06 Julho 2014
“A CNBB assume, em seus compromissos, todas as causas dos povos da terra, das águas e da floresta, e elas têm em comum a luta pelo reconhecimento do seu direito aos territórios em que vivem, produzem alimentos saudáveis para si e para as demais pessoas; e questiona e condena o desejo desenfreado dos que estão até propondo mudanças na Constituição para tomar as terras dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pescadores”, assinala o assessor de movimentos sociais.
O documento “A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI”, elaborado na 52ª Assembleia da CNBB, em maio deste ano, “expressa a vontade de um posicionamento pastoral atualizado em relação aos que são denominados no próprio documento como ‘povos da terra, das águas e da floresta’”, pontua Ivo Poletto em entrevista concedida à IHU On-Line, por e-mail.
Na avaliação dele, o atual documento da CNBB demonstra que “os bispos reconhecem que a realidade mudou e, por isso, sua posição crítica em relação à realidade agrária procura dar conta das mudanças e seu posicionamento procura responder aos novos desafios”.
Poletto foi um dos assessores da CNBB em 1980, e à época ajudou a elaborar o documento “Igreja e Problemas da Terra”, que apresentava o posicionamento oficial da Igreja em relação à reforma agrária. Desde então, ele acompanha as questões relacionadas à terra e assegura que “provavelmente não havia mais conflitos na luta pela terra em 1980 do que atualmente”. Segundo ele, o novo texto oficial da CNBB faz “referências ao documento ‘Igreja e Problemas da Terra’, assumindo com firmeza o que foi lúcido e importante a partir de 1980 para a Igreja. Por isso, o documento ‘A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI’ quer ser e é uma atualização do documento de 1980. De modo particular, destaca-se nele a emergência e as consequências sociais, econômicas e ecológicas do agronegócio como a forma dominante de exploração da natureza e do trabalho na terra nas últimas décadas”.
E acrescenta: “O documento atual relaciona com muita clareza a opção econômica e política pelo agronegócio com as demais atividades produtivas e especulativas, e denuncia que elas agravam o aquecimento global e as mudanças climáticas que marcam a realidade atual. Há o reconhecimento dos ‘clamores da Terra’, pois ela emite sinais de que ‘tem suas próprias leis, que precisa de determinada cobertura vegetal para seu próprio metabolismo e que o regime das águas depende da vegetação. Enfim, há uma intrincada rede de conexões entre os seres vivos e não vivos necessária para a existência de todas as formas de vida’”.
Ivo Poletto é filósofo, teólogo e assessor de pastorais e movimentos sociais. Trabalhou durante os dois primeiros anos do governo Lula como assessor do Programa Fome Zero e foi o primeiro secretário-executivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Poletto é autor de Brasil, oportunidades perdidas: Meus dois anos no governo Lula (Rio de Janeiro: Garamond, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais foram as principais discussões da 52ª Assembleia Geral da CNBB em relação à reforma agrária no Brasil hoje? Como os bispos se posicionaram a respeito do tema?
Ivo Poletto - Lembro, inicialmente, que o professor José de Souza Martins, assessor junto comigo do documento “Igreja e Problemas da Terra”, aprovado na Assembleia Geral da CNBB de 1980, se declarou admirado da dedicação com que os bispos, com média de idade avançada, se dedicaram ao estudo, à elaboração e à aprovação deste documento durante seis dias: “não vi outro grupo assim com tanto interesse e com tanta profundidade sobre a temática da terra”. Como não participei das duas últimas Assembleias da CNBB, creio que os que assessoram o documento atual, intitulado “A Igreja e a questão agrária no início do século XXI”, devem ter experimentado algo parecido. Afinal, o texto atual foi objeto de estudo em assembleia anterior, mas foi devolvido à equipe de redação para elaboração mais aprofundada dos temas que provocaram debates mais intensos.
Pelos comentários que vazaram da Assembleia atual, foi muito reduzido o grupo de bispos que se opuseram à aprovação do texto atual. Apenas um deles tornou pública sua oposição ao texto durante o processo de aprovação, e teria ficado claramente isolado. Com isso, pode-se afirmar com segurança que o longo debate sobre esta temática contribuiu para construir um amplo consenso em relação à análise crítica e aos posicionamentos presentes no documento aprovado. Se todo seu conteúdo será colocado ou não em prática por todos os signatários, é algo que só o tempo demonstrará.
IHU On-Line - Em que contexto foi elaborado o documento oficial da CNBB “Igreja e Problemas da Terra”, há mais de 30 anos? Quais foram as pessoas e movimentos sociais que participaram da construção desse documento?
"Em termos formais, o documento atual se parece muito com o de 1980"
Ivo Poletto - O documento aprovado em maio passado destaca as diferenças entre o contexto em que foi assumido o documento “Igreja e Problemas da Terra” e o atual. O destaque mais evidente é que, em 1980, o Brasil ainda estava oprimido politicamente por ditadura, e agora, em 2014, o país já acumula praticamente 30 anos do fim daquela ditadura e 26 anos da aprovação da Constituição da República Federativa do Brasil. Por isso, se então se podia e devia denunciar a falsidade das promessas presentes no Estatuto da Terra em relação à Reforma Agrária e aos direitos dos camponeses, agora a cobrança se refere ao cumprimento ou não da Constituição vigente.
Provavelmente não havia mais conflitos na luta pela terra em 1980 do que atualmente. Correto é dizer que os conflitos eram diferentes, de modo especial por causa da militarização da questão agrária, com uma intensiva repressão violenta à crescente organização dos camponeses, de modo especial os Sem Terra, pois já estavam em gestação, em diferentes formas de mobilizações, o MST, a CUT e o PT, e, com a aprovação da Lei da Anistia, muitos militantes políticos haviam retornado e começado a organizar as ONGs. E diferentes também porque as opções de política agrária e agrícola capitalista eram relativamente diferentes das atuais.
No interior da Igreja, a forte presença e atuação da Comissão Pastoral da Terra - CPT nas áreas de conflito e no apoio às nascentes organizações camponesas em todo o país, bem como do CIMI nas áreas indígenas, e especialmente o martírio de crescente número de lideranças populares e agentes pastorais, levou a CNBB a assumir os “problemas da terra” como tema de sua assembleia apenas cinco anos depois do nascimento da Pastoral da Terra e da Pastoral Indigenista.
Em relação às contribuições ao documento “Igreja e Problemas da Terra”, mesmo não convidada inicialmente, a CPT se tornou ponto de referência para a elaboração do texto-base e para a assessoria do trabalho realizado na Assembleia a partir de sua iniciativa de oferecer dados em relação à realidade e relatos ligados às práticas que acompanhava. Com isso, os gritos, a visão crítica e as propostas do que havia de movimentos e organizações camponesas se fizeram presentes no processo de construção conjunta do documento da CNBB.
IHU On-Line – Quais as novidades do novo documento “A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI”?
Ivo Poletto - Creio que ele expressa a vontade de um posicionamento pastoral atualizado em relação aos que são denominados no próprio documento como “povos da terra, das águas e da floresta”. De fato, os bispos reconhecem que a realidade mudou e, por isso, sua posição crítica em relação à realidade agrária procura dar conta das mudanças e seu posicionamento procura responder aos novos desafios.
Em termos formais, o documento atual se parece muito com o de 1980: numa primeira parte, apresenta a realidade e os gritos dos diferentes povos das terras, das águas e das florestas; em seguida, uma reflexão teológica e pastoral sobre esta realidade, buscando, especialmente na Bíblia e no Ensino Social da Igreja, luzes para agir com esperança no enfrentamento dos desafios que a realidade atual apresenta; finalmente, a terceira parte destaca compromissos e orientações de ação para continuar sendo uma Igreja ao lado e a serviço da vida e da causa dos empobrecidos em sua luta pela democratização da terra e pela construção de uma sociedade que avance com as qualidades humanas que a aproxime do Reino de Deus.
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"Julguei justa a menção a Dom Tomás Balduíno, no final do documento atual da CNBB" |
Vale destacar que nas três partes há sempre referências ao documento “Igreja e Problemas da Terra”, assumindo com firmeza o que foi lúcido e importante a partir de 1980 para a Igreja. Por isso, o documento “A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI” quer ser e é uma atualização do documento de 1980. De modo particular, destaca-se nele a emergência e as consequências sociais, econômicas e ecológicas do agronegócio como a forma dominante de exploração da natureza e do trabalho na terra nas últimas décadas.
IHU On-Line - Como ocorreu o processo de elaboração do novo documento?
Ivo Poletto - Foi um trabalho a muitas mãos e, por isso, bastante demorado. Percebe-se nele a contribuição marcante das pastorais sociais que atuam junto aos povos da terra, das águas e da floresta, tanto em relação aos seus gritos e propostas como em relação aos dados da realidade, de modo especial os sucessivos relatórios dos conflitos agrários elaborados pela CPT e dos conflitos indígenas sistematizados pelo CIMI. E há a presença forte dos quilombolas, dos pescadores artesanais, dos ribeirinhos, dos reduzidos a trabalhos em condição de escravidão, dos assalariados superexplorados.
Por outro lado, há contribuições de cientistas sociais na análise da questão agrária dominada pelo agronegócio, em que se destaca a opção política de gerar riqueza de curto prazo e de forma cada vez mais concentrada através da produção e exportação de commodities. Com isso, o país agride e esgota os recursos naturais e deixa as futuras gerações na mais completa insegurança. Mesmo a geração atual tem sua existência ameaçada, contudo, por causa do uso indiscriminado e intensivo de agrotóxicos e da imposição irresponsável de sementes transgênicas; e os mais empobrecidos, do Brasil e do mundo, estão cada dia mais ameaçados de morte por fome porque os alimentos, uma vez transformados em commodities, têm seu preço elevado segundo os interesses de lucro especulativo das poucas grandes empresas que controlam a sua comercialização mundial.
IHU On-Line – Como o documento atual aborda a divisão entre terra de trabalho e terra de negócio, presente no documento dos anos 1980?
Ivo Poletto - Mais do que uma divisão, trata-se de um confronto entre o modo de relação, de uso e de cuidado da terra por quem dá a ela sentido social, e o modo de relação, abuso e descuido da terra por quem a considera sua propriedade sagrada, absoluta e sem limites. O documento atual retoma, de forma aprofundada e atualizada, esses dois conceitos como chaves de leitura crítica. E nos compromissos, eles voltam como referência ética e pastoral do que é aceitável e do que deve ser questionado e condenado como desumano, como ameaça à vida e ao meio ambiente.
Vale destacar que o documento atual relaciona com muita clareza a opção econômica e política pelo agronegócio com as demais atividades produtivas e especulativas, e denuncia que elas agravam o aquecimento global e as mudanças climáticas que marcam a realidade atual. Há o reconhecimento dos “clamores da Terra”, pois ela emite sinais de que “tem suas próprias leis, que precisa de determinada cobertura vegetal para seu próprio metabolismo, e que o regime das águas depende da vegetação. Enfim, há uma intrincada rede de conexões entre os seres vivos e não vivos necessária para a existência de todas as formas de vida” [1].
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"Se todo seu conteúdo será colocado ou não em prática por todos os signatários, é algo que só o tempo demonstrará" |
IHU On-Line - Quais os retrocessos e avanços em relação à questão da reforma agrária? Que apontamentos a Igreja faz em torno desse tema, trinta anos depois de ter produzido o documento de 1980?
Ivo Poletto - Não há retrocessos em relação ao posicionamento da CNBB sobre a necessidade e urgência da Reforma Agrária. Pelo contrário, o documento atual se defronta claramente com os que ou se conformam com a realidade do domínio do agronegócio, ou afirmam que a Reforma Agrária seria coisa do passado, algo irrelevante na fase atual da história e do desenvolvimento técnico e econômico, comandado pelo mercado capitalista.
A CNBB assume, em seus compromissos, todas as causas dos povos da terra, das águas e da floresta, e elas têm em comum a luta pelo reconhecimento do seu direito aos territórios em que vivem, produzem alimentos saudáveis para si e para as demais pessoas; e questiona e condena o desejo desenfreado dos que estão até propondo mudanças na Constituição para tomar as terras dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pescadores. E insiste que, sem a definição de limite à propriedade de terra, sem o fim da grilagem, sem o repasse das terras em que houve práticas de trabalho escravo e cultivo de drogas para os Sem Terra, enfim, sem uma Reforma Agrária que mexa com as estruturas da propriedade da terra, o Brasil não avançará na direção de ser uma sociedade assentada sobre a justiça, o direito, a igualdade e a paz.
O que poderia ser referido como limite, mais do que retrocesso, tendo presente que isso marcou também o documento de 1980, é a afirmação de que o documento não é, na linguagem atual, “vinculante”; isto é, os bispos signatários assumirão e aplicarão o seu conteúdo, inclusive os compromissos de ação, de forma livre e em consonância com as opções pastorais de suas dioceses. Isso poderia ser positivo em relação à realidade social, econômica, cultual e política, pois as ações, num país tão diversificado, com sete diferentes biomas, só podem ser diferentes. Mas com certeza o serviço evangélico, com sua dimensão profética de denúncia e anúncio em favor e junto com os empobrecidos, seria muito mais eficaz e transformador se todos os bispos, em todas as dioceses, assumissem com firmeza o que definiram num longo processo de construção de consensos. Uma metodologia de mobilização social, com um processo unitário que respeita e valoriza as diferenças regionais e locais, seria algo a ser assumido como expressão do amor libertador.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Ivo Poletto - Quero dizer que julguei justa a menção a Dom Tomás Balduíno, no final do documento atual da CNBB: “nossos compromissos são de vida e vida em abundância para os mais pobres: os pobres da terra, das águas e da floresta, que entre tantos outros contaram com o corajoso testemunho de Dom Tomás Balduíno, falecido no dia em que este documento foi apresentado à 52ª Assembleia” (208).
De fato, sou testemunha, junto com outros amigos, que Dom Tomás esteve ligado com o processo de aprovação deste documento da CNBB sobre a questão agrária no século XXI até o último momento de sua vida entre nós. Sou testemunha também de que ele foi consagrado, em seu funeral, pelos povos indígenas e camponeses como seu patrono e defensor permanente, como o foi em nossa forma de vida. Por isso, oro a Deus junto com Dom Tomás para que o conjunto da Igreja católica do Brasil assuma e torne realidade evangélica histórica os compromissos anunciados no documento “A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI”, pois esta é a forma de amor mais adequada às possibilidades do tempo atual.
Finalizando, quero estimular todas as pessoas a lerem este documento, para seu crescimento intelectual e como estímulo ético para sua ação política. E para meus irmãos na fé em Jesus de Nazaré, desejo que tomem contato com o documento, reflitam comunitariamente sobre seu conteúdo, pautem mudanças em suas práticas a partir dele e cobrem de sua diocese/paróquia/comunidade que seja divulgado em linguagem adaptada à região e seja ponto de referência comum para o amor concreto aos povos da terra, das águas e da floresta.
Nota:
[1] CNBB. A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI. Brasília: Ed. CNBB, 2014, p. 30.
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A Igreja e a questão agrária brasileira. Um posicionamento pastoral atualizado. Entrevista especial com Ivo Poletto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU