o universo não é um processo dinâmico (ou seja, ele tem a mesma configuração sempre) com as equações da Relatividade Geral.
Ora, o apriorismo de Einstein ao propor uma descrição do Universo como uma configuração estática foi tão forte que ele não hesitou em modificar suas próprias equações com as quais havia descrito os processos gravitacionais para permitir, com essas alterações da dinâmica gravitacional, a possibilidade de existir uma solução que descreveria um universo com as características que ele considerava que deveria ter o universo.
Ou seja, ele colocou sua imagem apriorística sobre o Universo à frente de sua proposta de descrição da dinâmica da gravitação. Com isso, deixou de prever a característica mais fundamental do Universo: a sua dinâmica, a propriedade de que o Universo não tem a mesma configuração sempre e que sua configuração varia com o tempo cósmico — o que foi realizado pelo matemático Friedman [6], alguns anos depois da fracassada proposta de Einstein.
“No último século, o sucesso da ciência levou à sua perdição” |
IHU On-Line - O que o senhor espera da ciência pós-moderna? Por que linha imagina que vá o pensamento científico e de que forma deve influenciar a relação do homem com o planeta e em que medida a comprovação da Teoria da Relatividade tem a ver com isso?
Mario Novello - Vou repetir aqui, um trecho de um comentário que fiz recentemente em um diálogo com o filósofo Marcio Tavares d’Amaral:
Nos séculos XVI e XVII, no despertar do modo científico, Brahe [7], Kepler [8], Newton [9] e outros caminhavam como sonâmbulos, assim Koestler [10] os nomeou. Descobrindo conexões ou inventando-as no escuro, tateando. Esse caminho tradicional, histórico, tortuoso, tatibitate, no qual reconhecemos o procedimento humano, verdadeiramente humano, conduziu a algumas certezas sobre o mundo. A partir delas foi oferecida uma visão científica do mundo travestida de versão oficial da realidade. Esse saber sem consequências, ou melhor, sem objetivo aparente, esse sentimento grandioso de projetar a configuração do universo, que beirava o êxtase religioso, permanece atual? Existe ainda algum resquício de maravilhamento, mesmo que escondido, latente?
No último século, o sucesso da ciência levou à sua perdição. Diluiu-se o encantamento cósmico que ela herdara daqueles astrônomos, os pais fundadores do caminhar da ciência, graças à sua subserviência ao capitalismo globalizante. Ao renegar suas origens metafísicas, colocou seu saber a serviço da técnica e abdicou de sua função mais nobre: produzir uma visão de mundo centrada no homem, não no “sistema”. Esqueceu-se a máxima que garantia que fora do homem não há salvação e se deixou seduzir pelo sucesso imediato que sua competência técnica produz como serviçais do Estado.
Ao longo do século XX a Cosmologia permitiu o renascimento da esperança de que a ciência não abandonaria sua função maior e permitiria sonhar novamente com o simples conhecer o universo. Começamos essa caminhada produzindo um mito científico de criação insignificante, menor, reducionista — o Big Bang [11] —, relegando a grandiosidade do cosmos a detalhes dependentes de uma física terrestre. Arrogantemente, deixou-se levar pela ideia simplista de que o universo é o quintal da Terra e que a física terrestre pode ser extrapolada sem alterações maiores para a descrição completa do universo.
Outro mito científico de criação apareceu, alargando o tempo de existência desse nosso universo e gerando novas perguntas que não podem aparecer no cenário Big Bang, pois esse cenário Big Bang exclui a possibilidade de uma descrição racional do cosmos ao longo de toda a história de sua eterna existência.
O sistema capitalista altamente desenvolvido e global ao qual somos impostos nesse século, o modo pelo qual se organiza o conhecimento científico hoje, as necessidades e funções para as quais ele está sendo orientado, sua falta de pudor na dependência das tecnologias associadas que opera um movimento destruidor em seu entorno, aponta para o aparecimento de um outro caminho. É difícil precisar com rigor essa nova forma e o alcance de sua ação na geração de uma visão do mundo, pois essa estrutura está em formação, limitando-se ainda ao território dos símbolos. Esse movimento se realiza na prática contra o indivíduo, impondo, àqueles que ousam resgatar os ideais dos astrônomos-sonâmbulos, a pecha irônica de se travestirem com uma fantasia trágica, romântica, à sombra de um ideal perdido.
"Começamos essa caminhada produzindo um mito científico de criação insignificante, menor, reducionista — o Big Bang —, relegando a grandiosidade do cosmos a detalhes dependentes de uma física terrestre" Créditos da imagem: lordgeekoficial.blogspot.com.br
O papel da Cosmologia na ciência
A Cosmologia mostrou como é possível substituir no imaginário popular a religião pela ciência e em particular na questão mais fundamental, referente à origem de tudo que existe. Mas não devemos fabricar ilusões, nem ser substitutos da religião. A ciência tem o papel de produzir questões sobre o mundo. Tentar descrevê-las segundo o método racional e procurar alternativas de soluções, sabendo que não podemos obter a resposta completa de nenhuma delas, exceto de questões menores, que não permitem gerar uma visão de mundo, a não ser que nos contentemos com migalhas da razão desperdiçadas pelo método científico.
E é, então, porque a Cosmologia permite colocar questões fundamentais, tal como a principal delas, "por que existe alguma coisa e não nada?", que ela vai além da Física, que ela não pode se identificar com esta. Porque ela deve ser entendida como crítica, estabelecendo uma razão cósmica e constituindo, neste ato, a refundação da Física, tratando questões que esta ciência se impôs não examinar ao se autolimitar, restringindo-se a tratar do que lhe parece ser a realidade, seu domínio de ação, evitando a todo custo considerar a virtualidade como um reservatório de intenções da Natureza.
Pois é precisamente isso que a Cosmologia faz, ou melhor, se propõe fazer: ir além, ousar estabelecer uma ponte atravessável entre a Física e outros saberes que envolvem a Totalidade, disponibilizando suas duas direções. Avançando em pleno território da virtualidade para de lá retirar o que está de tal modo identificado com a máscara do real que quase não se lhe pode mais tirar. É assim que devemos entender a função da Cosmologia, como um resgate da ciência em seus primórdios, mais próximas dos astrônomos-sonâmbulos que criaram a ciência moderna, quando ela ainda deixava as portas abertas para que a tradição que o homem acumulara ao longo de sua história, nos variados saberes, pudesse por ali passar, entrar e sair. Resgatar outros saberes, colocar-se a questão fundamental e repeti-la inúmeras vezes: "por que existe alguma coisa e não nada?"
Se os filósofos fizeram desta questão um tema convencional de sua investigação, isso não o torna um tema proibido para os outros, aqueles amigos de outros saberes. A Física deixou de lado esta questão, e hoje devemos reconhecer que essa estratégia é entendida como vitoriosa, pois foi capaz de permitir-lhe prosseguir, avançando em seu conhecimento e sua dominação da natureza. Mas hoje, quando a Cosmologia assume seu papel e se estrutura para produzir, em sua prática científica, a refundação da Física, deixar de examinar a questão fundamental em nome de compromissos passados ou em nome da negação da produção de hipóteses sobre a natureza da physis, não pode mais ser considerada uma razão suficiente.
“A Cosmologia deve ser entendida em seu significado abrangente, como a etapa atual de evolução da Física” |
Pensar que ela não produziu os instrumentos formais com os quais essa pergunta adquire significado em seu interior e permite o acesso a respostas aceitáveis, seria desprezar a etapa de evolução que ela sofreu, seria esquecer que afinal de contas a Cosmologia deve ser entendida em seu significado abrangente, como a etapa atual de evolução da Física. Desta forma, se estabelece sua função e uma nomenclatura convencional, na qual o que importa é menos o nome — Cosmologia ou Física — mas sim a atitude, o compromisso com a refundação desta ciência.
Mas não podemos esquecer que há um outro aspecto grandioso dessa ação da Cosmologia, pois ao mesmo tempo que estamos olhando e organizando, com nossos companheiros de ciência, a entrada desta questão fundamental em nossa prática científica, não podemos esquecer que estamos igualmente penetrando no coração da aldeia filosófica e que ali não devemos nos declarar amigos da sabedoria, amigos dos filósofos, mas sim, concorrentes. Devemos disputar, neste território tradicional da Metafísica, a questão fundamental. E, chegando ali, entre estes amigos do saber, ao sermos por eles questionados sobre nossa função e expectativa, naquele lugar, onde a questão fundamental se estabelece como tal, não devemos responder como físicos, mas como cosmólogos.
Não devemos procurar afirmar uma resposta de controle, mas repetir ad nauseum: estamos aqui porque queremos usar todos os meios que a razão permite, para que possamos também colocar esta mesma pergunta. Não porque, como alguns o afirmam arrogantemente, tenhamos a resposta ao nosso alcance, pronta, definitiva. Nem porque queiramos impor a estes amigos do saber, um modo preferencial, único, de formular esta pergunta. Nem para contrapor nossa visão especial à deles. Mas simplesmente porque nós, cosmólogos, encontramos um modo diferente, novo, particular de respondermos à pergunta fundamental, esta antiga questão: por que existe alguma coisa e não nada? Não é difícil entender as razões pelas quais o cosmólogo pode afirmar, a partir da constatação formal da instabilidade do Vazio, a partir do decaimento e transformação deste Vazio, que não seria possível não haver alguma coisa e, consequentemente, que o Universo estava condenado a existir. Ou, como disse em outro lugar, é difícil, é muito difícil, é quase impossível não existir.
Por João Vitor Santos | Edição Leslie Chaves
Notas:
[1] Jules Henri Poincaré (1854-1912): Professor, matemático, físico e astrônomo francês, primo do presidente francês Raymond Poincaré (1860-1934) e importante figura no campo da mecânica celeste. Estudioso da matemática pura e aplicada, empregando os recursos da análise ao estudo das equações diferenciais, foi o criador de uma das mais importantes contribuições à matemática: as propriedades das funções automorfas (1880), uma generalização das funções elípticas. Participou ativamente da polêmica sobre a crise dos fundamentos da matemática, surgida logo após a formulação da teoria dos conjuntos de Georg Cantor (1845-1918), e afirmou a impossibilidade de reduzir a matemática à lógica, assim como a necessidade de um princípio não-formal para fundamentar a matemática. A sua obra abrangeu a matemática pura, a física matemática e a mecânica celeste e hoje é considerado o mais importante pesquisador sobre a teoria da relatividade antes de Albert Einstein (1879-1955). Escreveu extensamente sobre probabilidades dando continuidade as pesquisas de Pierre Laplace (1749-1827). (Nota da IHU On-Line)
[2] Hendrik Antoon Lorentz (1853-1928): físico holandês, que se tornou conhecido pela sua teoria eletrônica da matéria. Compartilhou o prêmio Nobel de física de 1902 com o físico holandês Pieter Zeeman pela descoberta dos efeitos do magnetismo sobre a luz (efeito Zeeman). (Nota da IHU On-Line)
[3] Albert Einstein (1879-1955): físico alemão naturalizado americano. Premiado com o Nobel de Física em 1921, é famoso por ser autor das teorias especial e geral da relatividade e por suas ideias sobre a natureza corpuscular da luz. É, provavelmente, o físico mais conhecido do século XX. Sobre ele, confira a edição nº 135 da Revista IHU On-Line, sob o título Einstein. 100 anos depois do Annus Mirabilis, e a edição 141, de 16-05-2005, chamada Terra habitável: um desafio para a humanidade. Veja também a edição número 474 da revista IHU On-Line sob o título Ano Internacional da Luz. Descobertas e incertezas, de 05-10-2015. (Nota da IHU On-Line)
[4] Hermann Minkowski (1864-1909): foi um matemático alemão de ascendência judia-lituana, que criou e desenvolveu a geometria dos números e que usou métodos geométricos para resolver problemas difíceis em teoria dos números, física matemática e teoria da relatividade. (Nota da IHU On-Line)
[5] Bernhard Riemann (1826-1866): foi um matemático alemão, com contribuições fundamentais para a análise e a geometria diferencial. Na literatura matemática são famosas sua chamada função zeta e sua conhecida hipótese, esta última é uma célebre conjectura que fez parte da famosa lista de problemas de Hilbert e que se encontra ainda em aberto, sendo para a análise o que o último teorema de Fermat é para a teoria dos números. (Nota da IHU On-Line)
[6] Milton Friedman: nascido em Nova Iorque, em 1912, foi professor da Universidad de Chicago de 1946 a 1976, pesquisador do National Bureau of Economic Research, de 1937 a 1981, e presidente da American Economic Association, em 1967. Monetarista, se opôs ao keynesianismo no momento de seu máximo apogeu, nos anos 1950 e 1960. Propõe resolver os problemas da inflação limitando o crescimento da oferta monetária a uma taxa constante. Obteve o Prêmio do Banco da Suécia, em Ciências Econômicas, em memória de Alfred Nobel. (Nota da IHU On-Line)
[7] Tycho Brahe (1546-1601): astrônomo dinamarquês. Teve um observatório chamado Uranienborg na ilha de Ven no Oresund entre a Dinamarca e a Suécia. Tycho esteve a serviço de Frederico II da Dinamarca e mais tarde do imperador Rodolfo II. É um dos representantes mais prestigiosos da ciência nova - a ciência renascentista que abrira uma brecha no sólido edifício construído pela Idade Média, baseado na síntese de tradição bíblica e da ciência de Aristóteles. Continuando o labor iniciado por Copérnico e que foi acolhido pelos sábios ocidentais com alguma repugnância, estudou detidamente as fases da lua e compilou inumeráveis dados que mais tarde serviriam a Kepler para os seus cálculos. (Nota da IHU On-Line)
[8] Johannes Kepler (1571-1630): astrônomo, matemático e astrólogo alemão e figura-chave da revolução científica do século XVII. É mais conhecido por formular as três leis fundamentais da mecânica celeste, conhecidas como Leis de Kepler, codificada por astrônomos posteriores com base em suas obras Astronomia Nova, Harmonices Mundi, e Epítome da Astronomia de Copérnico. Elas também forneceram uma das bases para a teoria da gravitação universal de Isaac Newton. (Nota da IHU On-Line)
[9] Isaac Newton (1642-1727): físico, astrônomo e matemático inglês. Revelou como o universo se mantém unido através da sua teoria da gravitação, descobriu os segredos da luz e das cores e criou um ramo da matemática, o cálculo infinitesimal. Essas descobertas foram realizadas por Newton em um intervalo de apenas 18 meses, entre os anos de 1665 e 1667. É considerado um dos maiores nomes na história do pensamento humano, por causa da sua grande contribuição à matemática, à física e à astronomia. O IHU promoveu de 3 de agosto a 16-11-2005 o Ciclo de Estudos Desafios da Física para o Século XXI: uma aventura de Copérnico a Einstein. Sobre Newton, em específico, o Prof. Dr. Ney Lemke proferiu palestra em 21-09-2005, intitulada A cosmologia de Newton. (Nota da IHU On-Line)
[10] Arthur Koestler (1905-1983) foi um jornalista, escritor, e ativista político judeu húngaro radicado no Reino Unido. Nos anos 1940 e começo dos anos 1950 foi talvez o mais amplamente lido romancista político da época. Darkness at Noon2, considerado sua obra prima, foi publicado em 1940, seguido por Arrival and Departure (1943), Thieves in the Night (1946). A partir de 1956, mergulhou em questões de ciência e misticismo, passando a ter um grande número de seguidores entre os jovens. Nessa área, entre suas obras mais significativas está Os sonâmbulos ("The sleepwalkers"). O livro não é apenas mais uma "demonstração" dos avanços consistentes da ciência astronômica desde seus pais ao longo do tempo. Pois seus primeiros protagonistas não eram cientistas no sentido moderno. Pelo contrário, viviam numa época em que não havia fronteira entre ciência e misticismo. A tônica do livro é a passagem dessa era para a moderna, a da "separação dos caminhos", por trajetórias muitas vezes erráticas. (Nota da IHU On-Line)
[11] Big Bang: a teoria do Big Bang, ou Grande Explosão, foi sugerida primeiramente pelo padre cosmólogo belga Georges-Henri Édouard Lemaître (1894-1966), quando expôs uma teoria propondo que o Universo teria tido um início repentino. A teoria do Big Bang, entretanto, não implica em demonstrar que algo explodiu ou que uma explosão foi a causa dessa dilatação ainda hoje observável, já que as lentes dos modernos telescópios espaciais usados atualmente permanecem descrevendo um resultado de explosão (uma fuga cósmica). Embora a Teoria do Big Bang seja a mais aceita pelos cientistas para explicar o início do universo, algumas contradições se mantém. (Nota da IHU On-Line)
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A retomada do encantamento cósmico. Entrevista especial com Mario Novello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU